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terça-feira, 26 de junho de 2012

Rubrica em fotografias do patriarca D. António Mendes Belo

Momento da cerimónia de investidura do novo patriarca de Lisboa em 1908, D. António Mendes Belo. O cliché parece ter sido captado quando o cortejo se dirigia da igreja da Madalena para a Sé. Alguns pormenores a sublinhar: o novo patriarca enverga vestes corais e sai do templo debaixo de pálio a cujas varas pegam os membros do governo em uniforme de gala (a rubrica determina precedências na distribuição das varas, que julgo serem bem conhecidas). Um pouco à frente do pálio avistam-se cerimoniários com varas altas. Em grande plano, um oficial da casa patriarcal em matellone. O nível de pormenor é excelente: não é propriamente fácil descrever um mantellone. Trata-se de uma sobreveste de seda, semelhante a um casacão, totalmente aberta na frente, que apresenta duas variantes:

a) com mangas metidas nas cavas dos ombros e cosidas às costuras duas longas tiras de pano que são mangas falsas, vendo-se ao todo quatro mangas pendentes. Os irmãos salesianos usavam no século XVIII e nos inícios do século XIX um abafo algo semelhante ao mantellone, que deitavam pelos ombros, ficando as duas mangas a adejar, pelo que eram conhecidos pela alcunha de "irmãos de quatro braços";
b) sem mangas metidas nas cavas dos ombros, apresentando apenas duas compridas mangas falsas. É o que se vê "claramente visto" na imagem, um mantellone de mangas falsas, saindo os braços da batina pelas cavas. Esta mesma veste, useira nos seminários católicos estabelecidos em Roma, e levando vivos em determinadas cores distintivas, era conhecida por soprana. Se me perguntarem porque é que os católicos romanos chamavam soprana ao mantellone, sinceramente não sei responder. Mas já sei dizer que se trata mais coisa menos coisa da mesma veste a que os ingleses de Oxford chamam chimera e os antigos de Coimbra diziam ser a sobreveste da loba aberta pela dianteira, para distinguir da outra variante que era a loba cerrada.
Do lado oposto, há ainda uma figura merecedora da destaque que enverga crocia de seda. Estes cerimoniários vestiam-se imitando os oficiais da casa papal e nas procissões de aparato, como era o caso do Corpus Chisti, transportavam as insígnias dos cardeais patriarcas. A crocia era um traje duplo, morfologicamente complexo, que levava sobremangas como as garnachas e romeira deitada de través.
Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, PT/AMLSB/JBN/000069

Traje de gala de bedel ou suiço à antiga francesa que no início do século XX só aparecia de longe em longe num ou noutro bedel de sinagoga, como é o caso. Nos templos católicos franceses a toga fora quase integralmente substituída por uma libré de casaca e bicórnio.

Exemplares da alabarda e canas de suiço da igreja paroquial de Saint-Osvald, Mussing, Ref.ª IVR42_200167 D 1080

Cana de bedel ou suiço das igrejas francesas. Modelo generalizado no século XIX constituído por fuste cilindriforme em madeira, base de latão afunilada, maçaneta ou ponteira de latão. Os modelos ricos tinham engastes em prata trabalhada e eram envoltos em cordões de borlas.
Exemplar da igreja de Notre-Dame, Saint-Omer/Pas de Calais, Ref.ª IVR31_2010 6203461, http://www.culture.gouv.fr/

Pároco francês, capelães e suiços com libré de gala

Bicórnio de suiço das igrejas francesas, em preto integral apropriado para cerimónias fúnebres.

