Virtual Memories

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Moda, política e indumentária eclesiástica: dois padres franceses fotografados em 1864. Um com a batina à francesa, de confecção simples, o velho tricórnio de feltro, o plastron e a capa no braço. O outro trajando as novidades introduzidas pelo clero francês nos anos da descristianização que se seguiram à Revolução de 1789: o novo chapéu que nas décadas seguintes ficará com a aba plana de anel de saturno e o famoso casacão.
Nas décadas de 1850-1860 a moda francesa não parou de suscitar críticas entre o clero italiano e os membros da casa papal. Contudo, nos decénios de 1860-1870, no período da unificação da Itália e do fim dos estados pontifícios, o clero italiano atemorizado passou a vestir esgadoramente o viatório à francesa. A confeção foi melhorada, as hierarquias passaram a meter-lhe vivos. Acossados pelos soldados e pelos intelectuais laicos, os padres acreditavam ou queriam acreditar que com o viatório pareceriam menos padres.
Conhecido por viatório, dulette (França), duleta (Espanha) e greca (Itália), este abafo ainda se mantém em uso entre o clero católico, dele existindo variantes regionais: modelo ambrosiano ou de Milão (carcela dianteira integralmente fechada e gola de orelhinhas); modelo polaco com forro de pelaria.

O antigo abafo quatro braços dos lassalianos

Feitio das costas do manto/garnacha de São Vicente de Paulo. De admitir que venha desta peça o abafo dos lassalianos que no século XVIII e inícios do século XIX usavam sobre a sotaina uma espécie de casacão com as mangas a adejar, tendo ficado conhecidos por "irmãos de quatro braços".

Património vestimentário: o conjunto indumentário de São Vicente de Paulo completo, com a sotaina e a sobreveste. Em Itália e França ficou conhecida por manto. Para nós é seguramente uma garnacha simplificada, próxima da sobreveste usada por magistradaos e académicos de Espanha, Portugal e Gra-Bretanha. Abafo, talar, muito amplo, em sarja de lã, com pequena gola (não chega a ser cabeção), longas mangas pendentes ou mangas falsas como as do mantellone e cavas para a passagem dos braços. Costas lisas, ao contrário da garnacha que leva cós e saio. Sem bandas dianteiras.

