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sexta-feira, 10 de maio de 2013

Carrego de provisões para a casa do Espírito Santo, aguarela de 1841, da autoria de Miguelzinho Dutra, acervo do Museu Paulista (São Paulo/Brasil)

-folia com tambor, ferrinhos, violas e bandeira;
-dois alferes com as bandeiras da casa do imperador;
-carro de bois carregado de lenha para a copa, engalanado e enfeitado com o pavilhão.
Este esquema tripartido de representação também foi empregue nas ilhas dos Açores: a bandeira média, pintada ou bordada, identifica a folia e vai sempre na vanguarda ou no meio dos foliões; a bandeira grande ou estandarte, de grandes dimensões, é bordada e agaloada, seguindo na frente do imperador ou à sua mão esquerda nas mãos do alferes (se o alferes der a esquerda ao imperador, cabe ao condestável do estoque a mão direita); a bandeira pequena ou pavilhão, rectangular, pintada sobre tecido, que se hasteava nos carros afetos ao império e na fachada principal da capela e casa.
Uma beleza esta aguarela!

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Puxa memória: rememorações de infância da função do Divino Espírito Santo (I)


Nesta rememoração catam-se memórias pessoais e familiares sobre o culto do Divino Espírito Santo. Não se diz tudo. Apenas o que a memória reteve e alguns aportamentos familiares trouxeram.

