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domingo, 4 de outubro de 2009


Barrete doutoral de Medicina, século XVII: franjado e pega em amarelo-ouro. Pintura a fresco no tecto da Sala do Exame Privado da UC.


Barrete doutoral de Leis (Direito Civil), século XVII: franjado e pega em vermelho-rubi.


Barrete doutoral de Cânones, século XVII: estrutura troncónica preta, franjado e pega em verde esmeralda.


Barrete doutoral de Teologia, de estrutura preta troncónica, amplo franjado de seda branca e pega superior. Modelo redondo, típico do século XVII, tecto da Sala do Exame Privado da UC.


Figuração escultórica do barrete doutoral nos Gerais da UC, finais do século XVII. Predomínio do modelo redondo preto, com farta borla de tufos de seda a cobrir praticamente toda a copa e ilharga, com pega em forma de florão comedido.


A estátua de São Tomás de Aquino lavrada na segunda metade do século XVI para o colégio conimbricense que os domicanos edificaram na Rua da Sofia. Confirmando o costume, São Tomás enverga hábito talar dominicano e exibe barrete doutoral redondo com borla branca de Teologia. A borla de tufos de seda cobre sensivelmente metade da copa do barrete que ainda não apresenta vestígios da pega.


Barrete doutoral com borla de seda verde (Direito Canónico) e vivos nas cristas que ornam a copa. Modelo histórico usado desde o século XVI nas universidades católicas ocidentais, conheceu inúmeras variantes em Portugal, Espanha, França, Itália e Polónia.
O modelo quadrangular, de estrutura cartonada rígida, é o mais conhecido, embora os estatutos da UC admitissem em pé de igualdade o barrete redondo. Desaparecido das universidades francesas, ibéricas e italianas, este tipo de barrete ainda ocorre em algumas universidades católicas norte-americanas, sendo dificílimo encontrar quem ainda o conheça nas universidades católicas da cidade de Roma.

Hábito franciscano


Monge jerónimo com a respectiva indumentária e acessórios (guarda-chuva e tricórnio).


Hábitos de ordens relógiosas portuguesas que tiveram colégios estabelecidos junto da UC até 1834 para os seus alunos e docentes (franciscanos, dominicanos, carmelitas e beneditinos). Não deixa de ser curioso constatar que o hábito beneditino viria a ser re-adaptado pela Universidade do Minho em 1984 como traje do corpo docente.

O Padre Doutor Francisco Suarez, com o hábito jesuítico e o barrete doutoral de Teologia.


Figuração do hábito dos padres da Companhia de Jesus que entre meados do século XVI e meados do século XVIII liderou o Colégio de Jesus e a Faculdade de Artes Liberais ou Real Colégio das Artes. O hábito jesuítico usado pelos mestres e escolares era do mesmo figurino e cor: capa talar preta, de corte singelo, sem bandas dianteiras nem gola; túnica talar preta, ordinariamente conhecida por roupeta, que se apertava com cinto de pano, de enfiar pela cabeça, abrindo na frente, entre a base do pescoço e o meio do peito; barrete preto de quatro cantos, sobrepojado por cristas e pompom.

Monge trino, com sapato de fivela, hábito talar branco, escapulário branco, murça sobrepujada por cruz, capa preta talar e tricórnio de feltro. Exemplo do modo de vestir dos derradeiros ocupantes do Colégio da Santíssima Trindade.


Ainda não se procedeu a um levantamento minimamente satisfatório da multiplicidade de hábitos usados nos diversos institutos e colégios que integraram a UC entre o século XVI e 1834.
Chapéu, romeira e hábito semelhantes aos elementos representados supra seriam usados pelos inquilinos do Colégio dos Lóios ou Colégio dos Cónegos Regrantes de São João Evangelista.

Património vestimentário e insigniário... (cont.)
Olhares sobre as insígnias doutorais conimbricenses

As insígnias doutorais da UC, conjunto ostentatório e único no panorama artesanal ocidental, são constituídas por um anel, uma cobertura de ombros (capelo) e uma cobertura de cabeça (barrete de borlas). Ao contrário de situações observadas nos dignitários do clero romano, magistrados britânicos e franceses, e doutores italianos e polacos, os doutores conimbricenses nunca usaram insígnias revestidas de arminhos, coelho ou raposa.
O anel doutoral era privativo dos doutores, com base em ouro e gema na cor da especialidade científica, tradicionalmente ofertado pelo “padrinho”[1]. O anel não autoriza mistura de cores, a não ser que a cor oficial de uma Faculdade seja mista. O anel, com ou sem sinete, era uma insígnia comum a monarcas, bispos, cardeais e doutores de universidades italianas, ibéricas e inglesas.
O capelo dos doutores é confeccionado em dois padrões de tecido rico, a murça interna em veludo e a sobre-murça em cetim, com o trabalho de passamanaria em fio de seda natural. A borla apenas autoriza dois padrões de tecido, o forro da estrutura cartonada em cetim e a passamaria em fio de seda natural.
A seda preta, lavrada e lisa, era usada na confecção do hábito talar de gala dos doutores. Quando aplicada em insígnias, a seda lavrada e lisa era reservada aos capelos dos licenciados e bacharéis (séculos XVI-XVIII). Contudo, no século XVII e primeira metade do XVIII, a seda é aceite no forro dos capelos dos doutores/ou mestres de Cânones, Leis, Medicina e Artes Liberais, prática definitivamente abandonada após a reforma pombalina de 1772.
As insígnias próprias dos graus académicos de bacharel, licenciado e mestre/ou doutor, são referenciadas desde o século XV em sucessivos estatutos, sem que os articulados caracterizem o modelo adoptado. O cuidado do legislador centra-se primeiramente na identificação de cada uma das cores científicas e posteriormente nos tecidos a adoptar e na mistura de cores autorizadas. A morfologia e a ornamentação persistem longamente ao sabor da tradição oral, do gosto do graduando e das capacidades da bordadeira. Só muito tardiamente, no texto dos estatutos de 1772 ocorre uma referência aos alamares dos capelos, uma prática em uso generalizado desde o século XVI.
De onde promana o modelo de insígnias doutorais estabilizado desde os alvores do século XIX? De acordo com o relato oral, as insígnias doutorais com o capelo de romeira dupla e alamares barrocos, bem como o barrete redondo de borlas e pega, remontam à Reforma Pombalina de 1772. As pesquisas realizadas desde 1989 confirmam as linhas de força deste relato.
Tudo indica que do entendimento entre o reformador Marquês de Pombal e o Reitor D. Francisco de Lemos resultou a fixação dos mesmos tecidos em todas as Faculdades (veludo e cetim), a estandardização dos alamares e o triunfo definitivo do barrete redondo sobre o quadrangular. As insígnias expressamente confeccionadas para as investiduras dos lentes escolhidos pelo reformador durante os dias de estadia em Coimbra terão garantido o prestígio e a morfologia definitiva da borla e capelo. O barrete circular concebido como forma geométrica perfeita espelhava o brilho e esplendor dos estudos reformados. A estrutura cartonada preta passa a ser da mesma cor da especialidade científica, a copa ganha um fundo duplo, a pega passa de três para cinco bolbos e o fundo começa a ser profusamente ornamentado. Relativamente ao capelo, a murça interna que tinha carcela de botõezinhos e alamares (conforme o capelo dos cónegos da Sé de Lisboa), abandonou definitivamente a carcela.

Sinopse
Estatutos de 1431
[2]: referem sumariamente o cerimonial mas não a morfologia das insígnias, nem as cores. O texto é substancialmente omisso em matéria de tecidos. Na parte relativa à cerimónia de doutoramento distingue-se entre tecidos e de Verão e de Inverno, autorizando-se forro de pele no Inverno e de cendal no Verão.
Estatutos Manuelinos (ca. 1503)[3]: enunciam o cerimonial. Confirmam as cores das escolas existentes, vermelho para Leis, verde para Cânones, branco para Teologia, amarelo para Medicina e azul-escuro para Artes Liberais. Precisam que as insígnias doutorais são constituídas por anel, capelo e barrete com borla. Não facultam dados sobre a morfologia, numa época em que o barrete de borla era semelhante ao camauro ou coifa papal e o capelo abotoado na frente e munido de longo capuz dorsal;
Estatutos Joaninos (1559)[4]: confirmam as cinco cores herdadas do século XV. Definem as seguintes normas:
-doutores em Teologia que fossem possuidores do mestrado em Artes Liberais, capelo em veludo branco, sendo o forro em cetim azul e a borla branca (base preta);
-doutores em Teologia, capelo em veludo branco, sendo o forro em cetim branco e a borla branca (estrutura preta);
-doutores em Cânones, capelo em veludo verde, sendo o forro de cetim verde e a borla verde (estrutura preta);
-doutores em Leis, capelo em veludo carmesim, sendo o forro em cetim e a borla na mesma cor com tufos e retrós (estrutura preta);
-doutores em Leis detentores de mestrado em Artes Liberais, capelo em veludo carmesim, com forro de cetim azul-escuro e a borla vermelha (estrutura preta);
-doutores em “utroque jure” (Leis e Cânones): capelo em veludo na cor da primeira ciência em que foi obtido o grau e o forro cetim na segunda ciência. Borla com mistura de cores nos tufos (estrutura preta);
-doutores em Medicina, capelo em veludo amarelo, forro de cetim amarelo e borla amarela (estrutura preta);
-doutores em Medicina detentores de mestrado em Artes Liberais, capelo de veludo amarelo, forro em cetim azul-escuro e borla azul e amarela (estrutura preta);
-mestres em Artes Liberais, capelo em veludo azul vil, forro em cetim azul e borla azul (estrutura preta);
-bacharéis em Teologia, capelo de seda branca;
-bacharéis em Medicina, capelo de seda amarela.

