quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Uma tese sobre uniformes escolares (2006)

«Criança calçada, criança sadia! Sobre os uniformes escolares no período de expansão da escola pública paulista (1950-1970)», é o título da dissertação apresentada por Katiene Nogueira DA SILVA à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo em 2006 para obteção do grau de mestre: http://www.teses.usp.br/disponiveis/48/48134/tde-29062007-152705/pt-br.php
O trabalho explora palavras-chave como cultura escolar, expansão do ensino, história da educação e do vestuário e uniformes escolares.
Conquanto considerado um tema marginal pelas elites universitárias lusófonas, o pioneirismo na abordagem da temática coube de pleno direito à socióloga da Universidade de São Paulo, Gilda de Melo e Sousa (1919-2005) que em 1952 defendeu a sua tese de doutoramento sobre «O espírito das roupas, a moda no século XIX», nem Foucault era ainda pergaminhado.
Da Silva procura, em primeiro lugar, descortinar como é que a política oficial que comina o uso obrigatório de uniformes nas escolas de ensino primário e médio brasileiras foi estruturada no Estado de São Paulo entre as décadas de 1950-1970. A investigadora socorre-se de relatos de imprensa escrita (artigos, publicidade). Tenta sondar as perceções dos alunos com base num jornal escolar e as regulamentações publicadas em manuais pedagógicos. Percorre a legislação escolar, sem perder de vista que a pesquisa enfoca uma época de forte expansão da oferta pública de ensino. Relativamente a fontes informativas associadas ao discurso produzido e inculcado pelas elites, Da Silva privilegia a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, a Revista de Educação e a Revista do Professor. Com base nos artigos mapeados, elabora uma grelha uniformizada que permite comparar campos como Educação sanitária, higiene e eugenia, Assistência social, Vestuário como símbolo de distinção social e projeção da personalidade, Disciplina, ordem e asseio e Comemorações cívicas, entre outros.
A autora deste trabalho caracteriza eficazmente a transição do paradigma educativo liberal monárquico para os regimes republicanos, passando pela ditadura de entre guerras. Identifica corretamente os manuais educativos e pedagógicos como prescritivos ou normativos que visavam construir uma imagem oficial do professor e do aluno. Os valores normalizadores e uniformizadores associados à linguagem do vestuário corporativo inscrevem-se profundamente no imaginário normalista, isto é, das escolas normais, que no mesmo período em Portugal tinham passado a designar-se escolas de magistério primário. Os manuais de metodologia e ensino integravam nas suas páginas recomendações oficiais e orientações retiradas dos manuais de civilidade e boas maneiras. Estas prescrições incidiam sobre o uniforme (cor, forma, tecidos, regras de uso) mas também sobre o autocontrolo do corpo e a proibição de quaisquer sinais externos que pudessem exprimir luxo, vaidade, transgressão (penteados, jóias, adornos). Na medida em que se pretendiam afirmar como instrumentos sociais e éticos de controlo, invadindo o território da vida privada e impondo uma imagem normalizada do professor e do estudante, os manuais referidos acabavam por transmitir o mesmo tipo de valores que veremos ser consagrados em Portugal nos códigos de praxe académica (códigos do trote) nas décadas de 1980-1990.
Os uniformes escolares brasileiros refletem com maior ou menor grau de atualização as tendências políticas e da moda. As indústrias do vestuário, através da publicidade e de campanhas de sensibilização, desempenharam um papel fulcral na construção da imagem mediática do estudante uniformizado. O próprio título da tese é retirado de uma campanha de publicidade realizada em 1958 pela empresa São Paulo Alpergatas SA.
Na transição da década de 1950 para os sixties acentuam-se as metamorfoses, com os uniformes a refletir as novas posturas juvenis e uma mensagem modernizadora associada a um design mais funcional, desportivo e confortável. Dado incontornável, os uniformes escolares dos níveis primário e médio continuam a apresentar um design de gosto muito discutível, com o seu ar low cost, por vezes kitsh: confeção pronto-a-vestir pouco aprimorada, tecidos pouco maleáveis e rapidamente desgastáveis. Outro aspeto fundamental dos uniformes escolares comum a todos os países onde foram adotados traduz-se numa rígida segregação de sexos. Embora possa haver peças comuns, o calção/calça é considerado obrigatório para alunos e a saia para as alunas. Isto só não acontece no pré-escolar (jardim de infância, creche), cujos meninas e meninas podem usar até aos cinco anos uma bata ou bibe unissexo. A "regra" escolar da diferenciação do vestuário por sexos emergiu na era do liberalismo clássico e continua a ser considerada obrigatória mesmo após o triunfo do discurso feminista, da generalização do vestuário unissexo e da consagração de peças comuns a ambos os sexos nas forças armadas e nas forças policiais dos países ocidentais. O seu paradigma inspirador é militar e burguês-liberal e não exatamente universitário, religioso, popular ou judiciário, campos culturais onde a indumentária unissexo era/foi entendida com outra flexibilidade.