Modo de escolha do novo imperador: estando à mesa do banquete todos os irmãos que davam pão doce, e que estavam apurados em lista, metiam-se uns pelouros de papel num saco de peditório ou num chapéu.  O pelouro imperial cabia ao irmão que tirasse o bilhete com a coroa carimbada. As despesas do império para o ano seguinte eram por conta da tesouraria da irmandade, ao contrário de outras comunidades onde assumiam os encargos as câmaras municipais (império de Eiras, nos arredores de Coimbra, império dos nobres na cidade da Horta) e as santas casas de misericórdia (Alenquer e outras). Todos os demais pelouros estavam em branco. Este era o processo tradicional, conhecido e relatado oralmente. Na ilha Terceira estiveram em uso urnas de sorteios idênticas às utilizadas nos tribunais de Portugal e do Brasil para sortear os processos judiciais pelos magistrados. Não me lembro de ter visto este tipo de urnas. No século XX, os emigrantes devotos começaram a cumprir promessas, situação que veio tirar as irmandades açorianas de aflições financeiras. Quando o imperador é de promessa devota, cabe-lhe assumir a totalidade das despesas com a função.
Hoje em dia há duas formas de se levantar um imperador, por sorteio e por promessa. Anteriormente ao século XVIII empregou-se ainda um outro modo de apurar o imperador, por arrematação pública. Esta variante, promovida por certas câmaras municipais e santas casas de misericórdia consistia em fazer juntar os irmãos e devotos e arrematar a coroa em leilão público. A arrematação era feita por um pregoeiro de vara alta que depois apregoava o nome do imperador novo à porta da santa casa/câmara municipal, de tudo se lavrando competente auto. Não é imperatriz a mulher convidada pela casa do imperador em exercício que no cortejo se veste de rainha, à americana, e leva a coroa. A sua categoria é a de figurante, embora se lhe confira uma posição de destaque que, bem vistas as coisas, ofusca o verdadeiro imperador e suplanta em tudo a função dos pajens dos antigos impérios de Eiras, de Alenquer e do Penedo (Colares/Sintra).
Quando se fazia a mudança da coroa: habitualmente no domingo que precedia o dia da coroação, caindo esta em algumas terras ao domingo e noutras às terças. Por volta das 18.00h lançava-se um foguete para chamar os irmãos e devotos à casa do Espírito Santo. As casas do Espírito Santo variavam muito de terra para terra. Havia-as em pedra, de boa alvenaria, telhadas, com alpendre e ucharia anexas, caso de Alenquer e seu termo. Até ao século XIX a maior parte das povoações açorianas não tinha ermida/capela, pelo que as insígnias ficavam de ano para ano na casa de um dos irmãos. No dia da festa eram levadas à igreja e expostas numa ramada, uma espécie de quiosque de madeira engalanado onde se armavam a credência para as insígnias e o baldaquino do imperador. As ripas e vigas da ramada guardavam-se em casas de particulares e o irmão a quem competia montar e desmontar a ramada era o armador, que podia ser ajudado por um tapeceiro e por um reposteiro.
Voltemos à mudança. O novo imperador e o seu séquito faziam o saimento, com as insígnias, pela ordem prescrita, indo na frente o fogueiro e os foliões, depois o alferes do estandarte, até se chegar ao imperador. Este cortejo não metia padre nem sinos. Chegados à casa do imperador eleito eram solemente recebidos na porta principal, entravam todos para a sala de fora que estava de portas abertas, pátios engalanados, com um trono de degraus armado numa das paredes, nele se entronizando as insígnias. Ao lado do trono, as cadeiras próprias para o imperador, sua esposa e convidados ilustres. Sentavam-se sempre as senhoras nas cadeiras disponíveis, ficando os homens de pé ou acocorados, excepto o imperador. Em torno da sala, cadeiras e mochos de quatro pernas. Acendiam-se as velas e iniciava-se a primeira novena de terço cantado à capela. Havia cânticos em latim enrolado, como a Gloria Patria, outros polvilhados de glissandos, e outros de invocação de protecção contra os tremores de terra. Em Alenquer, em Eiras e em Guimarães as preces visavam suster a peste, nomeadamente através da procissão das madeixas de cera que cercava as localidades com um cordão sanitário de fé. Na última novena, a esposa do imperador mandava distribuir biscoitos caseiros, figos secos e licores aos presentes.
Apuramento dos irmãos que davam pão: no último domingo do ciclo pascal a irmandade mandava os irmãos vereadores correr todas as casas com o tesoureiro. Chamava-se à porta, perguntava-se quem daria pão para o bodo. Fazia-se o registo dos doadores numa lista. Cada uma das casas que dava pão tinha direito a enviar um comensal ao banquete do imperador no dia da função.
Do pão que se dava: cozia-se em casa e ofertava-se pão doce para o bodo. Este podia ter a forma de um grande pão, ovalado, de uma rosquilha ou de uma bola/fogaça. O número de pães/rosquilhas variava conforme o número de fogos ofertantes e chamava-se conta. Numa povoação com cerca de 400 habitantes seriam necessárias duas dúzias por fogo. Num lugar com cerca de 300 habitantes, o número podia aumentar para três dúzias e meia. Três dúzias e meia por casa obrigava a armar um açafate de vimes muito alto e pesado. Eram levados à cabeça por mulheres e segundo consta todos chegavam ao arraial sem incidentes.
Armar um açafate: para se armar um açafate de três dúzias e meia de rosquilhas doces, era necessário começar a guardar ovos, limões, farinha de trigo e açúcar com meses de antecedência. Um açafate levava quatro alguidares grandes de massa. Fazia-se um alguidar grande de barro com uma dúzia a uma dúzia e meia de ovos. Abriam-se os ovos, batiam-se com as mãos no fundo do alguidar, juntava-se açúcar, raspa de limão, as rações de farinha (já pesada para cada um dos quatro alguidares), o fermento e a manteiga derretida. Besuntavam-se as mãos em manteiga para a massa não agarrar. Amassava-se demoradamente com os punhos fechados. Depois de massa estar bem empolada, estado que se podia verificar através de um corte de faca, puxavam-se folhas quatro vezes. Fechavam-se então as folhas, fazia-se uma cruz com o bordo da mão direita e deitava-se a reza “São Mamede te levede, São Vicente te acrescente”. Ficavam os alguidares a levedar, abafados com panos brancos, pelo tempo necessário. O amasso e a cozedura levavam dias. Começava-se na semana anterior e terminava-se na véspera da função. Por conveniência e economia de meios, as famílias e os vizinhos partilhavam a mesma cozinha e o mesmo forno, dando uns a lenha, outros ajudando na violenta tarefa de amassar, outros ajudando a tomar conta das crianças. Amassar, não era tarefa nem masculina nem feminina. Era de quem tinha músculos e punhos. Quem apalavrava um amassador tinha que lhe dar vinho, licores, comida e cadeira.