Especifica-se ainda o porte do anel de ouro com gema para os doutores e mestres, mas nada se acrescenta quanto à borla que seria ornamentada com fios de seda lisa em todas as Faculdades, excepto na de Leis que tinha o privilégio do uso de fios de seda retorcidos. Relativamente aos bacharéis e licenciados não se referem coberturas de cabeça associadas aos graus. Enquanto que nas universidades britânicas e escocesas o bacharel e o licenciado tinham direito a capelo e borla individualizados, nas universidades ibéricas estes graus prescreviam apenas a existência de capelos para certas ciências. O que era imposto na cabeça dos graduandos era o barrete do doutor que presidia ao acto, tradição que se manteve na UC até 1910.

Estatutos Filipinos (1612, ou “estatutos velhos” reconfirmados em 1653)[5]:
-doutores em Teologia, detentores de mestrado em Artes Liberais, capelo de veludo branco, com forro de cetim/tafetá azul-escuro. Borla branca, sendo a estrutura cartonada preta[6];
-doutores em Teologia, capelo de veludo branco, forrado de cetim branco e borla de fiapos de seda branca (estrutura preta);
-doutores em Teologia, pertencentes ao clero regular e secular, tinham privilégio do uso de barrete sem capelo,
-doutores em Direito Canónico, capelos de veludo verde, forro verde de seda. Borla de tufos de seda verde sobre fundo preto;
-doutores em Direito Canónico com mestrado em Artes Liberais, capelo de veludo verde e forro de cetim/tafetá azul-escuro. Borla com mistura de verde e azul-escuro, sendo a estrutura preta;
-doutores em Leis (Direito Civil), capelo de veludo carmesim, forro de seda carmesim. Borla de retrós em seda carmesim sobre estrutura preta;
-doutores em Leis, com mestrado em Artes Liberais, capelo de veludo carmesim e forro em cetim azul-escuro. Borla carmesim e azul-escura, aplicada sobre estrutura redonda ou quadrangular preta;
-doutores in utroque jure (dois direitos), capelo de veludo na primeira ciência (Cânones ou Leis), forro de cetim na segunda ciência, e borlas com as duas cores misturadas;
-doutores em Medicina com mestrado em Artes Liberais, capelo de veludo amarelo, forro de seda azul-escura e borla amarela e azul sobre estrutura redonda ou quadrangular revestida de seda preta;
-doutores em Medicina, capelos de veludo amarelo e forro de seda amarela, sendo a borla toda amarela (excepto a estrutura cartonada que era em seda preta);
-mestres em Artes Liberais, capelo de veludo azul-escuro, sendo o forro de cetim/tafetá na mesma cor, e a borla de fios de seda azul-escura (estrutura redonda ou quadrangular revestida de seda preta);
-licenciado em Teologia, capelo de seda branca igual ao de bacharel;
-bacharéis em Teologia, capelo de seda branca;
-bacharéis em Medicina, capelo de seda amarela.

O anel de ouro com gema era reservado aos doutores de Teologia, Leis, Medicina e Cânones. Não se dispunha sobre a morfologia dos barretes, que podiam ser redondos e quadrangulares, nem sobre o talhe e ornamentação dos capelos. A análise detalhada do texto regulamentar e o seu confronto com a iconografia disponível permitem concluir que os capelos eram abertos sobre o peito, e ornamentados com alamares, sendo os dos bacharéis e licenciados de uma só romeira ou murça e os dos mestres e doutores de dupla murça. O texto não consagra barretes nem anéis para bacharéis e licenciados. O cerimonial relativo aos actos especifica que os candidatos deveriam arguir as provas com o capelo deitado pelos ombros, mas nunca abotoado, e cabeça descoberta, o que nos leva a concluir que as respectivas coberturas de cabeça eram os barretes pretos, redondos e quadrados, comuns aos estudantes.

Estatutos de 1772:
-doutores em Matemática, capelo de veludo azul claro, alamares e rosáceas de fio de seda branca, esfera armilar bordada a branco no lado esquerdo e borla azul-clara[7]. A UC, solícita às vontades do Marquês de Pombal, não aceitou a cor proposta, que curiosamente viria a impor-se nas faculdades de ciências após a Revolução Republicana de 1910. Na realidade, as insígnias confeccionadas pelas oficinas locais de passamanaria seguiram a velha tradição, isto é o capelo em veludo azul-claro forrado de cetim branco e barrete redondo com mistura de azul-claro e branco.
Nada se dispunha quanto a insígnias para bacharéis e licenciados das Faculdades de Matemática e Philosophia Natural. Quanto às cores, o azul-escuro de Artes Liberais transitou directamente para a nova Faculdade de Philosophia Natural. O azul claro e o branco foi consagrado a partir das cores identificativas das alegorias escolares medievais da Aritmética, Geometria e Astronomia, que por sua vez entroncavam na greco-romana Urânia com a sua túnica azul celeste, o globo terrestre, o compasso e o diadema de estrelas.

Antes da abolição do hábito talar e da suspensão do cerimonial conimbricense em 1910, não se registam por parte da UC nem dos etnógrafos portugueses qualquer curiosidade digna de registo pelas insígnias doutorais, simbologia, padrões texteis utilizados ou modo de confecção artesanal nas oficinas locais de passamanaria.
O trabalho de António José Teixeira, intitulado “Insígnias Doutoraes”, dado à estampa na Revista de Educação e Ensino, Volume V, 1890, páginas 145 a 151, emerge isoladamente na época.
Os retratos de antigos lentes e reitores da UC nunca foram alvo de qualquer projecto de análise iconográfica comparada nos séculos XIX e XX. Diversos retratos de lentes com hábitos religiosos e insígnias, oriundos de colégios extintos em 1834, não tiveram melhor sorte. Iconografia dispersa em baixos-relevos nos Gerais, frescos (tecto da Sala do Exame Privado, Capela da UC), arte sacra, retratos de benfeitores de irmandades, galerias de retratos de prelados diocesanos e figurinhas cerâmicas permaneceriam à distância dos investigadores. O desaparecimento da Faculdade de Cânones, em 1836, não motivou qualquer iniciativa da Casa Reitoral que visasse a preservação de um conjunto completo de insígnias, o mesmo tendo acontecido nos anos de 1910-1912 quanto à Faculdade de Teologia.
À medida que o discurso pró-abolicionista foi conquistando visibilidade em círculos restritos alimentados pelas elites burguesas, o cerimonial conimbricense, os hábitos académicos, as insígnias e os símbolos passaram a viver em estado de permanente acossamento entre defensores da manutenção/abolição. Procurando transpor as armadilhas da discursividade contingente que sistematicamente assimilou as insígnias conimbricenses à lenda negra da estética barroca e ao absolutismo político, importa sondar hipóteses interpretativas abertas que conduzam a novos olhares.

A morfologia aparentemente “bizarra” das insígnias doutorais deve ser comparada com insígnias que desempenharam funções contíguas na época da sua consolidação como produto artesanal individualizado. Importa compará-las com as coberturas de ombros e de cabeça usadas em galas e paradas públicas por dignitários de casas reais, cardeais romanos, militares e diplomatas.
Os conjuntos vestimentários de aparato que mais se aproximam da borla e capelo são:

-o manto de ombros e chapéu de Inverno dos antigos imperadores da China, em especial o último com pega superior alteada e abundante franjado de seda em torno da copa. Outra coincidência notável entre o conjunto insigniário conimbricense e o imperial chinês reside na estraordinária semelhança dos dois estojos onde eram guardados o capelo/manto e a borla/chapéu;
-a capa magna e o galero de borlas dos cardeais romanos, de porte continuado entre a Idade Média e 1969;
-o “traje de luces” adoptado pelos bandarilheiros, de origem espanhola setecentista, cuja ornamentação rocaille é próxima das insígnias conimbricenses;
-as vestes talares duplas e as coberturas de cabeça dos altos dignitários do antigo Império Otomano;
-a chapelaria religiosa dos monges do Tibete e Mongólia;
-o barrete dos doges italianos.

