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domingo, 8 de maio de 2016



«Traje masculino/estudante de Coimbra», fotografia n.º 21 da exposição realizada em Lisboa entre 7 de abril e 31 de dezembro de 1994 e catálogo Trajes Míticos da cultura tradicional portuguesa. Lisboa: Museu Nacional do Traje/Electa, 1994, p. 165, com texto de apresentação da coleção assinado pela museóloga Madalena Braz Teixeira.
Os manequins 21 e 22 foram vestidos com peças de indumentária e acessórios de diferentes proveniências, guarda-roupa da companhia de teatro Verde Gaio e doações de particulares. No catálogo e na exposição, inscrita num registo erudito e de reprodução de conhecimentos positivistas não confrontados com trabalhos de campo e pesquisa universitária, este traje é conotado apenas com a Beira Litoral e com os estudantes de Coimbra.
Perpetua-se assim, sem discussão, um discurso de malas artes herdado da etnografia descritiva oitocentista (litografias e postais ilustrados) que se consolidara no período do Estado Novo nos serviços de oferta turística e organismos oficiais como o SNI, a Mocidade Portuguesa ou o bailado Verde Gaio. A reprodução de um estereótipo masculino/feminino que simbolizaria o património indumentário popular da cidade de Coimbra e da região em que se insere. Não fica esclarecido que esta conjugação binária é falsa, resultando da associação arbitrária e fantasiosa de um traje feminino urbano da segunda metade do século XIX com um hábito corporativo masculino estabilizado entre 1907-1911, e entretanto generalizado aos liceus e escolas superiores entre o ocaso do liberalismo e os anos da 1.ª república. Resta saber porque é que este traje concreto foi inventado como popular e outros com profunda inscrição no imaginário ficaram excluídos, caso do balandrau dos irmãos da Santa Casa da Misericórdia, das capas e túnicas das irmandades, da capa dos vereadores, dos trajes de músicos de bandas filarmónicas.
Em nossa opinião, o MNT perdeu uma boa oportunidade para promover uma síntese história sobre os trajes masculinos e femininos dos estudantes portugueses e denunciar as mistificações produzidas até ao limite do absurdo sobre este traje corporativo no período do Estado Novo.
Perdeu-se também a oportunidade de produzir conhecimento sobre alguns pequenos mas importantes pormenores das peças doadas, caso de uma capa anterior a 1974 que ostenta um emblema cosido no interior que remete para a Real República dos Lysos (UPorto, Rua de António Granjo, fundada em 1957). À data da concepção e realização desta exposição o traje masculino de capa e batina já não era mais o único traje dos estudantes portugueses do ensino superior. Um ciclo de criação e regulamentação de novos e diferentes trajes corporativos estava em curso desde 1980 para membros de corpos docentes e discentes, com predomínio do talar unissexo no primeiro caso e do fato/tailleur dimórfico no segundo caso. Nada disto fica referido ou esclarecido.
A master piece desta exposição radicou elaboração do catálogo/inventário de 46 peças, um instrumento positivista clássico que evidencia os conhecimentos dos técnicos da idade clássica da museologia, mas também os seus limites quando se trata de identificar e descrever elementos da cultura material provenientes de comunidades expressivas desconhecidas ao olhar e às categorias mentais do museólogo. Veja-se o caso da subjetivização da abordagem conferida à capa de honras (Trás-os-Montes), ao capote (Alentejo) e ao capote e capelo (Açores) para se perceber que algumas dessa peças de indumentária não tinham de todo o significado que lhes é atribuído pelo museu. Inventar significados também é produzir cultura, mas não é produzir conhecimento no campo das ciências sociais e humanas, significa apenas que quem musealizou não percebeu o imaginário das comunidades de prática.