Pronto o primeiro alguidar de massa, e estando o forno preparado, começavam a talhar-se os piões ou bolas de massa. Os piões destinados a rosquilhas eram perfurados com o indicador ("fincar o pião"), virando-se a bola em sentido contrário sobre uma mesa ou sobre um tabuleiro polvilhado de farinha. Alargavam-se os buracos até atingirem o tamanho convencional e metia-se a massa a crescer abafada com um lençol alvo que deveria estar polvilhado com farinha fina. Começava então o enfornamento. Cada rosquilha era tendida sobre a pá e com uma tesoura bem afiada cortava-se um círculo a toda a volta. O pão cozia em forno tapado. A forneira ia abrindo a porta e espreitava para verificar o andamento da cozedura. As rosquilhas/pão estavam prontas quando apresentavam cara rosada. Tiravam-se do forno, untavam-se logo com manteiga mole embebida num paninho e eram metidas a arrefecer num estendal. O estendal armava-se no chão de um dos quartos da casa, com lençóis e toalhões estendidos sobre o sobrado. Enquanto quentes, as rosquilhas não se podiam empilhar. Cheiravam bem e sabiam ainda melhor.
O desenfornamento era sempre um momento comunitário de celebração e prova do pão doce. Terminada a cozedura e arrefecido o pão, verificava-se o estado de limpeza e robustez dos açafates de vime. Estes eram armados por camadas, dispondo-se os pães em círculos, na vertical. Os círculos estreitavam da base para o topo, ganhando o aspeto de uma mastaba. Cada círculo era cintado com arreatas de algodão branco. Por último, enfeitavam-se os pães com cravos e botões de rosa. Em Tomar, a armação do tabuleiro parece mais fácil pois usam-se varas verticais de sustentação (apesar dos antigos serem torsos ou salomónicos).
O processo de cozedura descrito dizia respeito apenas ao pão que cada família ofertava ao bodo. Competia ao imperador mandar cozer todo o pão de trigo e doce necessário ao provimento da copa, serviço de mesa e distribuição de certas pensões. Os pães brancos usavam-se na confecção das sopas, para alimento dos copeiros e serviço de mesa do matador do gado e seus ajudantes. Os pães doces, de variados tamanhos, também conhecidos por massa sovada, eram servidos à mesa do banquete imperial, nos brindes aos foliões, no pagamento de algumas pensões ou soldadas mortas a que estava obrigado o imperador (padre, foliões, fogueiro, armador, copeiro, mestre capela que cantava o terço, pregoeiro, trinchante, mestre-sala, banda) e nas arrematações do arraial. Tinha mais porções de açúcar e de ovos.
Matança do gado: nas comunidades rurais a própria irmandade tratava com criadores o negócio da engorda de bezerros e bois para o banquete e para as pensões. Na antevéspera ou na véspera da festa, a folia ia buscar o matador e seus ajudantes e dirigiam-se todos aos terrenos onde pastavam os bois do Espírito Santo. Na crença popular estes eram rezes sagradas, não podendo ser molestadas nem roubadas. Acreditava-se que conseguiam resistir ao fogo dos vulcões. Na ilha Terceira enfeitava-se o gado com flores e fitas garridas. No trajeto até ao local do abate cantavam os foliões. Na ilha Terceira havia mesmo uma moda apropriada, o Pezinho dos Bezerros, que se entoava no meio do chocalhar do gado. Caso os transeuntes passassem junto da casa dos criadores eram obrigatório deitar cantigas e brindar com comes e bebes.
O abate eram conduzido segundo determinado ritual. Levam-se a coroa e o cetro para o local, entronizando-os em peanha, pedra lisa ou nicho. O matador tocava o lombo dos animais com o cetro. Os foliões não cantavam, limitando-se a rufar o tambor, talqualmente se fazia na execução da sentença de morte. Logo após o abate do primeiro touro, ou no fim de tudo, as insígnias voltavam à casa do Espírito Santo. As carnes eram suspensas e postas a arrefecer num açougue improvisado. Fazia-se o jantar dos matadores com molha de carne na caçarola (caçoila), fígados e vinho, fatias de massa sovada. Desmanchavam-se as carnes, salgando o que era de salgar e repartindo as rações destinadas a pensões a pobres, soldadas e banquete.
Na copa: a copa era o edifício, pátio ou alpendre onde a equipa liderada pelo copeiro-mor preparava, confeccionava, provava e mandava seguir para a mesa do imperador as iguarias do banquete. Podia ser integralmente masculina, ou liderada por mulheres experientes. O serviço de cozinha dividia-se em copa e ucharia. A ucharia era a despensa onde eram previamente colocadas as guarnições de sal, banha, azeite, alhos, cebolas, couves, frutas, pão, vinho, água potável, malagueta, pimenta da Jamaica, louro fino, hortelã, canela, calda de tomate, arroz doce, pão doce, frutas da época. Na copa estavam as trempes, os caldeirões de ferro e cobre, colheres, escoadouros, achas de lenha bem seca, alguidares e todo o trem de servir à mesa. Nas antigas copas a céu aberto os caldeirões eram colocados sobre dois blocos de pedra que serviam de trempes.
A distribuição das tarefas seguia de perto os cargos existentes na casa real. Pelas quatro horas da madrugada era lançado o foguete de convocação à copa. Acendia-se o fogo, verificava-se a limpeza do potedo, despejavam-se as porções de água por igual. Começava a descasca das cebolas e dos alhos, metendo-se em cima da mesa de trabalho os restantes temperos. Faziam-se bonecas de pano de linho com a malagueta, a Jamaica, o louro e o alho, que eram mergulhadas nos potes. Metiam-se as folhas de couve em enorme quantidade e ficavam os potes a ferver durante horas para apurar o caldo. Juntavam-se as carnes, muito bem lavadas e o tomate. O imperador saia com o séquito para a missa da coroação por volta das onze horas da manhã, sabendo o copeiro-mor do saimento pelo lançamento do foguete. Se a coroa saía às onze, voltaria ao império às treze. Iam-se provando as carnes e os caldos de cada pote e rectificando os temperos. Se necessário acrescentavam-se mais couves que estavam na ucharia em enorme quantidade de feixes.