Em diversos países europeus e americanos, os capacetes e barretinas militares de aparato, adornados com penachos fixados em descansos metálicos, borlas e cordões, chegaram ao século XX. A tiara papal romana, e as tiaras dos patriarcas ortodoxos eram profusamente ornamentadas e em geral rematadas por florões ou pináculos exibitórios. Barretes redondos, de tipo fez, com copa circular plana e franjas ou borlas de fios nas ilhargas, eram confeccionados manualmente e usados por povos tão distantes como os clérigos etíopes ou as mulheres Adyga do Cáucaso Norte[8].
As coberturas de cabeça e vestes de aparato não se circunscreviam ao clero e à aristocracia. Em Portugal, entre o século XVIII e o primeiro quartel do século XX, incontáveis eram os camponeses e camponesas que usavam chapéus e gorros com pontas, rebordos e abas profusamente ornadas de borlas. As influências do “capello romano” e do galero dos cardeais parecem bem evidentes nestas soluções.
A título de amostragem, recordem-se:

-o sombreiro preto da Beira Litoral, usado entre Coimbra, Ovar e Murtosa, com derivações ovarinas em Lisboa, guarnecido de amplas abas ornadas de pompons e presilhas. Na sua versão mais complexa, o referido chapéu chegou a ter quatro pompons na aba e outros quatro dispostos na copa, ligados entre si por quatro presilhas ou cordões. Os chapéus eclesiásticos romanos da mesma época, e os dos rabinos franceses foram abundantemente figurados com este tipo de ornatos;
-o chapelinho de feltro feminino usado entre Vila Nova de Famalicão e Santarém, remontante a ca. 1870, quase sempre com aba dobrada em torno da copa e rebordo guarnecido de pompons ou “maçanetas”[9]. A semelhança deste chapelinho com o barrete dos bispos da Etiópia e da Roménia (skophia) dificilmente se poderá negar;
-símbolo de afirmação de poder e estatuto social eram também as mantilhas, biocos e capotes e capelos usadas desde o século XVI pelas mulheres da Flandres, Holanda, Espanha e Portugal, cujo uso se prolongou em Portugal até ca. 1950, e de que se conhecem ramificações na cidade brasileira de São Paulo.

No Álbum de costumes portugueses (1888), usam coberturas de cabeça ornadas com borlas o vendedor de palitos do Lorvão, a padeira de Avintes, o carregador de carvão dos barcos do Tejo, o condutor de tojo de Alcoentre, o campino ribatejano, a varina da Murtosa, o pastor da Serra da Estrela, a camponesa minhota, o camponês estremanho, o varino de Lisboa, o aguadeiro alentejano, a camponesa dos arrabaldes de Coimbra, os cegos cantadores, o moço de forcado ribatejano e a vendedeira do Porto. No que respeita aos uniformes, das oito recolhas documentadas no álbum apenas o remador das galeotas reais ostenta a tradicional barretina com a copa recamada de borlas franjadas.
Com funções de reforço da dignidade vicinal e comunitária semelhantes à borla e capelo eram também a coca e mantilha de Coimbra, o capote e capelo dos Açores, a capa de honras de Miranda do Douro, o chapeirão de pompons das mulheres da Beira Litoral e os chapéus em forma de raia gigante exibidos pelos docentes da UC que habitavam nos colégios dos franciscanos, beneditinos e carmelitas.

A incompreensão que fustigou as insígnias e o cerimonial da UC não se estendeu a outras instituições, tendo poupado o grande uniforme napoleónico generalizado em meados da década de 1850 nas Médico-Cirúrgicas e na Academia das Ciências de Lisboa. E argumentos não faltavam, pois além de ser um uniforme importado de França, fazia tábua rasa de respeitáveis librés portugueses cerimoniais como a dalmática, a opa das confrarias e o balandrau das misericórdias, conferindo ar sério a peças de recorte discutível como o bicórnio[10] e a casaca de abas de grilo.
Surpreendentemente, as únicas peças de vestuário, em geral oriundas do século XVI, que enfureceram os arautos dos bons costumes oitocentistas foram os capotes e mantilhas femininos rematados com rebuços, biocos e capelos. Com diversas designações, o capote e capelo, a coca e mantilha, ou mantilha e rebuço, foi usado pelas mulheres abastadas de Viana do Castelo, Guimarães, Braga, Porto[11], Coimbra[12], Lousã, Vila Velha de Ródão, aldeia de Monsanto[13], Portalegre[14], Olhão, Faro[15], Açores[16] e cidade de São Paulo[17].
Ao velho argumento que associava os rebuços à criminalidade, junta-se no decurso do século XIX o fantasma da burca islâmica. Mas as vozes que apoucavam a mantilha popular e o seu suposto atraso civilizacional eram as mesmas que consideravam a mulher menos apta do que o homem para os estudos, bem como mundo laboral e profissional.
Nas comunidades onde as cocas e mantilhas demoraram em uso, a possibilidade de possuir e exibir tal peça de vestuário em procissões, casamentos, baptizados, missas e funerais significava aquisição de estatuto social, e não o contrário como ventilavam interpretações desinformadas.
A coca e mantilha de Coimbra, com a sua vistosa calote em bico, sofreu diversas picardias na voz dos literatos Românticos. Por edital de 28 de Setembro de 1892 o governador civil de Faro, Júlio Lourenço Pinto, declarou o rebuço feminino interdito nos templos, povoações e actos públicos. Em São Paulo, D. João VI intentou proibir os mantos e rebuços femininos em 30 de Agosto de 1810. Escusado será dizer que nenhuma destas medidas proibicionistas alcançou resultados imediatos. No caso dos Açores o capote e capelo foi mantido como símbolo de aquisição de estatuto social até ca. 1950, altura em que foram avistados os últimos exemplares em missas e cerimónias fúnebres.
Já em relação aos capotes masculinos detectados nos meios provinciais, as atitudes dos alvitristas urbanos foram de grande condescendência. A capa de honras de Miranda do Douro, próxima de vestes eclesiásticas como a capa de asperges e a almucia dos monges de Santa Catarina do Monte Sinai, suscitou continuados embevecimentos. O capote alentejano, formulação local de um capotão urbano em voga nas cidades francesas e britânicas do primeiro quartel do século XIX, não sofreu qualquer depreciação. O gabão preto ou “varino” era uma veste de prestígio e continuaria a sê-lo mesmo depois de revelado o seu uso por um dos regicidas em 1 de Fevereiro de 1908.

As insígnias e o cerimonial serviam para reafirmar periodicamente a coesão interna dos três corpos constitutivos da Academia (lentes, escolares e funcionários). A ritualização da investidura doutoral possibilitava a pública encenação da produção do conhecimento e a renovação da Alma Mater, associando o saber à festa, vivência homeopática cujos benefícios o século XXI se encarregaria de reconfirmar.
O puritanismo burguês dos séculos XIX e XX não se esforçou por compreender a singularidade do fenómeno. Tudo parecia supérfluo, grotesco, como que apelando a um sensualismo esbanjador, num registo redutor que tanto condenava o cerimonial conimbricense, como o Mosteiro de Mafra, o Aqueduto das Águas Livres ou a peruca do rei D. João V. Seria necessário aguardar a década de 1960 para que o sistema cultural e moral burguês fosse também ele alvo de virulentas críticas. O estribilho cruel de Jacques Brel, “Les bourgeois c’est commme des cochons”, gravado em 1961 no tema “Les Bourgeois”, era apenas uma ponta do iceberg de um sistema cultural e ideológico povoado de obsessões e interditos, cuja faceta mais ridícula de há muito vinha a ser caricaturada sob a designação de “novo riquismo”.
As insígnias e o cerimonial serviam também para afirmar a imagem da UC no plano externo. Realçando a dignidade da instituição, permitiam construir uma poderosa imagem de singularidade inscrita no campo do património imaterial, tão eficaz como as mais bem congeminadas campanhas de marketing. Esta estratégia de poder radica numa identidade paradigmática, assumida e imitada ainda no século XIX pelas primeiras escolas de Direito do Brasil, a partir de 1915 pela Faculdade de Direito da UL, e em 1918 pelas universidades de Lisboa e Porto. O reconhecimento do desejo de apropriação do paradigma conimbricense, assumido descomplexadamente no Brasil, nem sempre foi afirmado em Portugal. E contudo, para além da questão da nacionalização das insígnias em 1918, os processos de imitação estenderam-se aos trajes e ao cerimonial, sinal indesmentível de admiração.

