Virtual Memories

sábado, 5 de setembro de 2009


A indústria da moda não se rege por pruridos intelectuais nem atende a preconceitos mal resolvidos. Depois dos fenómenos de rejeição de que foi alvo nos meios universitários e políticos, e vencidos os grandes ciclos do abolicionismo, a indústria cinematográfica coloca a batina de novo na moda. Visual do actor Keanu Reeves em 2003 no filme The Matrix Reloaded que relançou por toda a década os casacos de inverno masculinos com talhe de batina romana.


A abolição do porte diário do traje académico masculino em finais de 1910 e o estado de policromia a que chegara criaram alguns problemas à TAUC e ao Orfeon Académico. Percebendo o quanto tinham a perder caso apostassem em digressões sem capa e batina, em 1911 as direcções destes dois organismos promulgaram orientações internas que exigiam a capa e batina em actuações artísticas e a padronização das cores (preto integral com camisa branca).
Um exemplo da invenção de um uniforme após 1910: digressão do Orfeon a Paris na Páscoa de 1911.


Um par idealizado e inventado pela indústria turística. Uma tricana aguadeira com indumentária anterior a 1900 e um estudante da UC com capa e batina adoptada após 1910 e capa traçada segundo a imagem-força que só se afirmou durante o Estado Novo. Faiança conimbricense.


Um estudante da UC de inícios do século XX em conversa com uma tricana aguadeira. Nos alvores do século XX o turismo emergente e os postais ilustrados tentam apropriar-se de alguns temas e convertê-los em sedutoras imagens cristalizadas. O fenómeno foi transversal a outras cidades universitárias europeias, tendo sido postos em circulação postais ilustrados de estudantes galanteadores à conversa com mulheres: Coimbra, Paris, Suiça, Alemanha. Na sociedade civil proliferavam séries de postais ilustrados com pares de apaixonados em vários estados de alma.
Os adeptos da fotografia pericial estavam a tentar provar que existiriam tipos humanos estáveis, identificáveis através de características externas como peças de indumentária, que os cientistas e turistas poderiam identificar a olho nu.
A etnografia estava na moda e alguns dos adeptos dos género tinham vindo a escrever que existiriam em Portugal alguns "tipos" de mulheres descendentes de "raças" ancestrais. Da mesma forma que as avós decidem com quem é que os seus netos se parecem, mesmo quando o não são, também houve estudiosos que acreditaram ver olhos gregos nas mulheres de Aveiro. Uma das musas seria a tricana de Coimbra. A invenção de pares idealizados leva os fotógrafos e ceramistas a inventar o par tricana/estudante, omitindo o futrica e fazendo crer que a capa e batina podia ser considerada um traje popular.


A indumentária masculina adoptada pela burguesia urbana exercia profundo fascíno sobre os estudantes da UC. A casaca e a cartola eram a imagem de marca dos empresários, homens de negócios e profissionais liberais de sucesso. A Greve Académica de 1907 transforma a "batina" herdada de oitocentos numa casaca desabotoda com lapelas de cetim, um dos símbolos ostentatórios do novo-riquismo Belle Époque. No período republicano este conjunto vestimentário é convertido em traje académico pelos próprios estudantes e estabilizado em figurino e em cor.


A gloriosa Singer dos alfaiates e dos serões invernais das avós portuguesas. Comercializada em larga escala desde a década de 1850, a máquina de costura testemunhou as grandes mutações morfológicas sofridas pela capa e batina. Variante de pedal assente em mesa com pernas metálicas.


A revista Ilustração Portuguesa dedicou alguma atenção às alunas matriculadas na UC logo após a implantação da República. Uma dessas alunas distintas era Regina Quintanilha, inscrita na Faculdade de Direito da UC em 1910. No n.º 310, de 29.01.1912 a refereda revista divulgou fotografias de estudantes, entre as quais figurava Regina Quintanilha, em traje civil. As estudantes, cujo número tinha vindo a aumentar lentamente, não encontravam ambiente interno favorável a uma adaptação do traje masculino nem evidenciavam vontade de criar qualquer indumentária distintiva.
A mesma Regina Quintanilha que vemos em 1912 sem hábito talar pleiteia no Tribunal da Boa Hora em 13.11.1913, não tendo ainda o curso terminado, com toga forense. Era a primeira mulher a fazê-lo em Portugal, facto que foi motivo de capa da Ilustração Portuguesa de 24.11.1913.


Uma hipótese alternativa de abordagem da simplificação do hábito talar. A proposta britânica implementada na segunda metade do século XIX aproxima-se mais do viatório e dos hábitos talares do que propriamente da casaca. O bispo Arthur, capelão militar na Household Brigade de Windsor, numa gravura divulgada na Vanity Fair de 23.12.1897.


Contigente militar alemão na recta final da Grande Guerra (1917) acompanhado pelo respectivo capelão.