Bedel ou suiço (mestre de cerimónias) das igrejas francesas em libré de gala civil: casaca agaloada, dragonas, tabalarte bordado, bicórnio com plumas, boldrié, espadim, cana ornamentada com cordão de borlas, alabarda ao ombro, luvas, calções, meias de seda e sapatos de fivela.
O suiço tinha a seu cargo manter a boa ordem nos templos, reuniões e assembleias. Auxiliava os ministros no que fosse necessário. Marchava com as respetivas insígnias na cabeça das procissões, dos cortejos de casamento e dos préstitos fúnebres.
Caído em desuso após a Grande Guerra de 1914-18, o suiço começa a ser recuperado por diversas igrejas e grupos de prática religiosa em França e na Suiça.
Fonte: http://www.paris.catholique.fr/826-costume-de-Suisse.html

Bedel ou suiço (mestre de cerimónias) das igrejas da diocese de Paris. Modelo correspondente ao pequeno uniforme ou farda n.º 2. Casaco assertoado e agaloado, dragonas, espadim, calças compridas com vivo lateral, bicórnio e cana. Segunda metade do século XIX, inícios do século XX.
Fonte: http://www.paris.catholique.fr/826-costume-de-Suisse.html

Casaca da libré dos porteiros da cana da casa real portuguesa, feitio das costas
Acervo do Museu Nacional dos Coches, N.º de Inv. F 0821

Casaca agaloada da farda direita à francesa ou grande libré dos porteiros da cana da casa real portuguesa, finais da década de 1820, inícios do decénio de 1830.
No período da monarquia constitucional os porteiros da cana desfilavam na vanguarda dos cortejos reais. Nos salões e nos templos auxiliavam o mordomo-mor e o mestre-sala na boa execução do cerimonial público. A sua insígnia era um bastão ou cana com o escudo real gravado na empunhadura.
Acervo do Museu Nacional dos Coches, N.º de Inv. F 081 (ver também F 58409)

Libré de gala à francesa de porteiro da cana da casa real portuguesa, época napoleónica, com o característico napoleão armado e acairelado, ostentando a cocarda de seda . Aguarela incompleta, omitindo os sapatos de fivela, o boldrié, o espadim, a cana (bastão), o tabalarte e as dragonas. Paineis de azulejo setecentistas preservados em Portugal (ex: edifício da Universidade de Évora da Companhia de Jesus) e no Brasil mostram o anterior traje dos porteiros, de grande casaca de corte e tricórnio de feltro, com a inseparável cana na mão.
Acervo do Museu Nacional dos Coches, N.º de Inv. HD0055

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Exemplar de bicórnio de feltro preto, ornado de galão e presilha, usado pelos porteiros de libré da casa do patriarca de Lisboa.
É o mesmo modelo que se avista na mão do porteiro que acompanha o patriarca D. António Mendes Belo.
Peça do acervo do Museu Nacional dos Coches, N.º Inv. F 1039

Lisboa, 1980: momentos públicos associados à investidura de D. António Mendes Belo como patriarca de Lisboa
Na imagem, a carruagem do patriarcado com o cocheiro sentado. O patriarca sai da carruagem, auxiliado pelos oficiais da casa patriarcal, um deles em mantellone. De costas, um oficial de libré bordada e agaloada, com o bicórnio na mão, em posição de cortesia. Trata-se de uma grande libré à francesa, de calção e casaca de abas de grilo, próxima do modelo adoptado no reinado de D. José I, que também era usada por suiços das catedrais francesas (entenda-se os bedeis ou mestres de cerimónias de alabarda e cana). A etiqueta de rigor exigia aos criados e oficiais reverência com a cabeça descoberta. Um erro iconográfico muito comum nos retratos a óleo e fotografias dos cardeais romanos: o barrete comporta borla de seda escarlate quando o barrete cardinalício não tem nem pode ter borla alguma!
Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, PT/AMLSB/LIM/000239