Um assistente da Faculdade de Medicina da UC, sensível a assuntos etnográficos e artísticos, Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, não deixou de chamar a atenção numa crónica de 1902 para representações da borla e capelo pelos oleiros e decoradores de cerâmica de Coimbra[18]. Procurando ilustrar, referiu expressamente a temática do Menino Jesus entre os doutores. Era porém a voz isolada de um republicano sensível às questões do património, não corroborada pelas correntes abolicionistas e proibicionistas do tempo.
Poucos dias corridos após a implantação da República, no dia 17 de Outubro de 1910, um grupo de estudantes anarquistas, conhecido por Falange Demagógica, assaltou o Paço das Escolas Gerais com machados, revólveres e bombas artesanais[19]. Na Sala dos Capelos e nas salas de aula de Direito e Teologia foram danificados os retratos régios e as cátedras onde os lentes liam as lições. Num compartimento contíguo à Sala dos Capelos, conhecido por “vestiário dos lentes”, o grupo esventrou cacifos, destruiu mobiliário e quadros ornamentais e rasgou borlas e capelos de Direito e Teologia.
Algumas das insígnias foram lançadas da varanda da Via Latina para o terreiro e outras pontapeadas até à entrada da Porta Férrea. Jornais e revistas mundanas acudiram a Coimbra e registaram o rasto de destruição deixado pelos falangistas. O Occidente, nº 1149, de 30 de Novembro de 1911, divulgou duas fotografias relativas ao esventramento do vestiário dos lentes, capas e batinas lançadas ao chão, capelos rasgados e estojos de latão das insígnias pontapeados. Reportagem mais completa editou a Illustração Portugueza, nº 245, de 31 de Outubro de 1910[20], num texto que justificava a violência como terapia.
A redescoberta intra-institucional do valor cultural e simbólico das insígnias doutorais terá de aguardar o sentido de perda alimentado pela Primeira Guerra Mundial e o confronto entre a estranha paralizia da UC e a afirmação pública de instituições como a Academia das Ciências de Lisboa, a UL e a UP. Em 21 de Julho de 1915 a Gazeta de Coimbra alertava em tom sensacionalista “A Universidade de Coimbra. Novo perigo que a ameaça” para os propósitos do ministro da Instrução Pública que anunciara a criação de uma faculdade de letras na Universidade do Porto.
O titular da pasta levou a proposta de criação de uma faculdade de letras, de uma faculdade de direito e de uma escola normal no Porto ao Parlamento, na sessão de segunda-feira, dia 2 de Agosto de 1915, conforme noticiou a Gazeta de Coimbra, na sua edição de 4 de Agosto de 1915.
Alguns dias mais tarde, sob o título “Reabertura da Universidade”, a Gazeta de Coimbra, de 20 de Outubro de 1915, lamentava a inércia Coimbrã face às aberturas solenes anualmente realizadas na UP, UL e Academia das Ciências de Lisboa, e aproveitava para lembrar que não obstante as hostilidades ao hábito talar e insígnias, em Lisboa os lentes integrados na nova Faculdade de Direito haviam comparecido na sessão solene de abertura da Academia das Ciências, realizada em 16 de Outubro de 1915, em hábito e borla e capelo. Lembrava-se ainda que nas universidades estrangeiras mais prestigiadas os trajes e insígnias continuavam em uso. O articulista ia mesmo mais longe, afirmando a borla e capelo superiores ao grande uniforme de académico, ao espadim e ao bicórnio.
Tendo finalmente compreendido que o processo político de anatematização visara apenas a UC, o Senado designou em 13 de Novembro de 1915 uma Comissão do Traje e Insígnias, constituída por António Faria Carneiro Pacheco (1887-1957), da Faculdade de Direito, António Garcia Ribeiro de Vasconcelos (1860-1941), da Faculdade de Letras, e Álvaro José da Silva Basto (1873-1924), da Faculdade de Ciências[21]. A figura mais prestigiada desta equipa era o cónego doutor António de Vasconcelos, um erudito conhecedor da história da Alma Mater, suas insígnias e cerimonial, cuja discreta presença contribuiu decisivamente para a manutenção da borla e capelo como insígnias doutorais em Coimbra, escolha e mistura das cores das especialidades científicas e apoio à retoma das aberturas solenes e rituais de investidura doutoral[22].
A Vasconcelos se ficarão a dever discursos de imposição de insígnias proferidos na Sala do Senado, que apesar de terem sido descodificados no século XX apenas como enunciados conservantistas católicos, são notáveis peças de erudição sobre o legado mitológico greco-romano na UC e chaves incontornáveis de interpretação da cultura imaterial e das respectivas linguagens simbólicas: “Alocução pronunciada… em 30 de Janeiro de 1918 pelo Director da Faculdade de Letras… no acto de conferir as insígnias doutorais ao Novo Doutor Manuel Gonçalves Cerejeira” (Coimbra, França Amado, 1920), “Alocução pronunciada… em 16 de Dezembro de 1919… no acto de conferir as insígnias doutorais aos novos Doutores Ferrand Pimentel de Almeida e João da Providência Sousa Costa” (Coimbra, França Amado, 1920), e “O uso das insígnias doutorais”, Correio de Coimbra, nº 117, de 26 de Julho de 1924.
Em meados da década de 1930 o lente da Faculdade de Medicina Alberto Moreira da Rocha Brito publica O primeiro dia de aula, a primeira casa, o primeiro lente… da Faculdade de Medicina, desde a última transferência da Universidade para Coimbra, Coimbra, Coimbra Editora, 1935, onde pela primeira vez se opera o cruzamento de informação escrita e iconográfica sobre diversos aspectos do cerimonial conimbricense, rituais e insígnias doutorais. Não era nada que os docentes da casa Joaquim Martins Teixeira de Carvalho e António de Vasconcelos não soubessem, mas coube a Rocha Brito condensar a informação melhor conhecida à data da publicação acima referida.
O autor, através de reproduções fotográficas a preto e branco chama a atenção para as figurações das insígnias doutorais das antigas escolas maiores no tecto da Sala do Exame Privado e galeria dos reitores, exercitando em tom positivista algumas das linhas mestras da ulteriormente chamada história da vida quotidiana e recolhe iconografia variada.
Estão neste caso a estátua quinhentista de São Tomás de Aquino, com barrete doutoral de época, que na década de 1930 viera do Palácio da Justiça de Coimbra para o Museu Nacional Machado de Castro e um painel de azulejos do Mosteiro de São Jorge alusivo a um “Menino Jesus entre os doutores”. Neste último motivo, o capelo dos “doutores”, aberto na frente, e ornado com seis alamares, aponta para uma figuração do capelo anterior à reforma pombalina. Sem perguntar pelo grau de fidelidade da representação, atente-se no ano de 1756 como data marcante da decoração deste mosteiro sito na margem esquerda do Mondego, uns quatro quilómetros adiante da Lapa dos Esteios.
Rocha Brito não se limitou a recolher iluminuras de aulas medievais, azulejos, esculturas, gravuras de viajantes como George Braunio, frescos, ou ilustrações de gramáticas. De parceria com o artista Arcindo Madeira idealizou a reconstituição do acto de licenciatura de um estudante de Medicina reportado a 1538. O desenho padece de algumas vulnerabilidades, sobretudo no que toca aos trajes do graduando e do bedel e a uma certa clonagem não aprofundada da escultura do São Tomás de Aquino. A ideia em si afigura-se bastante interessante, apesar de não ter seduzido continuadores.
Na transição da década de 1980 para o decénio de 1990 as insígnias doutorais conimbricenses voltaram a chamar as atenções dos investigadores. Em 1989 o assistente de História da Faculdade de Letras da UC Fernando Taveira da Fonseca discorreu “Acerca das insígnias doutorais na Universidade de Coimbra. Breve nota sobre um episódio da vida académica”, MUNDA, nº 18, Novembro de 1989, páginas 86-92. Confrontando os Estatutos Velhos, os Estatutos (pombalinos) de 1772 e o Diário do que se passou em Coimbra desde 22 de Setembro de 1772, o autor proporciona informação consistente sobre as insígnias doutorais adoptadas oficialmente na então criada Faculdade de Matemática.
Pouco depois, o sacerdote e estudante da Faculdade de Letras da UC José Eduardo Reis Coutinho assina um artigo intitulado “Insígnias doutorais de Coimbra”, MUNDA, nº 21, Maio de 1991, páginas 77 a 87. Trata-se de uma incursão erudita, apoiada em fontes académicas e textos religiosos, que contextualiza a origem espiritual e religiosa das universidades, cerimoniais e insígnias. A iconografia recolhida e legendada ilustra eficazmente o texto. O investigador apoia-se em imagens medievais de monges copistas, aulas com lentes na cátedra, uma xilogravura da “gramática de Estêvão Cavaleiro”, entre outras, para cerzir com competência e rigor os traços comuns e as diferenças entre insígnias de doutores, cónegos, bispos e cardeais. Outro aspecto positivo neste pequeno artigo respeita ao registo de vocabulário tradicionalmente empregue pelos lentes e bordadeiras locais.