Património vestimentário talar: sotaina de São Vicente de Paulo (1581-1660), acervo da congregação, Paris/Turim (St. Vicent de Paul-Image Archive).
Sotaina talar de corpo único em sarja de lã, de manufactura grosseira. Corte trapezoidal, muito acentuado dos braços para a bainha inferior. Pano das costas inteiriço (1, 46 m de altura) e totalmente liso, ao contrário das batinas talares que comportam elementos morfológicos como cós/saio/3 machos/ou 1 macho central e 2 pregas laterais). Dois rasgos verticais, dipostos lateralmente, para a passagem das mãos (algibeiras falsas). Colarinho raso, com cerca de 5 cm de altura, de corte irregular. Carcela curta, disposta sobre o peito, com oito casas e pequenos botões de madeira revestidos [esta é uma das principais distinções morfológicas entre a antiga sotaina e a batina. Até meados do século XVIII a sotaina vestia-se pela cabeça e não tinha carcela até aos pés, elemento que é próprio da batina]. Mangas tubulares, de corte encurvado, a estreitar do cotovelo para o punho, sem canhão, mas levando longa carcela de 9 botõezinhos forrados entre o punho e o cotovelo.
A sotaina ordinária, que nos dicionários e enciclopédias vem erradamente confundida com a batina, foi até ao século XVIII a veste mais generalizada entre o clero secular, os universitários, os jurisconsultos e os membros de institutos religiosos masculinos que foram surgindo na Europa desde a Contra-Reforma. Nem todas as sotainas eram de enfiar pela cabeça, sendo conhecidas variantes assertoadas para a direita e para a esquerda. Agora, o que era comum a todas estas variantes era a sua confeção simples (ao contrário da uniformização e rigidificação de linhas da batina romana, que teve de esperar pela máquina de costura) e o facto de serem vestidas por baixo de mantos, mantéus e até casacões à francesa no século XIX.
Este modelo de sotaina é, com insignificantes variantes, o mesmo que se observava em Itália, Espanha, França e Portugal:
-na veste talar dos jesuitas, conhecida por roupeta, de confeção singela, que se vestia pela cabeça e apertava com um cinto;
-na veste dos oratonianos italianos, cuja carcela vinha até à cintura;
-na veste dos somascos italianos, cuja carcela não tinha botões;
-na veste dos barnabitas, munida de pequena carcela peitoral sem botões;
-na veste dos padres da doutrina cristã;
-na veste dos clérigos regulares do serviço de doentes (São Camilo de Lelis);
-na veste dos clérigos regulares das escolas pias (carcelinha de 3 botões e meia capa de lã como os passionistas);
-na veste dos passionistas, com pequena carcela ligeiramente deslocada para a banda direita do externo.
Um dos maiores problemas para quem cai na tolice de quebrar a cabeça com o património indumentário eclesiástico anterior ao século XIX é a escassez de desenhos nítidos/pormenorizados (em geral gravuras e não moldes de alfaiate) e a inexistência de descrições detalhadas. Por influência da uniformologia militar, a partir do século XIX a maior parte dos regulamentos e estatutos das mais diversas instituições fornece abundantes pormenores sobre o feitio, cores, padrões texteis, dimensões, bolsos, vivos que um uniforme/veste profissional deve comportar. Anteriormente ao século XIX, a documentação eclesiástica e universitária limita-se a enunciar as cores "defesas" (=proibidas) e a dizer o nome da veste talar. Nada se adianta sobre o número de peças, o feitio e as dimensões, atitude própria do racionalismo dos séculos XIX e XX. Para baralhar ainda mais, o que se escreve é que as vestes devem estar em sintonia com o que é costume usar-se numa determinada época. Assim falam as constituições sinodais e os estatutos universitários portugueses e espanhóis. À medida que se vai progredindo na investigação, rapidamente se percebe que não havia uma veste uniformizada ou padronizada. O que havia era uma veste talar com variantes e todas essas variantes eram aceites como legítimas desde que o seu portador respeitasse o decoro e as normas de civilidade. Em vez de um uniforme constituído por X peças, predominava nos meios eclesiástico, judiciário e universitário o conceito de enxoval. Enxoval significava o guarda-roupa composto por vestes, calçado e adereços. Essas vestes subdividiam-se em 6 categorias principais:

1) domésticas ou ordinárias (com especificidades para o coro);
2) hábito de rua (tenue de ville), correspondendo ao traje campesino domingueiro ou de ver a Deus;
3) de cerimónia ou de gala;
4) de Verão, em tecidos leves;
5) de Inverno, em tecidos pesados e encorpados;
6) de viagem, de confeção funcional e corte prático.

Entre o clero regular, certas instituições também subdiviam os trajes regulamentados em: hábito de noviço, pequeno hábito (trabalho) e grande hábito (cerimónia).

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Registo fílmico sobre a procissão da Rainha Santa Isabel (2012)

Não resisti a divulgar este vídeo editado por André Simões em 9.7.2012 sobre a procissão do regresso da imagem sacra da Rainha Santa Isabel ao mosteiro de Santa Clara-a-Nova, que teve lugar em Coimbra em julho de 2012.
Nos segmentos de maior interesse para este blogue, destacamos:

1-desfile de estudantes da Universidade de Coimbra, estudantes de estabelecimentos de ensino superior e antigos estudantes, com as suas capas e insígnias. Como se pode ver, desfilam conforme dispõe a rubrica académica e católica, ou seja, com as capas postas nos ombros e não com capas dobradas/enroladas nem com chapéus na cabeça. O local atribuído aos estudantes da UC é que não tenho a certeza que esteja correcto. Na década de 1980 os estudantes faziam turnos nas varas do pálio e quando não pegavam às varas seguiam sempre a comitiva oficial dos lentes da UC que iam em hábito e com borla e capelo. Se a confraria mudou a rubrica só para fazer um ajuntamento cromático de muitos estudantes com capas, bom terei de escrever que não me conformo com a inventona;
2-possibilidade de visualizar na frente do andor o mestre de cerimónias com o respetivo traje e maça;
3-após o porta-maça, possibilidade de visualizar os irmãos da confraria com as varas de prata.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Retrato do seminarista Eladi España i Navarro (1894-1972), estudante no seminário conciliar de Valencia na 2.ª década do século XX (1912 e ss.).
Enverga o antigo traje de loba talar, mas a sobreveste corresponde à beca aberta, próxima da chamada chimera/soprana/mantellone de mangas falsas, com longo rasgo vertical na dianteira (não confundir com carcela) e sem cós/saio no pano das costas.
Fonte: http://antoniosabetermira.globerred.com/categoria.asp?idcat=123

Retrato de Alfonso Sebastiá Viñals (1910-1936), beato da Igreja Católica, sacerdote, formado no seminário conciliar de Valencia, fuzilado em 1936.
Enverga a variante clássica do traje dos antigos alunos dos seminários católicos e universidades da Pensínsula Ibérica e territórios da América Latina:

-veste de baixo ou sotaina trapezoidal, dita nos documemtos anteriores ao século XIX "çarrada", por ser de vestir e despir pela cabeça. Não tinha colarinho algum e na frente, sobre o peito, metia uma carcela de cerca de um palmo. Era em pano preto, mas nalgumas gravuras e retratos de época observa-se um tom acastanhado. O que era próprio das sotainas ordinárias era serem vestidas pelo pescoço, não tendo mais de que uma curta carcela peitoral, sendo as costas lisas e sem saio, como acontece na erradamente chamada batina ambrosiana de Milão (que é para todos os efeitos uma velha sotaina e não tem caraterísticas regionais), na roupeta dos jesuítas e na veste dos padres passionistas;
-sobreveste trapezoidal, com orifício folgado para a cabeça/pescoço e rasgos nos ombros para a passagem das mangas da sotaina. Nalguns exemplares visualizados, não havia costuras de ombros, sendo a sobreveste fixada com fitilhos;
-barrete de quatro picos;
-beca comprida, vermelha (?), lançada em V sobre os ombros, com longas pontas a cair pelas costas. Nalguns seminários espanhóis e da América Latina aplicava-se no lado esquerdo da beca o brasão da instituição. Este tipo de estola também se usou em alguns seminários portugueses e pelo menos em dois colégios agregados à Universidade de Coimbra.
Fonte: http://www.acdp.es/?page_id=103

domingo, 16 de dezembro de 2012

Retrato do Dr. Bráulio Lauro Pereira da Silva Caldas (Caldas de Vizela, 1861; idem, 1905), poeta, jornalista, professor liceal, advogado e entusiasta da causa republicana que se formou em Direito e Teologia na Universidade de Coimbra em 1889. Foi da geração de dois importantes serenateiros académicos que cantavam e tocavam guitarra, Manuel dos Santos Melo da Cruz e Jaime de Abreu. Não está provado que fosse cantor, mas fez versos que ficaram famosos como a silva de cantigas «Murmura rio murmura», que Reynaldo Varella integrou no Fado das Três Horas (1887). Foi também o autor da copla «Foge Lua envergonhada» erradamente atribuída ao estudante Augusto Hilário.
Na imagem, Bráulio veste a toga de modelo tradicionalizado entre os advogados estabelecidos entre Douro e Minho, sem carcela dianteira, ornada e fechada com três jogos de rosetas e alamares de seda. Fonte: publicado com a autorização de Júlio César Ferreira, Nomes prá História, edição de 22.10.2006, http://romana1.blogspot.pt/2006_10_22_archive.html