domingo, 24 de junho de 2012

Lisboa, 1928: o patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo, sentado com o núncio apostólico, Mr. Beda Cardinalle
Predomina a diversidade vestimentária no conjunto. O núncio veste o hábito piano romano aprovado por Pio IX em 7.1.1851 como traje próprio para ir às audiências papais. Trata-se de uma sotaina de confecção caprichada, a que os alfaiates romanos chamam zimarra (samarra ou chamarra é que ela não é morfologicamente, mas adiante), com a manga muito trabalhada ao nível do canhão e da sobremanga, romeira de ombros e colarinho alto (uns 3cm), avivada e toda debruada nas bainhas, que completa com o mantéu de grande gala em seda (antes de 1870 o ferraiollone, depois desta data um mantéu com menos pano, conhecido por ferraiollo).
Junto do núncio, o patriarca Mendes Belo veste modestamente a sua batina de seda, trazendo pelos ombros uma romeira. De pé, em primeiro plano, um padre com sotaina preta talar, tradicionalmente conhecida por sotaina ordinária. É uma veste inteiriça, de três panos de lã costurados na vertical, que leva dois bolsos nas ilhargas, carcela dianteira e duas mangas unidas às cavas dos ombros. As mangas afunilam na direção dos punhos e não levam ornato algum (nem canhão, nem sobremanga). A carcela abre diretamente sobre o pano dianteiro esquerdo, com caseado manual e botõezinhos de chifre, crina ou mesmo cerzidos a agulha. Na parte posterior forma um saio, sem costura horizontal, com três machos. Não tem colarinho, ou então o colarinho é muito baixo (ca. 1cm de altura). Diferentemente da batina romana, não tem os dois cordões metidos entre a cintura e o sovaco que servem para não deixar a faixa escorregar [sendo eu aprendiz do tema, o cónego Brito Cardoso, que estudou em Roma, sempre vincou muito fortemente esta diferença entre a batina romana e a antiga sotaina portuguesa].
Imediatamente ao lado vemos outro clérigo com batina e viatório. O viatório é um casacão preto comprido, de costas lisas e abotoadura assertoada que surgiu em França na década de 1850. Popularizou-se em Roma a partir de 1870 e passou a ser regularmente usado pelo papa e pelos cardeais que se sentiam intimidados com a unificação italiana e com o processo de descristianização. Não é nem nunca foi considerado um abafo de gala. Nunca foi autorizado nas audiências papais. Pode substituir a capa de inverno (capote ou tabarro, em Espanha chamado "capa espanhola") mas nunca o ferraiollo. O seu nome original é "douillete", chamando-lhe os espanhóis duletta. O viatório pode ser avivado na cor própria de cada dignidade, sendo o dos papas integralmente branco. Pormenor curioso, muitas fotografias de viatórios confirmam a gola de veludo preto, uma inventona não autorizada pois o pano de veludo é privativo dos pontífices.
A terceira figura de pé veste a chamada zimarra romana, uma sotaina muito melhorada na qualidade dos acabamentos, com a típica manga trabalhada ao nível do canhão e da sobremanga. Falta-lhe a romeira de ombros. Como já foi explicitado, só na década de 1850 é que esta veste foi autorizada no palácio apostólico, tendo-se popularizado rapidamente, a ponto de quase ter feito desaparecer na Europa continental a variedade de sotainas ordinárias usadas conforme os costumes nacionais [características predominantes: a) as sotainas eram de vestir pela cabeça, modelo generalizado nas congregações masculinas, incluindo a Companhia de Jesus e os Passionistas, donde darmos por inaceitável a chamada "batina ambrosiana" ou "batina à moda de Milão"; b) as sotainas tinham as costas lisas, ao contrário da batina de coro e da chamada zimarra romana que levam saio posterior de três machos; c) as sotainas que não se vestiam pela cabeça tinham carcela assertoada, como as gregas, as inglesas e a variante portuguesa que se vestia sob a garnacha dos desembargadores; d) as sotainas eram geralmente de feitio trapezoidal, alargando do pescocoço para as pernas; e) as sotainas não tinham colarinho, embora a veste de algumas congregações masculinas pudesse ostentar uma tirinha de pano com os rebordos revirados para o exterior (vide a sotaina dos jesuitas); f) as sotainas não tinham cauda rastejante; g) na variante francesa, a sotaina era muito justinha ao corpo nos braços, costas e tronco, sendo necessário alargar costuras ou mandar fazer uma nova quando os detentores começavam a ganhar peso; h) em contextos cerimoniais as sotainas era recobertas com grandes capas e sobrevestes com e sem mangas, conhecidas por togas, garnachas, sopranas, mantellones].
Na quarta figura de pé, vê-se muito nitidamente o conjunto batina e romeira. Há dúvidas quanto à origem deste abafo inicialmente usado em contextos domésticos. O muito seguro e bem informado protonário apostólico Montault (Le costume, 1898) informa que a romeira tem origem francesa e que a viu nascer sendo seminarista em 1850 em Saint-Sulpice (Paris). Os franceses chama-lhe "pélerine". Tudo parece estar muito certo na argumentação de Montault, não foram dois pormenores expressivos: 1) retrato a óleo do padre Antonio Rosmini (1797-1855) existente na Pinacoteca de Brera, Milão, possivelmente da década de 1840, que figura claramente a zimarra e a romeira curtinha e cortada de viés; 2) retrato do reitor do Colégio dos Ingleses em Roma, Nicholas Viseman, que governou a casa entre 1828-1840, mais tarde cardeal de Westminster, envergando zimarra e romeira. Ergo, a romeira parece ter surgido nos seminários católicos estabelecidos na cidade de Roma pelas décadas de 1830-1840 como hábito doméstico. No caso dos seminaristas exprimia a sua subordinação aos professores e reitores.
No fim da fila, um clérigo com hábito composto por batina e capa talar romana talhada no mesmo feitio do ferraiollo. Para os alfaiates romanos, um ferraiolo bem feito era talhado numa única peça de lã ou seda.
Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, PT/AMLSB/EFC/000589