Representações na galeria reitoral da Sala do Exame Privado
Os retratos reitorais de corpo inteiro anteriores ao século XVIII foram realizados ou refeitos em 1701 pelo pintor António Simões na Sala do Exame Privado. A morfologia dos barretes figurados obedece a duas tipologias em uso nessa data: o barrete redondo troncónico (pileus rotundus) e o barrete quadrangular com quatro arestas salientes (pileus quadratus). Eram ambos confeccionados em cartão, com revestimento de cetim ou seda preta. No centro da copa fixava-se uma borla de fartos fiapos, da qual emergia um florão ou pega revestida.
O barrete redondo vinha pelo menos de meados do século XVI, e na origem tinha uma borla de fios de seda bastante comedida, de tipo pompom. Pode visualizar-se uma imagem do barrete doutoral redondo numa estátua quinhentista de São Tomás de Aquino, proveniente do Colégio de São Tomás, que se encontra num portal lateral do Museu Nacional Machado de Castro. Respeitando a tradição, São Tomás ostenta o barrete doutoral de Teologia, mas não o capelo, envergando o hábito dominicano.
Na segunda metade do século XVI, primeiro em Salamanca, depois em Coimbra, os doutores teólogos consagraram a moda das borlas de fiapos longos, a cobrir toda a copa do barrete e a escorrer ilharga abaixo. A moda pegou, alastrou a outras universidades como Alcalà de Henares, e passou a ser cobiçada pelos doutores de leis, medicina e cânones.
O barrete quadrangular tem uma origem mais recuada. No século XV tinha a forma de coifa, talhada em quatro quartos, encimada por borla. Na primeira metade do século XVI mantinha a antiga estrutura maleável, com os seus quatro quartos, a bainha posterior a tapar o cachaço e a bainha da frente arqueada sobre a testa. Era o modelo de corbertura de cabeça mais usual nos humanistas, letrados e docentes, de Bolonha a Oxford. Estabiliza na segunda metade do século XVI numa estrutura cartonada preta, rígida, com o rebordo da copa recortado por quatro “cornos”, arestas, “cantos” ou lobos, podendo ter copa plana, côncava, convexa, cristas superiores em forma de cerro de peixe e borla de variados formatos (pompom, fiapos, florão), com intenso uso por eclesiásticos romanos, doutores ibéricos, polacos, e ainda doutores e juristas franceses.
Os juristas, juízes e doutores ibéricos do século XV usavam como barrete cerimonial um camauro de tecido preto, com o rebordo recortado na testa, que arredondava junto das orelhas e protegia o pescoço. Talhado em quartos de pano, cujas costuras podiam ser rematadas por dentro ou por fora, em crista, exibiam no centro da copa generosa borla de fios de seda na cor da especialidade científica. Doutoramentos em duas ou mais especialidades autorizavam a mistura de cores: vermelho/verde (Leis e Direito); azul/vermelho (Artes Liberais e Leis); vermelho/banco (Direito e Teologia), etc.
Na primeira metade do século XVI, o camauro evolui para um boné ou gorra de quartos, mais comprida na zona do pescoço e orelhas, recortada sobre a testa, com a calote a sugerir quatro saliências. Este modelo, conhecido por “Canterbury cap”, foi usado em toda a Europa e espaços coloniais católicos por doutores, juristas, eclesiásticos e humanistas. Dele se conhecem figurações relativas às universidades de Bolonha e Paris, bispos britânicos e retratos de Erasmo de Roterdão e Martinho Lutero.
Feito este esclarecimento, não são credíveis as figurações dos barretes doutorais dos reitores Frei Diogo de Murça, Afonso do Prado e Martim Gonçalves da Câmara, nos quais o retratista abusivamente comete anacronismo. Independentemente de questionarmos o grau de veracidade dos rostos, centremo-nos na iconografia de Frei Diogo de Murça. Monge jeronimita, era doutorado em Teologia por Louvaina, pelo que o barrete exibido, de tipo conimbricense/salmantino, não se pode considerar correcto. Num outro retrato de corpo inteiro de Frei Diogo de Murça, actualmente no edifício do Arquivo da UC, feito ou refeito no século XVIII, a borla doutoral de Teologia configura o modelo rocaille conimbricense (base preta)[23]. No caso de Martim Gonçalves da Câmara, não é aceitável a borla doutoral branca de Teologia, pois este reitor apenas era licenciado em sagrada escritura. Outrossim, era mestre em Artes Liberais, pelo que o seu barrete teria obrigatoriamente franjas azuis escuras. No retrato de Aires da Silva registe-se uma dúvida. Doutor em Teologia, este lente fora nomeado reitor em 1564, data em que só tinha o grau de mestre em Artes Liberais. Como tal, a borla que orna o respectivo barrete deveria ser azul e branca, e não apenas branca, a não ser que os doutores de Teologia seguisssem regidamente o preceito de apenas misturarem cores nos capelos. Erro idêntico ao detectado em Aires da Silva persiste no retrato de Jerónimo de Menezes. O caso de Nuno de Noronha, é semelhante aos dois anteriores, não sendo muito claro se os tufos da borla são azuis-escuros e brancos, como preceituava a tradição. O barrete de Francisco de Castro, cujas franjas parecem esverdeadas, suscita interesse acrescido. Sendo Castro licenciado em Teologia e mestre em Artes Liberais, o seu barrete teria de apresentar borla azul escura, o que nos parece ser o caso. Vasco de Sousa, mestre em Artes Liberais e doutor em Teologia, volta a apresentar franja unicamente branca. E o problema repete-se no retrato de Álvaro da Costa, cujo barrete de teólogo omite a mistura de azul-escuro por força do mestrado em Artes Liberais.
Curioso também é o tratamento dado ao barrete de André Furtado de Mendonça que exibe borla branca, apesar de não ser doutor em Teologia, com omissão do seu mestrado em Artes Liberais (azul-escuro). O azul-escuro do mestrado em Artes Liberais permanece omisso no barrete de Manuel Pereira de Melo, que ostenta apenas o branco de Teologia.
As sucessivas inobservâncias da mistura de cores nas insígnias ostentadas pelos reitores dos séculos XVI e XVII, requerem que a informação patente na galeria reitoral da Sala do Exame Privado seja usada com certa reserva. Ao anacronismo morfológico apontado para o século XVI, acrescem seguramente o pouco cuidado da Casa Reitoral no acompanhamento da execução dos retratos à entrada do século XVIII. Quanto às persistentes omissões do azul-escuro, sendo certo que a Faculdade de Artes Liberais era uma escola menor, a sua gestão pela Companhia de Jesus estava ainda muito distante do processo de desacreditação encabeçado pelo Marquês de Pombal.
Sigamos a disposição das telas:

Frei Diogo de Murça (1543-1555): barrete preto troncónico, de Teologia, com franjas de seda a cobrir toda a copa (plana e sem cristas), descendo ligeiramente abaixo do rebordo. Borla central de tipo florão, de escassa altura. Veste hábito carmelita e não usa capelo. Modelo igual ao esculpido nos baixos-relevos das portadas das salas de aula dos Gerais e tecto da Sala do Exame Privado. Figuração idêntica num doutor da Universidade de Alcalà de Henares, herdado pela Universidade Complutense de Madrid. O “pileus rotundus” tem a mesma morfologia do barrete clerical ortodoxo russo, o kamilavkion;
Doutor Afonso do Prado (1555-1557): barrete doutoral idêntico ao de Frei Diogo de Murça. Hábito talar, sem capelo;
Dom Martim Gonçalves da Câmara (1563-1564): barrete de Teologia, com borla e franjado semelhantes aos dos prelados anteriores. A base do barrete parece quadrangular e não circular. Hábito talar, sem capelo;
Ayres da Silva (1564-1569): continuidade do modelo descrito, revelando o franjado tendência para descer até meio da ilharga do barrete. Enverga hábito talar eclesiástico, sem capelo;
Dom Jerónimo de Menezes (1570-1578): persiste o mesmo tipo de barrete;
Dom Francisco de Castro (1605-1611): o barrete preto, de base redonda, remata superiormente com quatro arestas ou picos muito recortadas, segunda a moda espanhola em voga (Salamanca, Alcalá). Do centro da copa descem franjas verdes até meio da ilharga, sendo o centro ocupado por uma borla de tipo florão. As franjas continuam a ser de fios, sem vislumbre de cachinhos florais ou de pingentes. Hábito eclesiástico, com murça;
Dom João Coutinho (1611-1618): barrete idêntico ao de Francisco de Castro;
Dom Vasco de Sousa (1618): barrete preto cilíndrico, com farto franjado a toda a volta da copa e borla central de florão. Hábito talar, sem capelo;
Dom Francisco de Menezes (1618-1624): barrete preto, com copa de arestas e franjado verde a descer generosamente pela ilharga. Hábito eclesiástico, com murça;
Dom Álvaro da Costa (1633-1637): barrete preto, redondo, com copa de arestas, franjas brancas e florão central;
Rodrigo de Miranda Henriques (1662-1663): barrete preto, troncónico, copa de quatro arestas recortadas, franja verde singela e florão central. Hábito talar, sem capelo;
Manuel Corte-Real Abranches (1664-1666): barrete idêntico ao de Álvaro da Costa. Hábito talar, sem capelo;
André Furtado de Mendonça (1667-1673): barrete preto, com franjado de Teologia, copa de quatro picos. Pega ou florão nitidamente desenhada. Trata-se de uma maçaneta de madeira, entalhada em torno, de altimetria comedida, revestida de seda. Hábito talar eclesiástico, com murça;
Manuel Pereira de Melo (1673-1675): barrete preto, copa de quatro arestas pontiagudas, franja branca descida quase ao rebordo inferior da ilharga. Hábito talar, sem capelo;
Dom José de Menezes (1675-1679): barrete preto de quatro arestas, ilharga baixa, franjado a toda a altura da ilharga e florão pequeno. Hábito eclesiástico, com murça;
Manuel de Moura Manuel (1685-1690): barrete de arestas, franjado verde singelo. Vestes eclesiásticas, com murça;
Rui de Moura Teles (1690-1694): modelo idêntico aos anteriores;
Dom Nuno Álvares Pereira de Melo (1703-1709): continuidade do modelo de arestas recortadas na copa;
Dom Gaspar de Moscoso e Silva (1710-1715): barrete preto, quatro arestas, franjado verde muito descido, pega central torneada e revestida. Enverga túnica de franciscano, sem capelo doutoral.

