segunda-feira, 7 de agosto de 2017



O traje de abade de As Pupilas do Senhor Reitor (1935)
Indumentária civil masculina de abade, Portugal, 2ª metade do século XIX, recriação do guarda-roupa para a figura do abade no filme As pupilas do Senhor Reitor (1935), de José Leitão de Barros, baseado no romance homónimo de Júlio Dinis (1866), cuja ação decorre entre Ovar e Vila Nova de Gaia. O filme, inscrito na política do espírito do Estado Novo, procura reproduzir um ambiente campesino e bucólico assente na produção de tipos humanos idealizados. Algumas cenas deste filme foram introduzidas forçadamente pelo realizador, caso dos trechos iniciais filmados na Universidade de Coimbra e caso das vindimas nas arribas do rio Douro.
O senhor abade veste o chamado traje de rua/de viagem/hábito civil de viagem, que contém alguns elementos comuns aos usados no resto da Europa nas décadas de 1850-1860 como a sobrecasaca preta com corte de redingote, embainhada quase pela meia perna, com abotoadura de trespasse, machos posteriores e botões planos forrados de tecido. Elementos eclesiásticos propriamente ditos nesta indumentária sinalizamos apenas a volta branca em torno do pescoço e por debaixo do colete o cabeção preto de duas abas. O colete preto, com carcela alta, o chapéu de feltro, a bengala, as botas de couro preto e as calças compridas são peças da indumentária civil. Pela etiqueta britânica, uma veste deste tipo era considerada apropriada para sair de casa entre o entardecer e a noite.
As peças da indumentária civil masculina, de tecido liso, sem bordados, foram sendo lentamente introduzidas no enxoval eclesiástico a partir da Revolução Francesa de 1789 e da Concordata firmada entre o regime napoleónico e a Santa Sé (1804). Com efeito, a corte francesa de antigo regime admitia na etiqueta palaciana o traje de abade ou hábito curto, com sobrecasaca, capa curta, tricórnio de feltro, solidéu, calções, meias altas e colete, traje que também era admitido na corte pontifícia romana, nos palácios episcopais anglo-saxónicos, entre os alunos do Real Colégio dos Nobres (Portugal) e até na Universidade de Coimbra como hábito substitutivo da velha loba talar que Deus tenha e que me levou quase trinta anos a descobrir ao pormenor como era.
Nas décadas de 1850-1860, os contributos do enxoval eclesiástico à francesa começaram a fazer moda e a causar escândalo na corte pontifícia romana. Em vez do grande tricórnio preto de feltro, um chapelinho de castorina, de aba redonda, chamado saturno. No lugar da antiga capa/matéu talar, um casacão à militar, de trespasse, com a bainha pelos calcanhares. Este figurino parecia menos clerical e permitia conferir um certo ar paisano aos padres italianos que tomados de pavor assistiam ao avanço das tropas de Garibaldi e à ocupação dos Estados Apostólicos. Procurando acompanhar os tempos, o próprio pontífice romano regulou a etiqueta palaciana, dispondo que o clássico hábito curto à la française fosse substituído pela chamarra romana. Ora vem ao caso que a chamarra é uma batina talar de um só corpo, rigidamente confecionada na máquina de costura, geometrizada, com as famosas sobremangas entre a costura de ombros e os cotovelos, vistosos canhões nas bocamangas, vivos em preto ou nas cores dos dignitários e, no lugar da capa talar, uma capinha de ombros, de tirar e por, conhecida por murça ou romeira. A etiqueta lançada por Pio IX procurou espelhar a uniformização da Igreja em tempos de laicização e a autoridade do pontífice. A pouco e pouco a nova batina romana ou simarra espalhou-se pelos países católicos, graças à ação e autoridade dos bispos, alastrando também aos alunos dos seminários católicos.
Em Portugal, Espanha e países da América Latina, as antigas vestes eclesiásticas e adereços subsistiram até finais do século XIX, tendo sido algumas raras vezes fotografados ou desenhados. Desapareceriam sem ser musealizados, vazio que hoje cria sérios problemas aos investigadores.
Voltando ao traje do abade recriado no filme As Pupilas do Senhor Reitor, no geral os elementos indumentários trajados pelo ator estão historicamente corretos, exceto as calças compridas. Os clérigos católicos seculares, mesmo quando residentes em espaços vincadamente rurais como os descritos por Júlio Dinis, estavam obrigados a obedecer a disposições dos seus bispos diocesanos. Botas de couro de cano alto até poderiam calçar para ir à caça, cavalgar muar com chuço aberto, tratar das colmeias ou viajar. O que não podiam vestir nem tampouco era aceite num clérigo eram calças compridas, tendo permanecido até à Revolução de 5.10.1910 a etiqueta das meias altas pretas de seda com calções pelos joelhos.

Ver o filme: 

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