Património vestimentário... (cont.)
O fim da hegemonia conimbricense

A UC e a sua Academia chegaram à Crise Académica de 17 de Abril de 1969 orgulhosas da hegemonia dos seus paradigmas culturais e simbólicos. No plano interno e externo, as exibições futebolísticas da Académica, as digressões artísticas do Orfeon Académico, a mediatização dos doutoramentos honoris causa, a leitura de coloridas sagas juvenis protagonizadas e escritas por antigos estudantes , as transmissões televisivas e radiofónicas de serenatas, a assumida imitação dos costumes conimbricenses pela maioria dos liceus, Faculdade de Direito da UL e UP, conferiam à UC uma clara posição hegemónica. Entre o mandato presidencial de Sidónio Pais (1917-1918) e a Crise Académica de 1969 apenas o Patriarcado de Lisboa nos anos da liderança do Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira (1929-1971) terá conseguido rivalizar em esplendor com a UC.
Excluindo as escolas de regentes agrícolas, não havia notícia de qualquer outro uniforme estudantil civil usado em Portugal. Apesar da sua originalidade e função cultural nos meios onde se inscreviam, importantes eventos liceais como o Enterro da Gata (Liceu de Braga), as Nicolinas (Liceu de Guimarães), o Enterro da Bicha e Procissão dos Caloiros (Liceu de Ponta Delgada), e Festa do Galo (Liceu de Beja) , e a Corrida e Julgamento do Galo das escolas de ensino primário não eram estudados nem referidos em pé de igualdade com os costumes conimbricenses. Práticas culturais e símbolos estudantis das universidades históricas europeias eram desconhecidas ou omitidas, não obstante a existência de chapelaria académica na maior parte das universidades europeias e a realização de festividades anuais nos espaços anglo-saxónicos, germânicos, finlandeses e franco-belgas (regatas, bailes, charivaris).
Aparentemente sólido e indestrutível, o parelho cultural e ideológico patenteado pela UC entrou em pulverização acelerada em 1969. À data da Revolução de 25 de Abril de 1974 pouco mais era do que uma memória nostálgica cultivada por antigos estudantes radicados em Coimbra e dispersos pelo país.
A partir de 1976 emerge na Academia de Coimbra um ambiente favorável à reinvenção de tradições entre as camadas juvenis. Até meados da década de 1980 consolidam-se na UC e na UP as grandes ofensivas de restauração das praxes, da retoma de costumes interrompidos em 1969 e da efectiva ocupação do território urbano pelas facções adeptas das múltiplas formas de vivenciar as “tradições”.
Em Coimbra, todos os estabelecimentos de ensino superior imitaram a UC no que concerne ao porte massificado da capa e batina, pasta académica, insígnias e festividades, com obstinada recusa de definição de qualquer política cultural ou associativa diferenciadora . As atitudes de ortodoxia que rodearam o processo de restauração das tradições académicas no após 1974 e a segunda longa revivescência do Código da Praxe de 1957 inviabilizariam qualquer possibilidade de discussão sobre o tailleur, os caminhos da feminilização da Academia e da UC ou a possibilidade de reinvenção democrática do processo de construção da identidade.
Em muitos aspectos, o desacerto cronológico entre a construção identitária como fenómeno de comunicação de massas e a aposta na comunicação cultural de modelo elitista retiraram à UC e à Academia de Coimbra qualquer possibilidade de protagonismo criador.
A maior parte dos estudantes matriculados nos institutos politécnicos e nas novas universidades apropria-se entusiasticamente dos bens culturais e simbólicos tradicionalmente produzidos pela UC, revelando identidades camaleónicas pós-modernas capazes de adaptação aos novos valores sociais e à importação do conceito de imagem organizacional difundida desde a década de 1950 pelo mundo empresarial norte-americano.
A Academia de Coimbra é frequentemente citada pela comunicação social e pelos estudantes de ensino superior português desses anos como reserva estática de apropriação ou identificação, qual metáfora do grande armazém de onde se retiram produtos em stock sem que nada se reponha.
Comunidade imaginada, trata-se de uma imagem inerte e implosiva que nas décadas de 1980-1990 nunca afirma a cultura académica conimbricense como paradigma dinâmico ou laboratório onde por via da imaginação criadora ou da ligação sincrética à cultura etnográfica regional estejam a emergir novos rituais ou a experimentar-se a re-invenção de tradições. No plano interno, os grupos que controlam o discurso tradicional e as normas praxísticas afirmam-se em relação ao passado e não ao presente, invocando incessantemente valores tributários da “autenticidade” e “antiguidade”, argumentos esgrimidos para afirmar a primazia da Academia de Coimbra ou a sua suposta “pureza” e “ancestralidade” num confronto contra os “imitadores” e os “contrafactores”.
Que tamanha inércia ou desatenção poderiam custar caro, já o tinham vindo a demonstrar ao longo do século XX clubes de futebol profissional que se haviam apropriado de cores, de símbolos heráldicos municipais ou regionais e de animais míticos, convertendo-os em capitais extremamente rentáveis. Por outro lado, nem a Academia de Coimbra nem a comunicação social desatenta e pouco informada assinalam o sentido bilateral das relações inter-comunidades académicas. Sem o querer reconhecer, e porque a história narrada é de trama coimbrocêntrica, a Academia de Coimbra também agiu como importadora de costumes, seja das escolas de magistério primário (futuras escolas superiores de educação), seja da UP ou da UL.
Exemplos:

-a fundação do primeiro Orfeon Académico em 1880 inspirou-se directamente no Allmana Sangen (1830) e no Orphei Drangen (1853) da Universidade de Uppsala;
-a Tuna Académica, apresentada ao público em 1888, constituiu uma reacção de brio à visita da Tuna Universitária Compostelana a Coimbra no Carnaval de 1888 ;
-ao longo de toda a década de 1980 eram bem visíveis em Coimbra, no início de cada ano escolar, as semanas de recepção ao caloiro com a sua parafrenália de chupetas, bibes infantis e martelinhos do São João. Tanto a designação das festividades, como a imagética de “creche” que substituiu a simbologia taurina multissecular pelos signos e cores infantis (rosa para caloiras, azul para caloiros), era uma imitação de festividades de há muito realizadas nas escolas de magistério primário e nas escolas primárias ;
-a imagem comunicacional adoptada desde 1979 pelos estudantes da Faculdade de Economia, incluindo as fitas vermelhas e brancas, a roseta de lapela dos cartolados e o cifrão ($) , constitui traslado directo de práticas implementadas na Faculdade de Economia da UP a partir da década de 1950;
-a cartola de fantasia usada em Coimbra desde 1979 é do tipo portuense, conforme modelo fabricado em série desde a década de 1950 , de ilharga baixa e forrada de cetim, ao arrepio do tipo conimbricense, artesanal, de ilharga alta e forrado de papel de lustro;
-o Baile de Gala das Faculdades (Queima das Fitas), iniciado em 1937, já era realizado em universidades francesas e austríacas e na École Polytechnique de Paris desde finais do século XIX. O dos estudantes de Lyon remontava a 1877 ;
-a missa da Bênção das Pastas dos estudantes católicos foi iniciada pelos alunos finalistas da UL em 1926 e continuada nos anos ulteriores. Em Maio de 1932 seria apropriada pelos quintanistas católicos da UC que se fizeram consagrar ao Sagrado Coração de Jesus.

A corrida pós-moderna ao simbólico e aos referentes identitários tem para a UC um sabor de amargura. A maior parte dos valores propostos pelas instituições de ensino superior concebidas como empresas, os fenómenos de markting e o papel atribuído às capacidades criadoras na construção e gestão do imaginário, já existiam na UC antes do abolicionismo de 1910 e da campanha denegridora de que a instituição foi alvo. Mesmo considerando que as universidades clássicas radicavam em identidades visuais e emotivas tendencialmente fechadas, elitistas, burocráticas e rígidas, com escasso sentido de participação dos seus elementos, a UC ostentava em 1910 um património simbólico e imaterial invejável que após 1974 não foi renovado:

• sistema cerimonial, vestimentário e insigniário integrado, que abarcava os titulares dos órgãos de gestão, os docentes, os alunos e os funcionários, mediante um complexo dispositivo de investiduras, rituais fúnebres, paradas públicas, jubilações e atribuição de graus de bacharel, licenciado e doutor;
• um calendário anual homeopático e afectivo, marcado por momentos festivos e ritualizações que delimitavam com grande eficácia os momentos de trabalho, lazer, entrada e passagem, contrariando o mito do progresso e o entendimento empobrecedor do tempo linear;
• instituições extra-curriculares diversificadas que, à semelhança do ambiente das universidades norte-americanas, britânicas e suecas possibilitavam aos estudantes o acesso democrático ao desporto, ao teatro, à prática coral e instrumentística e digressões amadoras periódicas a espaços portugueses e estrangeiros, com resultados positivos em termos de maturação da personalidade, responsabilização e autonomização dos jovens alunos;
• uma Casa Reitoral que, por semelhança com a cultura palaciana das instituições aristocráticas, eclesiásticas e municipais, liderava as tendências da moda em termos do lançamento e gestão daquilo que na década de 1990 as novas universidades designaram por “negócio de comunicação”, “marca institucional”, “logótipo”, “embaixador cultural”, “lembranças institucionais”: insígnias, vestes, pastas de despacho, sapatos forrados/avivados, alfinetes de gravata, botões de punho, luvas bordadas, hino, heráldica, alegorias greco-romanas, cores específicas de cada uma das escolas, a música associada à imagem do reitor, a distribuição de prémios a alunos distintos e o baile que lhe estava associado;
• apresentação pública como corpo dotado de coesão interna e identidade forte em paradas públicas, cerimónias de Estado e programas religiosos;
• um riquíssimo património imaterial assente em manifestações emblemáticas como as obras literárias/musicais/vocais da Canção de Coimbra e da paisagem sonora da guitarra de Coimbra, bem como o sistema simbólico e mitológico repousante num imaginário baseado no livre uso da mitologia greco-latina (símbolos das Faculdades e cursos), no bestiário medieval e nas sagas antropomórficas (mitologia associada à imagem taurina dos caloiros), com profunda inscrição no folclore português (ditados populares, contos tradicionais, quadras circulantes na tradição oral) ;
• ao longo do século XX, a eficácia simbólica e emotiva do património herdado possibilitou a consagração de ex-libris identitários como a Torre de Universidade (caricaturas, crachás, logótipos do Orfeon e da TAUC), as insígnias doutorais e a guitarra de Coimbra.