Representações no tecto da Sala do Exame Privado
Os frescos da Sala do Exame Privado, antigo salão nobre do paço real de Coimbra, resultam das obras de remodelação levadas a cabo em 1701. A ornamentação do tecto, idealizada pelo pintor José Ferreira Araújo, inclui diversos medalhões com os símbolos das quatro escolas maiores então existentes, executados por João Vidal. Os medalhões, são delimitados por molduras ovaladas, contendo livros, um barrete doutoral, frases bíblicas em latim e os símbolos de cada ciência.

Faculdade de Direito Canónico: tiara papal e chaves; 4 livros; frase latina; barrete doutoral preto, troncónico, franjado verde à base de fios simples, pequeno florão ou pega atarraxada no centro da copa;
Faculdade de Medicina: cegonha, bastão de Esculápio (na verdade, figuração errada do caduceu de Mercúrio e duas serpentes), livros, frase latina, sol resplandecente e barrete doutoral. Formato troncónico, estrutura preta, franjados e florão amarelos;
Faculdade de Leis: livros, espada e balança, frase latina, barrete preto troncónico com franjado e florão vermelhos;
Faculdade de Teologia: livros, cruz latina, sol, frase latina e barrete preto troncónico. Franjado branco simples, descendo pouco abaixo da copa. Pequeno florão central.

Sobre as portas foram executadas telas rectangulares com replicação dos símbolos e insígnias, estando omissas as da Faculdade de Artes Liberais.
Os barretes doutorais pintados no tecto da Sala do Exame Privado reproduzem o mesmo modelo esculpido nos vizinhos Gerais: formato troncónico, estrutura preta (tal como nas universidades espanholas), franjas de seda de fios simples, cobrindo toda a copa, e descendo mais ou menos até meio da ilharga. Fixação superior do franjado com uma borla ou florão revestido, de escassa altura. No tecto da capela da UC existiam barretes conformes ao modelo descrito que foram integralmente removidos no século XIX.

Representações nos Gerais das Escolas
O edifício da Faculdade de Direito da UC alberga um claustro, conhecido na gíria académica por Gerais (=claustro ou pátio dos estudos gerais), em torno do qual estão dispostas diversas salas de aula. No piso superior existiam salas de cada uma das escolas maiores, identificadas nas sobreportadas de pedra de Ançã por motivos ornamentais alusivos aos símbolos das Faculdades.
Para aquilo que mais directamente nos interessa, trata-se de medalhões circulares, em cujo interior ocorrem a tiara papal (Cânones), a espada e a balança (Leis) ou a cruz e sol (Teologia). Cada medalhão exibe um barrete doutoral, de morfologia troncónica. O franjado, de fiapos de seda, cobre toda a copa e escorrega bem até meio da ilharga. No centro, o florão ou pega, é uma característica conimbricense definitivamente afirmada.
Este trabalho, da autoria do escultor Claude Laprade, decorreu no reitorado de Nuno da Silva Teles, entre 1698-1702, e confirma o “pileus rotundus” abundantemente figurado na Sala do Exame Privado.

Representações na Real Capela de São Miguel
Integra o conjunto arquitectónico do Paço das Escolas Gerais a antiga capela real, da invocação de São Miguel Arcanjo, de traça manuelina (1517-1522). O estuque do tecto da capela-mor estava ornado com uma figura da Sapiência e medalhões ovais contendo os símbolos clássicos das quatro escolas maiores. Esta obra de pintura ficou pronta em 11 de Junho de 1697 e incluía os ornatos vegetalistas policromos do tecto do salão e a calote da capela-mor.
Os barretes doutorais pintados eram idênticos aos anteriormente identificados na Sala do Exame Privado e Gerais. Porém, a leitura atenta do programa decorativo diz-nos que no referido tecto não sobra o menor vestígio da antiga insígnia doutoral. Há uma explicação para este estranho desaparecimento. Ao longo do século XVIII e primeira metade do século XIX os estuques e frescos do tecto da Capela de São Miguel sofreram extensas deteriorações resultantes de infiltrações pluviais e humidades.
No mês de Fevereiro de 1858 suspenderam-se o culto religioso e as cerimónias académicas neste templo, em cujo interior foram montados andaimes para suporte de empreitada de restauro. A obra de renovação dos estuques arrancou a quatro de Junho de 1858, e a de pintura a 6 de Abril de 1859. O trabalho de decoração foi arrematado pelo pintor António José Gonçalves Neves e concluído em 1860[24].
No “registo dos relatórios” da obra, afirma-se que o pintor respeitou “escrupulosamente” o desenho de 1697, informação que não é inteiramente verdadeira. O respeito pelos dourados, marmoreados, folhagens, flores e molduras, reproduz a obra primitiva. Já no tocante ao tecto da capela-mor, o artista actualizou os quatro barretes doutorais pelo modelo redondo pombalino rococó. Certamente orientado pela Casa Reitoral, converteu a Sapiência numa espécie de Santa Catarina, por via da omissão da joeira, mocho e esfera armilar, tendo substituído esta por uma palma. No livro que exibe na mão esquerda lê-se “Initium sapientiae timor domini”. A explicação é simples. Após a Revolução Liberal, os simpatizantes da laicização da UC e da separação entre Estado e Igreja Católica preferiam chamar Minerva à Sapiência, fricção que se procurou neutralizar por via do recurso a uma Santa Catarina de Alexandria protectora dos estudos[25].
Galeria dos benfeitores da Santa Casa da Misericórdia de Coimbra
O núcleo museológico da Santa Casa da Misericórdia de Coimbra, instalado no antigo Colégio da Sapiência, conserva uma colecção de retratos a óleo de antigos benfeitores, cujas datas extremas vão do século XVII aos inícios do século XX. O século XX é representado por um Guilherme Moreira, lente de Direito e Reitor, com batina-casaca e capelo vermelho, destituído de valor informativo suplementar. A primeira metade do século XIX encontra-se representada por três retratos a óleo, sendo um deles um lente de Medicina com hábito talar e borla e capelo, numa figuração romântica que reproduz o modelo pombalino rococó conforme chegou ao século XX. O segundo fixa um lente de Direito, vestido com casaca preta civil, mas exibindo em cima de uma mesa de trabalho uma borla de Direito com a configuração contemporânea. O terceiro evoca o Doutor Francisco António Duarte da Fonseca Montanha Oliveira e Silva, cónego e lente de prima de Leis, falecido em 1825. Enverga batina romana preta, sobrepeliz e murça preta avivada a rosa. Em mesinha lateral avista-se uma borla de Leis, de formato cilindriforme, copa plana, pega alta, ornada de fios e passamanaria rocaille, com a estrutura cartonada vermelha. Francisco Montanha (1744-1825) doutorara-se em Leis no ano de 1762, podendo admitir-se que a borla figurada no retrato é anterior à Reforma Pombalina de 1772.
Noutros benfeitores mais recuados, o capelo permanece omisso. É o caso do Doutor Francisco Lopes Teixeira, cónego e lente de Teologia, falecido em 1662. O traje é idêntico ao de Francisco Montanha, mas a borla doutoral apresenta a estrutura cilíndrica forrada de cetim branco, e o trabalho de passamanaria e a pega colocam-nos de sobreaviso. Importaria realizar neste retrato análises dos pigmentos para determinar até que ponto o barrete doutoral é coevo do retrato (caso este não seja fini-setecentista) ou se foi acrescentado na segunda metade do século XVIII.
É duvidoso que o trabalho de passamanaria rocaille pudesse existir em finais do século XVII, como é inaceitável que o barrete fosse revestido de cetim branco, quando a cor usual era sempre o preto.
Dois outros retratos desta mesma galeria contraditam a informação presente em Francisco Teixeira. Na esfinge do cónego Sebastião ocorre uma rara figuração da borla de Artes Liberais, de morfologia quadrangular preta, sem cristas, franjado azul-escuro simples a descer desde o centro da copa em tufos que se prolongam até meio da ilharga e pega superior pouco alteada. Do mesmo tipo é a borla de Cânones do cónego doutor Caetano Correia, cuja morfologia quadrangular se aproxima do barrete eclesiástico/doutoral polaco. O franjado verde, simples, cobre toda a superfície desde o centro da copa até à base, sendo a estrutura cartonada revestida de cetim preto. O florão é assaz alto, em forma de balaústre ou pega de borla de reposteiro, em madeira entalhada e forrada a fio de seda.