Situação idêntica à analisada por Da Silva ocorre em Portugal na maioria das universidades e institutos politécnicos, instituições onde comissões de alunos ad hoc criaram inúmeros trajes corporativos na década de 1990. Estes trajes estão regulamentados em manuais de conduta, designados por códigos de praxe (códigos ou regulamentos dos trotes académicos). Em quase 90% das situações analisadas ocorre um rígido dimorfismo de género consubstanciado em modelo masculino e modelo feminino diferenciados e os contextos de uso regulamentados impõem severas restrições em matérias do foro privado, como penteados, adornos e roupas interiores. O que é curioso nestes regulamentos fortemente neoconservadores é que foram aprovados por comissões/grupos de alunos sem qualquer participação dos órgãos de governo dos respetivos estabelecimentos de ensino.
Perante o que fica dito a propósito do caso português, seria importante perceber onde é que os autores dos regulamentos referidos foram colher informação para sustentar as prescrições consagradas. Não há uma resposta única. Mas podemos considerar:
1) a formação familiar e pessoal dos autores desses textos;
2) a falta de sensibilidade/formação das estilistas contratadas, que desconheciam a história das vestes académicas ocidentais e estavam bastante influenciadas pelos códigos específicos das "fardas" dimórficas dos hipermercados, empresas de segurança privada, hotéis, restaurantes e empresas de aviação civil (daí que, descontando elementos etnográficos e vitorianos, alguns dos trajos consagrados estejam muito próximos de soluções highschool uniform e das fardas produzidas para o mercado empresarial-comercial e não já da imagem militar da idade clássica);
3) a influência que os agentes colheram na leitura de algumas tradições da Universidade de Coimbra, nomeadamente na transposição de artigos de um documento ideologicamente muito datado, o "Código da Praxe de 1957";
4) princípios e perceções transmitidas por professoras do ensino primário formadas antes da Revolução de 25 de abril de 1974.
Voltando à cultura escolar brasileira, Da Silva destaca na legislação escolar um importante momento de viragem no protagonismo definitório dos modelos. A partir do Decreto n.º 39.334, de 10.11.1961, os uniformes escolares deixam de ser regulamentados pelo estado, competindo aos órgãos de direção de cada estabelecimento escolar decidir os modelos e as regras de uso. Mas esta mudança parece-nos ser meramente formal, não se traduzindo em qualquer alteração de vulto a nível do pronto-a-vestir, do low cost, da segregação sexual e do desencontro entre anatomia corporal e ergonomia dos modelos escolhidos.
Em países como o Brasil, a Argentina ou o Japão, o uniforme escolar é considerado um instrumento de afirmação das políticas educativas nas escolas públicas. Apesar de imposto por diferentes regimes, que vão da monarquia à república e à ditadura, os uniformes são encarados positivamente como agentes do processo de modernização, democratização e promoção da igualdade educativa. Esta situação é desconhecida em Portugal, país onde o uniforme escolar está associado à imagem dos colégios privados confessionais e laicos.
O trabalho desenvolvido por Da Silva constitui um importante contributo para a história da educação, considerado o enfoque teórico e o levantamento de fontes. Pessoalmente, gostaria que a investigadora tivesse tido tempo para ir um bocadinho mais longe, entrando em campos porventura menos gratos como as memórias produzidas pelos estudantes sobre os uniformes escolares que foram obrigados a vestir numa determinada fase de vida e a importância que os órgãos de administração/gestão das escolas e os encarregados de educação/pais atribuíam a esses trajos. Mas, como sabemos, as teses de mestrado são limitadas no tempo da investigação, no penoso tempo da escrita e no número de páginas. As minhas felicitações a Katiene da Silva.

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