No levantar a Deus, durante a missa da coroação, repicavam os sinos e lançavam-se foguetes. O copeiro-mor ou a copeira, conforme os casos, acabavam de ser avisados por este processo que era tempo de começar a preparar as terrinas e alguidares de ir à mesa. Primeiro metiam-se os quartos de pão de trigo nos alguidares e nas terrinas, com o lado do corte voltado para cima. A disposição era feita por camadas, cada fatia levava por cima uma folha de hortelã. Tinha que ser pão de trigo alvo de boa consistência para não se desfazer no caldo. Por último lançava-se o caldo filtrado sobre as sopas com a ajuda de um passador. Ajeitava-se o recipiente e abafava-se com mantas. Voltava-se ao panelão e baldeavam-se as carnes para cima de um estrado de madeira, que podia ser uma francela de queijo. A carne ficava a escorrer. Depois era partida com facas bem afiadas e armavam-se os alguidares e terrinas de ir à mesa.  As terrinas da carne não se misturavam com as das sopas. À medida que ficavam prontos os alguidarinhos e terrinas iam sendo abafados com papel e mantas. Finalmente estava a copa pronta para servir. Nos tempos em que a copa era separada da casa de jantar, os pratos, os vinhos e os pães de massa sovada eram levados à mesa sempre com a folia a tocar e a dançar. Os próprios servidores da mesa acabavam por imitar a folia e faziam gingagojas e passos de dança, parecendo que por vezes carnes e sopas iam de rojo ao chão. Uma euforia de abundância. Depois que se criaram os salões de festas, o antigo estilo de serviço de mesa desapareceu. O imperador entrava na casa do banquete com certos estilos, acompanhado pela esposa imperatriz e pelos altos dignitários (irmãos de vara vermelha e branca, alferes, condestável, mestre-sala, trinchante, padre, mestre-capela, câmara municipal, santa casa, etc.) e os assentos eram ocupados segundo determinadas precedências. Na mesa principal, a presidência cabia ao imperador, que sentava à sua mão direita e à sua mão esquerda os dignitários e convidados. Na extremidade oposta da mesa imperial ficavam obrigatoriamente os foliões, sendo esta cabeceira a mais próxima da porta para facilitar as idas e vindas à copa e os momentos de canto e de dança feitos em pé entre os pratos. Havia oficiais da casa imperial que ficavam de pé, ladeando o imperador, para garantir a lavagem das mãos, o trinchar das iguarias e os abastecimentos. Pelo estilo tradicional armavam-se duas mesas compridas, uma para o imperador, seu séquito e convidados ilustres, a segunda para os irmãos ofertantes. Ainda conheci pelo menos duas irmandades que comiam dentro das respetivas capelas, tradição que estava em vias de extinção na passagem da década de 1960 para a de 1970. O provimento da mesa era feito com cortejo de entrada e música da folia, cantando esta trechos apropriados a cada momento e prato. Antes de se iniciar o repasto fazia-se uma reza colectiva. O padre fechava com um Padre-Nosso e uma Avé-Maria. A forma de servir à mesa seguia os estilos da corte portuguesa.
Juntar e benzer o pão do bodo: terminado o banquete imperial, por volta das quinze horas, o imperador mandava o fogueiro lançar foguete para o saimento do cortejo de recolha dos açafates/tabuleiros (Tomar). caminhavam na frente o fogueiro e seus ajudantes, a folia, o alferes do estandarte, os irmãos das varas e o imperador com o seu séquito e insígnias, indo o padre no fim. Fora de cada casa atirava-se um foguete de saudação e agradecimento por cada açafate de pão ofertado. Nos caminhos íngremes subia apenas o alferes com um irmão de vara alçada, ficando o imperador em baixo a aguardar. Levantar um açafate a braços e metê-lo à cabeça de uma mulher era obra ("estás pronta, puseste a rodilha, endireita bem o pescoço, olha para a frente sem baixar a cabeça, se tiveres dores chama"). Em tempos mais recuados, a folia deitava cantigas de agradecimento junto de cada casa ofertante, ritual que fazia atrasar muito o cortejo da recolha. A partir de finais do século XIX começaram a integrar os cortejos as bandas filarmónicas, sempre atrás do padre, sendo interdito usurpar o lugar da folia ou estorvar a sua performance.
As mulheres caminhavam em duas alas, com os açafates de pães à cabeça. Nos casos de excesso de peso, dores ou tonturas, eram prontamente assistidas pelos irmãos de vara. Chegado o cortejo ao império, arriavam-se os açafates, dispondo-os em filas. Junto de cada um fica sentada a transportadora. Vinha o padre com os ajudantes, folia na frente, benzer o pão. Terminado o descanso, os irmãos de vara começavam a desarmar os açafates. Desatavam as arreatas e de cada açafate tiravam um número certo que ia sendo depositado em cestos largos e em carrinhas. Antes da década de 1970 usavam-se carros de bois engalanados para servir na distribuição dos pães e demais pensões. Se ainda assim faltasse pão para as soldadas mortas, que são as que o imperador e a irmandade devem aos foliões, à banda filarmónica e a outros dignitários, voltava a tirar-se mais pares de rosquilhas aos açafates. Nenhuma mulher podia proibir que os irmãos de vara viesse tirar mais pães nem levantar o açafate e sair do império. Fazer tal coisa seria considerado afronta gravíssima à irmandade e falta de respeito ao Divino Espírito Santo. Consta que em épocas mais recuadas o próprio imperador vinha de coroa na cabeça e vara alçada presidir a estes atos.
Cortejo da distribuição do bodo: cheios os carros do bodo, o imperador voltava a sair do arraial com a sua casa civil e militar pela ordem e estilos habituais. Neste cortejo seguiam diversos carros de bois enfeitados, repletos de pão, que levavam adiante irmãos com cestos largos e varas. O pão era colocado nos cestos de distribuição e empilhado nas varas, seguindo-se a distribuição por todas as pessoas presentes no arraial e ao longo dos caminhos e terreiros. O pão partido era entregue às crianças. Havia famílias que iam em dias diferentes a vários impérios e recolhiam enormes quantidades de pão doce que era torrado no forno e comido ao longo do ano.
Fechamento do império: O império podia ter arraial e arrematação de oferendas pelo pregoeiro: pães de grandes dimensões ofertados por devotos no âmbito do pagamento de promessas, ramos de laranjas, galos, bezerros, coelhos. Em diferentes momentos da tarde iam à mesa comer os foliões, a banda filarmónica e visitantes de última hora. O copeiro e seus ajudantes comiam sempre na copa, que nalguns casos era um simples pátio em cujo recanto se armavam as trempes para o potedo (caso do Penedo, Sintra).
Para fechar o império mandava o imperador ao fogueiro lançar uma roca ou folia de foguetes.
AMNunes