Alguns dos problemas associados à incapacidade de reinvenção simbólica da UC no após 1974 radicaram na liderança da Casa Reitoral por actores enformados no modus operandi mental e cultural anterior à Revolução de 25 de Abril de 1974, na obstinada recusa da Alma Mater em estreitar relações culturais e emocionais com o património da região e da cidade (a fobia de passar a ser uma universidade regional), e na restauração das tradições académicas por grupos masculinos adversos da assunção de uma visão assente em valores como a participação democrática, a integração regional/local, a proximidade entre os actores e as instituições tradicionais herdadas ou a flexibilização da “praxe” académica.
O imobilismo simbólico e visual do cerimonial universitário erradamente centrado em actos doutorais, a marginalização continuada dos eventuais contributos da imaginação criadora no meio estudantil e a ausência de uma estratégica de construção identitária integrada por docentes/funcionários/estudantes ficariam indelevelmente associados à imagem da UC das décadas de 1980-1990, servindo de exemplo a ausência de algo simples e eficaz como a produção e oferta de prenda institucional para distribuição nas reuniões anuais de antigos cursos ou na conclusão dos cursos de férias de alunos estrangeiros .
Ao contrário dos excelentes resultados inventivos e simbolizadores construídos pela Reitoria/docentes/alunos da Universidade do Minho , a UC revelou nas décadas de 1980-1990 atitudes de fechamento perante as propostas inventivas, desconforto e xenofobia perante os actos imitativos e predatórios das novas universidades e politécnicos, falta de sentido de acolhimento face aos contributos criativos dos estudantes e funcionários e escassa capacidade de rentabilização das imensas potencialidadades do seu património imaterial.

Mas a adopção de uma “marca-universidade” implica falar a linguagem empresarial e reinvindicar os direitos de criação original do que lhe está associado em termos de herança identitária, enquanto estratégia assumida como esteio da “missão do ser-se diferente .
Vejamos uma amostragem de dezasseis “produtos” culturais apropriados desde a segunda metade do século XIX, com picos de intensidade imitativa registados entre 1890-1930 e 1979-2000:

-Capa e Batina, remontante ao século XVI. Apropriação desde 1860. Ensino secundário e superior. Portugal continental, insular e antigas colónias;
-Insígnias da Praxe: colher, moca, tesoura. Origem medieval Apropriação liceal entre ca. 1890-ca. 1970. Universidades e politécnicos;
-Pasta académica, grelos e fitas. Uso desde o século XVIII. Apropriação desde a década de 1890. Universidades e politécnicos;
-Cartola e bengala e dia do quintanista com Venda da Pasta. Criação em 1932. Apropriação desde ca. 1945. Universidades e politécnicos;
-Programa da Queima das Fitas. Origem nos charivaris medievais. Apropriação desde a década de 1920. Universidades e politécnicos;
-Cartaz da Queima das Fitas e selos para pastas. Criação em 1899. Apropriação desde a década de 1960. Universidades e politécnicos;
-Anel de curso. Criação espontânea na década de 1950. Apropriação desde da década de 1980. Universidades e politécnicos;
-Código da praxe. Editado em 1957. Imitação desde a década de 1980. Universidades e politécnicos;
-Canção de Coimbra. Origem espontânea na 1ª metade do déculo XIX. Práticas imitativas desde ca. 1911. Universidades e politécnicos;
-Latadas e Imposição de Insígnias. Institucionalização espontânea desde ca. 1941. Imitação desde inícios da década de 1980. Universidades e politécnicos;
-Hábito talar docente. Versão reformada em 1915. Desde 1915;
-Insígnias doutorais. Modelo setecentista barroco. Desde a década de 1820. Universidades portuguesas clássicas e brasileiras;
-Abertura solene das aulas. Ritual medieval Desde 1911. Universidades e politécnicos;
-Imposição de insígnias a novos doutores. Desde década de 1920. Universidades clássicas;
-Doutoramento honoris causa. Desde 1917 por imitação de outras universidades ocidentais Desde 1921. Universidades clássicas;
-Emblema da AAC. Criado em 1928. Desde 1939. Diversos clubes desportivos portugueses.