Retratos do Arquivo da Universidade de Coimbra
Na caixa das escadarias, Sala D. João III e gabinetes do AUC encontram-se diversos retratos de antigos lentes com hábitos regulares e insígnias, que sendo oriundos dos extintos colégios universitários transitaram após 1910 para o Museu Nacional Machado de Castro.
Deste conjunto sobressaem dois jeronimitas, em particular Frei Diogo de Murça. Ambos exibem um barrete doutoral de Teologia, de formato redondo, não anterior aos reinados de D. José I/D. João V, com o tradicional fundo preto e o rebordo sem espiral.
Existe ainda um grupo de seis retratos de meio-busto com lentes de Teologia oriundos do Colégio de São Bento. Usam túnica preta talar de avantajados mangões e cabeção, mas à semelhança dos Jerónimos não ostentam capelo. Cinco dos barretes desenhados, algo toscos no debuxo, são quadrangulares, franjado branco liso e cascatas de borlas em florinhas campaniformes. A copa não contém espiral, flores ou folhas, limitando-se a exibir a pega de aparato. Comum a todos é a estrutura cartonada forrada de cetim preto. Num dos monges, a figuração do barrete redondo é bastante pormenorizada, apresentando este o típico formato de uma borla de reposteiro ou pincel de caiador: ilharga cilindriforme, copa circular plana, franja cobrindo integralmente a copa e a ilharga e pega de tipo maçaneta, aqui com uma base bastante larga.

Iconografia dispersa
Além da iconografia reportada ao longo deste estudo, existem figurações dispersas, oriundas dos séculos XVI, XVIII e XIX, da maior importância para o levantamento dos percursos morfológicos das insígnias.
No caso espanhol, para o período anterior à legislação uniformizadora de 1850, a Universidade Complutense de Madrid, herdeira de Alcalà de Henares, testemunha duas telas a óleo do século XVII, ambas de fulcral importância. Uma delas, de autor anónimo, retrata Santo Tomás de Villanueva no seu gabinete de trabalho[26]. O teólogo enverga loba castanha talar e estola de ombros. Sobre a mesinha de trabalho vislumbra-se um barrete doutoral cilindriforme, de estrutura preta, que alarga da base para a copa. A borla, de tufos de seda branca, cobre toda a copa circular e desce ligeiramente abaixo do rebordo. É o mesmo tipo de barrete assinalado nos Gerais e Sala do Exame Privado da UC (sendo que no modelo conimbricense a copa exibe pega ou florão), e ainda numa imagem de “Santo Ovídio Doutor” detectada num templo da cidade do Porto.
Na mesma universidade existe uma cópia de uma tela da primeira metade do século XVII, realizada por António Martinez Anaya, alusiva a uma Imposición del birrete doctoral em Alcalà de Henares[27]. Neste acto de colação do grau de doutor em Teologia, o doutorando permanece ajoelhado perante o cancelário, estando este ladeado por doutores de Teologia, Leis, Medicina e Artes Liberais. Dos dez barretes documentados, sete são quadrangulares, com a base preta e arestas salientes, descendo a borla em quatro cascatas de tufos. Nos três restantes doutores, o barrete doutoral é constituído por um sombreiro ou chapéu preto de copa calótica e aba larga, com a borla aplicado a toda a volta da copa como nos chapéus de gala dos imperadores chineses e dos dignitários tibetanos.
No que respeita à Universidade de Salamanca, saliente-se o retrato de corpo inteiro de um Doutor de Leis, realizado por Francisco de Zurbaran (1598-1664). O letrado veste ampla loba talar vermelha, murça doutoral vermelha e um barrete ornado de borla preta. A documentar a simbólica salmantina está ainda o grupo sacro em madeira policromada e estofada, do século XVIII, um São Cosme e um São Damião, num dos altares da Iglesia de San Julián y Santa Basilisa (Salamanca)[28]. Os dois santos são apresentados com lobas talares de corpo duplo, meias altas e calções, murça de Medicina munida de capuz e abotoada na frente com fileira de botõezinhos e barrete quadrangular preto munido de quatro tufos amarelos. Este barrete é igual ao patenteado pelo “Doctor Eximius”, Francisco Suarez, que após doutoramento em Teologia na Universidade de Salamanca, no ano de 1571, passou a ler em Coimbra.
A Universidade de Sevilha é também ela detentora de património artístico significativo. No campo da arte sacra, cite-se um San Damian, em madeira policroma, com 1,75m de altura, posterior a 1657, que pertenceu ao retábulo de São Cosme e São Damião na Iglesia de la Anunciación[29]. Esta peça, com o número de inventário 1498-00-IA-ESC, apresenta-se em túnica (loba?), capa talar, cabeça descoberta, e capelo doutoral de Medicina. Esta insígnia afasta-se da singeleza da murça doutoral assinalada em Salamanca e Alcalà de Henares, aproximando-se extraordinariamente do capelo barroco conimbricense que na segunda metade do século XVII era de murça dupla e tinha fechamento dianteiro à base de alamares. Os ornatos correspondem a uma fase anterior à solução rocaille coimbrã, sendo os jogos de 12 rosetas e 3 alamares aplicados no forro e na sobre-murça com base em fio de seda soutache.
Integram ainda o património da Universidade de Sevilha retratos a óleo de lentes, reitores, bibliotecários e notáveis, alguns deles em traje talar e insígnias. A colecção da Alma Mater sevilhana constitui uma boa surpresa, informando que após as leis uniformizadoras do traje e insígnias, promulgadas por Madrid em 1850, a estandardização não foi imediata. O retrato do bibliotecário Juan José Bueno y Le Roux, assinado por José Oliver em 1893, mostra um capelo vermelho duplo, conforme o modelo conimbricense, mas com ornamentação barroca pré-rocaille. De 1841 é o retrato de Manuel Maria del Mármol, com capelo azul claro e branco, e barrete preto de cantos franjado a azul claro e branco, próximo da tipologia conimbricense do século XVII e inícios do século XVIII.
No caso de Coimbra, entre o antigo capelo simples, abotoado sobre o peito e apetrechado com capuz caído pelas costas (=capelo), e o capelo duplo de passamanaria rocaille setecentista, há que considerar dois modelos intermédios:

-o capelo à século XVII, muito próximo das soluções patenteadas pelos cónegos capitulares portugueses em certas galas e momentos corais, iconograficamente documentado na Sé de Lisboa, Sé de Angra do Heroísmo, Sé de Braga e Sé de Coimbra. No vestiário da Catedral de Braga foi-nos dado estudar e fotografar em 1997 um modelo de luto, dotado de longo capuz de lançar pela cabeça, abotoadura peitoral à base de botõezinhos e rosetas aplicadas de ambos os lados do peito. Relativamente a Lisboa, o Cónego Doutor Isaías da Rosa Pereira permitiu-nos visualizar um capelo por alturas de Julho de 1990, em tom róseo. É o modelo reproduzido na obra de D. José da Cruz Policarpo, Cardeal Cerejeira. Fotobiografia, Lisboa, Notícias Editorial, 2002, página 110, a propósito de uma cerimónia realizada na Igreja de Lousado, Vila Nova de Famalicão, em 23 de Abril de 1961.
Quanto à catedral de Angra do Heroísmo, recolhemos no Verão de 1990 uma fotografia de inícios do século XX, do espólio de Monselhor Pereira da Silva, com belíssima figuração de um capelo artesanal ricamente ornamentado.
Em Coimbra, nos anos de 1989-1990, beneficiámos da colaboração do Cónego António Brito Cardoso, que nos guiou numa visita a antigos retratos do Seminário de Coimbra e ao seu guarda-roupa privativo. Na sala de actos do Seminário de Coimbra existe um retrato a óleo do Cónego Albino Coelho, de cor roxa, cujo trabalho de passamanaria é assaz próximo do capelo doutoral. O acabamento das rosetas e os cachinhos florais campaniformes são iguais aos empregues na ornamentação peitoral do capelo doutoral e nos franjados da borla.
O Cónego Brito Cardoso possuía um capelo canonical conimbricense confeccionado nos inícios do século XX, com as seguintes características: forro em tafetá preto; murça de cetim roxo, fechada sobre o peito com carcela ornamental de aparato à século XVII e fileira de botõezinhos revestidos de fio roxo bordado; longo capuz (=capelo), rematado em bico, a descer à linha dos joelhos, lembrando os capelos da Universidade de Oxford; ornamentação peitoral à base de rosetas de fio entrelaçado na técnica cochim de nozinhos com três voltas, guarnecido de jogos de cachinhos florais pendentes. À semelhança do capelo doutoral, em cada lado do peito e ombros eram aplicados seis jogos, num total de doze rosáceas. Quase idêntico ao capelo canonical português era o modelo adoptado pelos cónegos espanhóis, particularmente na região de Málaga. Apesar do peito inteiriço, o pano correspondente aos ombros era adornado com rosetas[30];

-o capelo doutoral de Coimbra e Sevilha com a sua dupla murça e capuz menos longo, aberto sobre o peito, de ornamentação barroca anterior à moda rocaille, donde deriva o modelo conimbricense remanescente.