Folia do Divino Espírito Santo, recolha de esmolas para distribuição aos presos. Irmandade com bandeiras, sacos, salvas, custódias, folia, e carros de bois enfeitados e carregados de víveres. Rio de Janeiro, em frente à cadeia, gravura de Débret [década de 1820].
Em Portugal continental este tipo de peditório para o caldo dos presos também acontecia, mas era dinamizado pelas santas casas da misericórdia. A intervenção da irmandade do D. E. S. pode talvez justificar-se por força da sua integração estatutária na santa casa. Nos Açores, os carros de bois não pertenciam às irmandades, eram solicitados aos camponeses e lavradores pelo imperador. Eram usados em três importantes momentos do calendário festivo: a) peditórios públicos de recolha de bens para a função; b) carregamento de lenha para a copa e de víveres para a ucharia da casa do D. E. S. (pipas de vinho, carnes, pães, frutas, temperos (neste caso, vistosamente engalanados com faias, canas, bandeiras, flores, festões de ervas de cheiro, colchas); c) cortejo de distribuição do bodo, levando cada carro as pensões contadas pelos irmãos.
Nos relatos antigos da função realizada em Alenquer alude-se a peditórios que a irmandade costumava fazer pelos povoados do Alentejo, tudo indica que com a presença de carros de churrião para neutralizar as amplitudes térmicas e permitir a pernoita dos irmãos.