Na área metropolitana do Porto, a UP lideraria o restauracionismo praxístico, funcionando como uma “segunda Coimbra”. Os múltiplos estabelecimentos de ensino superior universitários e politécnicos, públicos e privados localizados no Douro Litoral imitaram as práticas observadas na UP e procuraram confundir-se com a instituição, confirmando as atitudes dos politécnicos de Coimbra face à UC.
Em Braga, na Universidade do Minho e na Universidade Católica, a década de 1980 seria preenchida com a capa e batina e a queima das fitas. Porém, a Queda do Muro de Berlim abriria de imediato as portas à fragmentação dos modelos culturais homogeneizantes clássicos e ao conceito moderno dos modelos gerais e abstractos herdados da Aufklarung.
Os países de leste desmembrados da esfera de influência da ex-URSS lançaram-se na reinvenção de trajes talares para as suas universidades e tribunais. Em Portugal e Espanha as tunas académicas viveram um crescendo pujante até à primeira década do século XXI. Noutro plano, mas portador de inegável interesse comparativo, o Ocidente deixou-se fascinar pelas confrarias gastronómicas e vinícolas, todas elas ligadas à dinamização de ambientes neo-medievais escorados no uso de trajes, insígnias, rituais de investidura e cortejos públicos .
Na era da massificação do ensino superior português, as novas universidades públicas e privadas recusaram o paradigma conimbricense e aventuraram-se na invenção de projectos visuais alicerçados em trajes docentes e insígnias definidoras de identidades distintivas : Universidade Aberta (1990) , Universidade dos Açores (1990) , Universidade do Algarve , Universidade de Aveiro (1987) , Universidade da Beira Interior (1996) , Universidade da Madeira (1996) , Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro , Universidade de Évora (1989) , Universidade do Minho (1984) , Universidade Nova de Lisboa , Universidade de Lisboa (2005) , Universidade do Porto (2003) .
No que respeita a estabelecimentos de ensino superior privados, até finais do século XX adoptaram trajes docentes a Universidade Católica Portuguesa (2000) , a Universidade Autónoma Luís de Camões (1995), a Universidade Fernando Pessoa (2007), a Universidade Lusíada , a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, a Universidade Moderna (1994) , e a Universidade Portucalense Infante D. Henrique (1998).
Os institutos superiores politécnicos parecem ter ficado à margem da “movida” neovestimentária, embora tenha institucionalizado traje para o seu corpo docente o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (1995).
Como se pode constatar, as decisões mais recuadas no sentido de criar e regulamentar trajes e insígnais docentes polarizam-se em torno das universidades do Minho, Aveiro e Évora e acompanham o movimento internacional neo-vestimentário e neo-insigniário comum a docentes e estudantes do ensino superior, magistraturas judiciárias e associados de confrarias neo-medievais . Na esmagadora maioria das situações identificadas, há alguns traços comuns a destacar:

-opção pelas vestes talares, multissecularmente associadas à imagem da nobreza de toga, sendo visível o pendor para a subida das bainhas dos talões para a meia-perna (10 a 15cm acima do calcanhar);
-respeito generalizado pelo preto, cor tradicionalmente usada em Portugal pelo clero secular, UC, magistratura judicial, magistratura do Ministério Público, funcionários judiciais, oficialato municipal, docentes das antigas Médico-Cirúrgicas, docentes espanhóis, brasileiros e italianos;
-definição dos trajes adoptados como vestes profissionais de doutorados, agregados e catedráticos, com exclusão de docentes detentores de outros graus, bem como de funcionários e alunos, exceptuando-se a Universidade de Aveiro, a Lusíada, a Lusófona e a Moderna;
-em geral, aprovação de insígnias não coincidentes com a borla e capelo, centradas em membros dos corpos docentes doutores e catedráticos.

E no caso dos politécnicos, invenção arbitrária por parte de cursos e estruturas associativas estudantis de:

• cores para cursos, ora apropriadas em universidades, ora inventadas sem ligação oficial aos órgãos de gestão da respectiva instituição;
• criação de trajes estudantis inspirados em motivos etnográficos locais;
• adopção da capa e batina conforme o modelo conimbricense;
• invenção de heráldica e distintivos ad hoc associados a determinados cursos.