Além das fontes referenciadas, é tempo de chamar à colação espécimes dispersos em templos e paços episcopais. Em termos de pintura, não devem perder-se de vista dois retratos de prelados portugueses que prestaram serviço no Oriente:

-D. Frei Lourenço de Santa Maria, doutorado em Cânones por Coimbra, arcebispo de Goa em 1742, em hábito religioso, vendo-se o barrete doutoral quadrangular, com a base cartonada revestida de cetim preto, uma pega alteada de tipo maçaneta e abundante franjado verde a escorrer pelas quatro faces;
-Frei José de Santa Maria, doutorado em Teologia por Coimbra, bispo de Malaca e de Angra do Heroísmo, numa figuração setecentista. Ao lado do prelado, sobre uma credencia, desenhou-se a borla doutoral, base preta, quadrifacetada, pega alta forrada de seda branca e abundante franja na mesma cor.
Os dois retratos mencionados foram reproduzidos no catálogo Encontro de Culturas. Oito séculos de missionação portuguesa, Lisboa, Edição da Conferência Episcopal Portuguesa, 1994[31].
-Frei Marcelino José da Silva, bispo de Macau entre 1798-1800. Retrato de corpo inteiro com borla de Teologia sobre mesinha anexa. Modelo simples, constituído por barrete quadrangular preto, munido de três cristas na copa, pega seccionada em três bolbos e abundante franja branca. Esta obra de arte ilustra a sobrevivência do modelo quadrangular para além do favor tributado ao modelo redondo pelos adeptos da reforma pombalina. E no tocante às vestes talares, informa da existência da batina romana de um corpo, bem distinta da velha loba de dois corpos. Óleo reproduzido em Francisco Bethencourt e Kirt Chaudhuri (direcção), História da Expansão Portuguesa, Volume 3, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, p. 350.
-Frei Clemente Vieira (1629-1692), dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho, doutor e lente de Teologia na UC ca. 1673. Foi bispo do Porto e de Angra do Heroísmo. Existe um retrato de meio busto deste prelado na Sé de Angra do Heroísmo, realizado por 1688, figurando a mitra e a borla de Teologia sobre uma mesa. O barrete doutoral é quadrangular, tem a base forrada de preto, apresenta florão de madeira fixado no centro da copa e abundante franja de seda branca à base de cachinhos de flores e berloques. Modelo pré-pombalino, ainda não incorporou a coroa de louros em espiral no rebordo superior e a copa não foi ocupada por rosas e folhinhas.
-Frei José da Avé Maria, natural de Évora, doutorado pela Faculdade de Teologia de Coimbra, bispo de Angra do Heroísmo em 1782. Existe um retrato deste prelado na Torre do Tombo, com barrete doutoral quadrangular, ornado de pega, franja torsa e tufos brancos.
REFERÊNCIAS
[1] Na década de 1950 começou a generalizar-se entre os bacharéis e licenciados de Coimbra um anel de ouro com gema na cor científica. Trata-se de uma tradição espontânea. Os motivos cinzelados não correspondem com inteiro rigor a emblemas de cursos.
[2] Manuel Augusto Rodrigues (introdução), Os primeiros estatutos da Universidade de Coimbra, Coimbra, AUC, 1991. Veja-se a tradução do estatuto de 1431 por Geraldes Freire e Teresa Veloso, p. 23.
[3] Manuel Augusto Rodrigues, op. cit., p. 39.
[4] Padre Serafim Leite, Estatutos da Universidade de Coimbra (1559), Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1963, pp. 235-236.
[5] Aníbal Pinto de Castro (introdução), Estatutos da Universidade de Coimbra (1653). Edição facsimilada, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1987.
[6] Aníbal Pinto de Castro, op. cit., pp. 179-181: Título XXIV, “Das insígnias dos Doutores & Bacharéis formados nos actos públicos”.
[7] Estatutos da Universidade de Coimbra, 1772, Livro III, Título I; Capítulo II (reedição de 1972).
[8] Alguns trabalhos tradicionais de passamanaria realizados pelas tcherkesse, ou povo tártaro Adyga do Cáucaso Norte, foram divulgados em “La broderie d’or des Tcherkesse”, http://tcherkesse.free.fr/folklore/borderie.html (consultado em Janeiro de 2009).
[9] Embora tenha sido considerado um “chapelinho folclórico” pelos recolectores do século XX, esta cobertura de cabeça surgiu nos círculos aristocráticos ocidentais, após o que se popularizou nas grandes cidades. A grande duquesa Maria Alexandrovna é figurada com um exemplar numa gravura inserta na obra Tailor and Cutter, de ca. 1870. Em lugar do véu, as mulheres portuguesas passaram a usá-los com lenços de pontas caídas.
[10] Em Coimbra o bicórnio ou napoleão foi o chapéu de gala dos governadores civis, administradores do concelho e archeiros da UC. Após as invasões francesas as freiras do Convento de Santana inventaram uns pastéis muito apreciados, chamados napoleões, cuja forma era a mesma do bicórnio.
[11] Caiu em desuso na década de 1870.
[12] Caiu em desuso na década de 1850.
[13] Recolha de imagens em Maria Leonor Carvalhão Buescu, Monsanto. Etnografia e linguagem, Lisboa, Editorial Presença, s/d (1ª edição de 1958, 2ª edição de 1984), fotografia “mulheres de mantilha”.
[14] José Leite de Vasconcelos, Etnografia portuguesa, Volume VI, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1983, p. 510-555, documenta as cocas e mantilhas em Viana do Castelo, Vila Velha de Ródão, Portalegre, Olhão e Açores.
[15] Imagens e contextualização em Cristina Duarte, Trajes regionais, 2007, pp. 130-133; Madalena Braz Teixeira (coordenação), Traje do Algarve. Orla marítima, Lisboa, Museu Nacional do Traje, 2001.
[16] João Afonso, O trajo nos Açores, Angra do Heroísmo, Secretaria regional dos Assuntos Sociais, 1987, fotos das páginas 211, 214 e 215.
[17] Luís Soares Camargo, Dom João VI e o cotidiano das mulheres em São Paulo: um reflexo da moda, apud http://www.fotoplus.com/dph17/i-manu.htm (artigo editado na página Web do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, acedido em Janeiro de 2009).
[18] “Boas fardas”, in Bric-à-Brac. Notas históricas e arqueológicas, Porto, Livraria Fernando Machado, 1926, pp. 287-288.
[19] Cf. “Em Coimbra. Graves acontecimentos na Universidade”, O Primeiro de Janeiro, 3ª feira, nº 246, de 18/10/1910, p. 3; idem, “Em Coimbra. Os tumultos na Universidade. Intervenção do governo”, O Primeiro de Janeiro, 4ª feira, nº 247, 19/10/1910, p. 3.
[20] Fotografias reproduzidas por AMNunes, A Alma Mater Conimbrigensis na fotografia antiga, Coimbra, GAAC, 1990.
[21] Notícia em Joaquim Ferreira Gomes, A Universidade de Coimbra durante a Primeira República (1910-1926), Lisboa, Instituto de Inovação Educacional, 1990, p. 267; no mesmo sentido, “Pela nossa Universidade”, Gazeta de Coimbra, 4ª feira, 17 de Novembro de 1915, p. 1. Quanto aos registos biográficos dos três lentes indicados supra, siga-se Manuel Augusto Rodrigues, Memoria Professorum Universitatis Conimbrigensis (1772-1937), Coimbra, AUC, 1992, p. 49, p. 83, p. 164, p. 275, p. 298.
[22] A ele se fica a dever em 1912 a “oportuna” transcrição, estudo e divulgação do diploma régio fundacional: Um documento precioso. Notícia e descrição do diploma original da fundação da Universidade Portuguesa em 1290, recentemente descoberto, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1912. O diploma adquire forte carga simbólica e identitária, possibilitando à Alma Mater reinvindicar perante o ostensivo centralismo do governo republicano a sua remota criação, autonomia e privilégios. Num ciclo marcado por incorporações de fundos documentais de instituições religiosas na Torre do Tombo, Vasconcelos opta por não esclarecer quem, onde e como foi encontrado o pergaminho.
[23] Veja-se uma reprodução na História de Portugal, Volume IV, Barcelos, Portucalense Editora, p. 272.
[24] Elementos disponíveis em António de Vasconcelos, Real capela da Universidade. Alguns apontamentos e notas para a sua história, 2ª edição, Coimbra, AUC/Livraria Minerva, 1990, pp. 78-79.
[25] António de Vasconcelos, idem, pp. 86-87.
[26] Reprodução em Francisco Galino Nieto, 1999, p. 44.
[27] Reprodução em Francisco Galino Nieto, 1999, p. 46.
[28] Reprodução em Juan Luís Pólo Rodrigues e Jerónimo Hernández de Castro, 2004, p. 37.
[29] Cf. Património artístico da Universidade de Sevilha, com inventariação apud http://www.patrimonioartistico.us.es/lista_completa.jsp?campo=grupo (acedido em Novembro de 2008).
[30] Veja-se uma fotografia disponível no endereço http://thefarsigt2.blogspot.com/2008_10_01_archive.html (acedido em Janeiro de 2009).
[31] Agradeço ao Padre Dr. José Eduardo Coutinho o acesso a um exemplar desta obra.