Folia do Divino Espírito Santo, peditório público nas ruas do Rio de Janeiro [década de 1820], gravura de Débret. Presença de irmãos com chapéu de capela floral e vara.

Folia do Divino Espírito Santo com presença de devotos negros, Brasil, décadas de 1840-1850 (?): bandeira da folia, saco de esmolar, irmão com custódia e salva, tocadores com tambor e sopros.
Aspeto pouco conhecido, mas que se manteve até ao presente em algumas irmandades açorianas, os instrumentos da folia deveriam trazer pintados ou bordados o emblema do D. E. S. (a coroa). Este mesmo emblema era também pintado ou gravado em todas as peças da baixela da casa imperial utilizadas na função de mesa, potes, jarros, pratos, terrinas, salvas, garrafas, alguidares e quejandos.
A função de mesa, de que não falaremos agora, era um dos momentos mais extraordinários de afirmação do cerimonial, regido pelo mestre-sala e pela folia, cabendo a esta formação musical e dançante tocar e cantar na abertura do banquete, no transporte da comida da copa para a mesa, no serviço de cada um dos pratos e até mesmo na sobremesa de arroz-doce.
Fonte: Historia.com.br/, http://www.revistadehistoria.com.br/

Folia do Divino Espírito Santo, Rio de Janeiro, inícios do século XIX: foliões com saco de peditório e salva da coroa, bandeira e instrumentos musicais (violas, pandeiros e tambor). Foliões em traje civil. Dois alferes com opas vermelhas e bandeiras. Tocadores com chapéus franceses emplumados.
Comments:

1-a opa, com e sem mangas, é a veste tradicional dos foliões do D. E. S. nos espaços lusófonos. As opas das folias costumavam ser confecionadas em damasco lavrado ou simples pano de chita garrida;
2-a cobertura de cabeça mais comum era o lenço masculino com as pontas lançadas para trás, podendo trazer-se sobre o mesmo chapéus de pompons (Estremadura), chapéus de plumas e até chapéus de capela floral e fitas como os trazem os dançarinos de Lousa (Castelo Branco) e de algumas terras de Espanha;
3-a maioria das irmandades do D. E. S. realizava peditórios cujos réditos eram administrados pelo tesoureiro e pelo irmão ucheiro. Os alimentos sólidos/conservados, como pipos de vinhos, licores, azeites, potes de sal, potes de banha de porco, queijos curados, alqueires de trigo, enchidos de porco, eram transportados em carroças e carros de bois e guardavam-se em ucharia fresca e arejada. Quando a irmandade saía em peditório levava a folia, a bandeira da folia (formato distinto da bandeira grande do imperador), salvas de recolha, carros de bois e sacos de veludo com o símbolo bordado. Nalgumas terras, os irmãos da casa civil do imperador saíam com varas altas pintadas de branco e de vermelho que eram utilizadas nos peditórios e serviam para alçar até às janelas e varandas e recolher tranças de cebolas, tranças de alhos, cachos de laranjas, linguiças e chouriças e outros víveres;
4-como se pode verificar, a gravura confirma a observância do cerimonial, com a folia a preceder todos os elementos do bando.
Fonte. «Festas coloniais», http://www.historiacolonial.arquivonacional.br/

domingo, 5 de maio de 2013

Retrato do padre Francisco Parella (?) capelão da esquadra italiana que entre 29 de setembro e 6 de outubro de 1862 conduziu de Itália para Lisboa a rainha consorte D. Maria Pia de Sabóia. Este retrato integra um valioso álbum ofertado pelo capitão da esquadra, contra-almirante Albini, à jovem rainha durante o trajeto, álbum esse que pertence ao acervo do palácio nacional da Ajuda (n.º inv. 42249/90). Lida a ficha de inventário, nela não se relaciona o clérigo fotografado com a função de capelania militar. Aliás, a descrição da indumentária merece convite a uma melhoria. O que me leva a suspeitar, e com bons motivos, de que fosse capelão é a ornamentação da gola da sobrecasaca ou abatina. Dois outros elementos indiciam um acentuado sentido prático no trajar (calças compridas num clérigo palaciano, seria então inaceitável; o saturno à francesa, símbolo dos eclesiásticos liberais), espelhando o conjunto acentuada geometrização, ou melhor, influência da uniformologia militar e uma guinada laicizadora trazida pelo conflito entre o poder temporal e o vaticano.

Trajes instituticionais da Universidade de Coimbra (década de 1830)

1-Estudante da Universidade de Coimbra com traje preto de abatina, capa e gorro. Mangas acanhoadas, muito estreitas.
Aguarelas coloridas da década de 1830, acervo do Arquivo Municipal de Coimbra

2-Lente da Universidade de Coimbra doutor em Medicina, com hábito talar e borla e capelo.

3-Traje de gala (não confundir com libré) à antiga portuguesa de guarda-mor das escolas da Universidade de Coimbra, composto por calções, colete, sapatos de fivela, casaca, bacalhau e meio mantéu forrado. Cabeça descoberta, punhal à cinta e vara branca pequena, de tipo bastão. No dia-a-dia o guarda mor usava uma veste simplificada, de sobrecasaca, calças compridas e capa de pano vulgar.
Aguarelas da década de 1830 divulgadas por Gustavo Matos Sequeira na sua «história do traje em portugal».

Uniforme feminino norteamericano de enfermeira da Cruz Vermelha usado durante a Grande Guerra nos EUA e na Europa (França) por Anna Taylor (1879-1956). Acervo do Charleston Museum
Sarja cinza escura. Conjunto composto por saia trapezoidal comprida, com fechamento dianteiro assertoado, casaco ajaquetado de 3/4 decotado na frente, com 4 bolsos, cinto de tecido e botões metálicos. Boné não visível na imagem. Apresenta emblema da Cruz Vermelha cosido na manga esquerda, crachá metálico e pin metálico com as letras US. Conforme já se demonstrou noutro local, eis os momentos mais recuados de uma tradição académica feminina que começou por ser uma tradição militar. As coincidências entre os dois universos, e a importação de institutos da tradição militar para o campo académico são mais do que evidentes, em especial nos anos que medeiam entre a Grande Guerra e a 2.ª Guerra: passar revista, paraquedista, salvo-conduto, porta de armas, mobilização, contrafé, distintivos metálicos de fundamentação heraldística mais do que vacilante...