Relativamente às cerimónias de formatura (licenciatura) e mestrado, bem como insígnias que lhe estão associadas, a UC tem mantido total mutismo, num momento charneira em que o ciberespaço propicia informação sobre as seguintes tendências:

• continuidade das cerimónias multisseculares de colação dos graus em universidades britânicas como Oxford, Cambridge e Saint-Andrews, estando os actos oxfordianos mais próximos das normas estatutárias conimbricenses;
• por força da globalização e das iniciativas de apropriação identitária desenvolvidas a partir da década de 1990 pelas business schools e management schools, alastramento da graduation ceremony de paradigma norte-americano em universidades e politécnicos de Espanha, França, Suíça, Itália, Dinamarca, Bélgica, Alemanha e Polónia;
• implementação de festas de entrega de diplomas na Universidade de Aveiro, Universidade Católica, Universidade Lusíada e Universidade Fernando Pessoa, cujo paradigma oscila entre a “graduation ceremony” norte-americana e os eventos mediáticos de entrega de troféus a figuras do mundo do cinema, música, literatura, moda, desporto, economia e gestão de empresas.

A singeleza do tailleur envergado pelas estudantes da UC não escaparia incólume ao confronto com a grande movida de trajes estudantis inventados e adoptados em Portugal a partir de 1989. Ao contrário do que tinha acontecido com os liceus oitocentistas, desta vez o ensino secundário massificado após 1974 assimilou as roupas de marca materializadas em calças de ganga, sapatilhas, t-shirts e bonés de baseboll. Nos espaços influenciados por Coimbra , Porto e Lisboa a capa e batina, modelos clássicos masculino e feminino, conseguiu manter-se.
A superação dos paradigmas ideológicos e estéticos específicos da modernidade carreia um desejo assumido de não querer ser nem parecer-se com a UC. Do ponto de vista vestimentário, o movimento identitário diferenciador e individualizador arranca na Universidade do Minho em 1984 para o corpo docente e em 1989 para o corpo discente, apoiado pela cultura dos docentes fundadores, equipa dirigente da Associação Académica e alguns docentes . Ainda em 1989 era dado a conhecer o “traje do tricórnio”, figurinos masculino e feminino, com elementos retro como o chapéu tricórnio setecentista, a capa fidalga, a camisa de colarinho raso e os calções masculinos . Na era da massificação do ensino superior português, a Universidade do Minho assumia a construção da sua identidade visual e simbólica como um distanciamento claro em relação ao paradigma cultural conimbricense e uma procura de ancoragem nas raízes etnográficas e religiosas do Minho .
Na UP e na UC, povoadas por clientelas habituadas à capa e batina como único traje nacional do estudante, as reacções foram bastante adversas por parte dos estudantes e docentes. Em Coimbra, onde certas elites mantinham viva a memória das lutas da geração de Antero de Quental em prol das calças compridas, os calções masculinos foram vistos com desconfiança e perplexidade. Em Guimarães, a Comissão das Festas Nicolinas procurou demarcar-se da solução adoptada em Braga . Para os militantes da causa abolicionista, a situação tornava-se confusa. Se já era difícil continuar a sustentar o discurso da capa e batina como traje “fascista” cuja recuperação era considerada reprovável, onde situar agora os novos trajes académicos em afirmação e como identificá-los e caracterizá-los?
Mais ou menos na mesma altura, a Escola Superior Agrária de Coimbra abandonou a capa e batina e adoptou um traje de tipo equitação à base de jaqueta verde, calças e botas de montar. O movimento ascensional das tunas e o sucesso colhido pelo “traje do tricórnio” abriram a caixa de Pandora. Ao longo da década de 1990 e nos primeiros anos do século XXI surgiram trajes estudantis em variados estabelecimentos de ensino superior marcados pelos referentes do ecletismo e do revivalismo, que iam desde a inspiração aristocrática à reciclagem descomplexada de elementos etnográficos regionais.
Eis uma amostragem:

• Universidade de Aveiro, “O Gabão”, em preto, composto por calça comprida/casaco curto avivado a verde/colete/gabão (M), e saia curta/casaco curto avivado a verde/colete/gabão (F);
• Universidade da Beira Interior, calça comprida/jaquetão/capa capote/chapéu serrano de feltro (M), e saia preta comprida/casaquinho/capa de capuz, conjuntos inspirados nos trajes rurais de casais abastados e noivos de inícios do século XX ;
• Universidade do Algarve: conjunto azul-escuro composto por saia comprida evasé/casaco/capa/chapéu à Infante D. Henrique (F); calça comprida/casaco curto/capa/chapéu à Infante D. Henrique (M);
• Universidade dos Açores: conjunto azul-escuro inspirado no capote e capelo, composto por calça comprida/casaco/capa (M), e saia curta/casaco/capa (F);
• Instituto Politécnico de Bragança: “O Capote”, em preto, composto por calções/dolman/capote (M), e saia/casaco/capote (F) ;
• Instituto Politécnico de Portalegre: “Capote Alentejano”, em preto, composto por calça comprida/jaquetão/capote/chapéu alentejano (M), e saia/casaco/capote/chapéu alentejano (F) ;
• Instituto Politécnico de Viseu: conjunto preto constituído por calça comprida/casaca/capa comum/chapéu de feltro de aba larga (M); saia comprida/casaco/capote com capuz (F);
• Instituto Politécnico de Beja, capote alentejano ;
• Instituto Politécnico de Leiria, conjunto preto constituído por calça comprida/casaco/capa clássica (M), e saia curta/casaco/capa/chapelinho ;
• Instituto Politécnico de Castelo Branco, conjunto preto inspirado no “capote serrano” composto por calças pretas/jaqueta/capote/chapéu (M), e saia curta/casaco/capote/chapéu (F) ;
• Escola Superior Agrária de Santarém: “Traje de Equitação”, em castanho, composto por calças/jaqueta/chapéu (M), e saia comprida/jaqueta/chapéu (F) ;
• Escola Superior de Gestão de Santarém: conjunto composto por calça comprida/jaqueta/faixa de cintura/capa clássica/chapéu de equitação (M), e saia comprida/jaqueta/faixa de cintura/capa clássica/chapéu de equitação (F) ;
• Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa: conjunto preto constituído por saia comprida/casaco/capa;
• Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing (Lisboa), conjunto escossês composto por meia alta/kilt axadrezado/colete/casaco azul/capa clássica preta (M/F);
• Universidade da Madeira: conjunto masculino azul-escuro composto por calça/colete/casaco/camisa branca/capote de romeira; conjunto feminino azul-escuro constituído por saia/casaco/blusa branca/capote de romeira .