Fotografia do galero cardinalício de Eugénio Pacelli, confeccionado pela chapelaria romana Tanfari & Bertarelli, imposto pelo pontífice em 1929, de modelo idêntico ao de Mendes Belo e ao que foi enviado ao cardeal Cerejeira. A imagem não mostra os dois jogos de borlas a que os chapeleiros romanos chamavam "fioccatura".
Fonte: http://www.papalartifacts.com/item/453

Lisboa, 1929: cortejo fúnebre do patriarca de Lisboa D. António Mendes Belo. Saída da Sé de Lisboa
Na segunda fila a contar da frente, cerimoniários transportam as insígnias cardinalícias: à esquerda, o barrete; ao centro o galero com as borlas deitadas sobre a copa. O galero era um chapéu de ostentação, em feltro ou forrado de seda, que se usava no rito de investidura, nas cavalgadas solenes, nas entradas régias e nas cerimónias fúnebres. Após a morte dos cardeais romanos era costume suspender o galero sobre o respetivo túmulo, tradição que não aparece iconograficamente documentada no caso português. As borlas eram amovíveis, fixando-se cado jogo à base da copa e deixando-o cair pelo peito. O último patriarca de Lisboa que recebeu o galero foi D. Manuel Gonçalves Cerejeira. Na fotografia que conhecemos, o galero é exibido em proximidade por um cerimoniário, e o modelo forrado de seda é exatamente idêntico ao que foi entregue em 1929 a Eugénio Pacelli, futuro Pio XII. Esta cobertura de cabeça viria a ser abandonada após o Vaticano II, em 1969, embora haja alguns cardeais mais conservadores que ainda encomendam o seu galero, chapéu que nos dicionários e na internet anda [mal] confundido com o capello romano ou saturno, um chapelinho francês de meados do século XIX que veio substituir o chapéu eclesiástico comum ou tricórnio.
De acordo com a rubrica do grande cerimonial monárquico, católico, universitário e militar, os chapéus-insígnias são transportados nos cortejos fúnebres: a) aos pés do corpo deitado em esquife (sécs. XV a XVII); b) sobre o ataúde, quando fechado (ex: cerimonial monárquico britânico, cerimonial militar, cerimonial judiciário italiano); d) por um dignitário que segue atrás do ataúde (cerimonial da Universidade de Coimbra, cerimonial católico romano).
Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, PT/AMLSB/EFC/000097