Paralelamente ao processo de invenção dos trajes discentes, fenómeno transversal ao ensino superior público e privado, universitário e politécnico, os anos balizados entre 1983-2005 testemunharam a afirmação de trajes corporativos, especificamente criados para uso de tunas estudantis:

• traje da Tuna Académica da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Vila Real). A tuna foi fundada em 1983 como organismo misto e os seus elementos usam um traje inspirado na capa de honras de Miranda do Douro: saia curta castanha/blusa branca/boina castanha/capa castanha (F), e calça comprida castanha/camisa branca/boina castanha/capa castanha ;
• traje do Real Tonel Académico de Viseu, formação fundada em 1991 com estudantes dos vários estabelecimentos de ensino superior radicados em Viseu. O traje masculino da tuna, remonta a Abril de 1997, e segue de perto a indumentária das tunas universitárias espanholas que foi lançada em 1973 pela Tuna da Universidade de Salamanca. É um traje de inspiração quinhentista, “à século do ouro”, constituído por calções de entretalhos/gibão/boina/capa preta forrada de azul ;
• traje da Tuna do Instituto Politécnico de Tomar. Conjunto masculino preto instituído em 2000, comporta capa clássica/calça comprida/dólman de alamares/chapéu de feltro ribatejano ;
• traje da Infantuna, grupo masculino constituído em Viseu no ano de 1991 por estudantes de diversos estabelecimentos. Traje dito “à Infante D. Henrique”, em preto, constituído por calções/colete/capa/chapéu bolonhês ;
• traje da Tuna Masculina da Universidade da Madeira. Grupo fundado em 1994, com actividade regular desde 1995. Traje de festa ou domingueiro da segunda metade do século XIX, com predomínio do preto, constituído por calções/colete bordeaux/casaco pela meia coxa e capa de capuz.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009


Indumentária de capelão militar alemão por alturas da Grande Guerra. Embora os capelães militares usassem batina talar romana, as acções de campanha e a turbulência das enfermarias aconselhavam uma indumentária prática e de linhas depuradas.
A casaca documentada na fotografia foi amplamente consagrada na década de 1860 em contexto de Guerra Civil norte-americana e ainda se usou durante a Grande Guerra de 1914-1918.
Caso para perguntar, esta casaca não tem um certo ar que nos é familiar? Obviamente que sim, com a casaca adoptada na década de 1860 pelos estudantes de Coimbra e com a casaca que os docentes da UC discutiram em Dezembro de 1915 no senado como hábito provisório.


Militar norte-americano com casaco, calça comprida e képi, uniforme amplamente popularizado durante a Guerra Civil norte-americana. A partir da Guerra Peninsular, o estudante de Coimbra oscila entre a reclamação do abolicionismo vestimentário e as sugestões da uniformologia militar. Não chegou a vingar, mas à entrada da década de 1860 o ministério que detinha a tutela do ensino pensou e propôs que os estudantes de Coimbra passassem a usar um uniforme semelhante ao da fotografia, em preto, com vivos verdes. Ainda assim, sem replicar todas as soluções propostas pelo uniforme militar, o pequeno uniforme que os estudantes adoptam a partir de 1863 é semelhante ao aqui documentado.


Fotografia de Francisco Rodrigues da Cruz (1859-1948), conhecido por Padre Cruz, no dia da sua formatura na Faculdade de Teologia da UC em 1880.
Ostenta o pequeno uniforme com camisa branca de colarinho postiço, casaca de carcela fingida e golas lançadas em torno do colarinho e capa simples cujo colarinho aperta com um alamar singelo.

Património vestimentário... (cont.)
Os estranhos atalhos da feminilização

Corpo discente

Ao longo do período em análise, os debates sobre a desnecessidade do traje académico, ou da transformação da morfologia multissecular num figurino burguês oitocentista detectam-se apenas no interior de práticas discursivas identitárias masculinas juvenis. Não participam no debate, nem sufragam as propostas contraculturais em curso a Casa Reitoral, facções representativas do corpo docente, os funcionários ou as primeiras gerações de matriculandas.
Estas ingressam na Faculdade de Matemática da UC no ano lectivo de 1891-1892 pela mão de Domitila Hormizinda Miranda de Carvalho, sendo a instituição frequentada por 874 alunos . Só em 1896 se lhe viriam juntar outras duas alunas, Maria do Carmo Teixeira Marques e Sofia Júlia Dias. Ocupava a cátedra reitoral António dos Santos Viegas (1837-1914), a quem Domitila de Carvalho endereçou o requerimento de matrícula. A 16 de Outubro de 1891 o Reitor oficiava ao Ministro da Instrução Pública e Belas Artes, João Marcelino Arroyo (1861-1930), o teor do pedido e diversos considerandos favoráveis à admissão.
Em 1860 e 1872 duas mulheres tinham realizado na Faculdade de Medicina exame de aptidão farmacêutica e em 17 de Julho de 1883 o Reitor da Universidade de Liège solicitara a Coimbra o preenchimento de um questionário sobre o estado da feminilização na UC. Na resposta, assinada pelo Vice-Reitor Bernardo de Serpa Pimentel (1817-1895), assumia-se uma atitude favorável ao processo de feminilização, dando-se conta que o Reitor Visconde de Vila Maior fora encarregado pelo governo de elaborar a lei de bases destinada a regulamentar a admissão de mulheres no ensino superior português.
Aquando da primeira formatura feminina concedida pela UC a Domitila de Carvalho em 1903 já havia alunas graduadas nos EUA, Suíça, Itália, Escócia, Irlanda , Grã-Bretanha, Austrália , Nova Zelândia, Índia , França, Suécia, Dinamarca, Holanda, Bélgica e nos estabelecimentos politécnicos de Lisboa e Porto.
Carolina Wilhelma Michaelis de Vasconcelos (1851-1925), que em 1911 foi convidada a leccionar na nóvel Faculdade de Letras da UC, tinha sido proclamada doutora honoris causa pela Universidade de Friburgo em 1893 . Maria Montessori (1870-1952) formou-se em Medicina na Universidade de Roma em 1896 e na prossecussão da sua carreira académica usou a toga e o barrete dos doutores italianos. Nos colégios e universidades anglo-saxónicas há informação confirmativa de que as graduandas envergaram a “gown” masculina e com ela começaram a frequentar as cerimónias de formatura pelo menos desde finais da década de 1860: Escócia, Irlanda, Grã-Bretanha, EUA, Canadá, Índia, Nova Zelândia e Austrália. A feminilização começara justamente no Geneva College de Nova York, estabelecimento de ensino que em 1849 concedera formatura em Medicina a Elizabeth Blackwell (1821-1910). As instituições de formação pioneiras parecem situar-se no campo da especialização em Medicina e localizam-se nos EUA .
A cultura académica anglo-saxónica revelou a sua plasticidade ao transformar as vestes talares históricas em vestes unissexo, situação que em finais da década de 1890 seria alargada ao universo do judiciário quando as primeiras graduadas em Direito ingressaram na advocacia. O primeiro caso pode ser ilustrado com o exemplo de Agnes Pichen, que após formatura com "cap, gown and hood", ingressou em 1908 no corpo docente da Universidade de Glasglow como lente de inglês, ali usando o traje masculino clássico , com as primeiras formandas em Medicina na Universidade de Sydney, no ano de 1898 , ou o primeiro doutoramento honoris causa da University of Queen's, Canadá, conferido pela Faculdade de Direito à Condessa de Aberdenn Ishbel Marjoribanks, em Maio de 1898 .
Quanto ao segundo caso, atente-se no acesso à advocacia na Nova Zelândia protagonizado por Ethel Benjamin. Na transição do século XIX para o século XX as primeiras mulheres formadas em Direito ingressaram em profissões jurídicas tradicionalmente monopolizadas por homens, como a advocacia e a solicitadoria. Em países como a Inglaterra, Canadá, Índia, Austrália e Nova Zelândia o ingresso das mulheres nas profissões jurídicas representou um processo bem sucedido de adaptabilidade inclusiva. A peruca, o plastron e a toga foram transformadas em veste profissional unissexo. Serve de exemplo uma fotografia de Ethel Rebecca Benjamin (1875-1943), formada em Direito pela University of Otago no ano de 1897. Em 10 de Maio de 1897 foi admitida como primeira advogada e solicitadora na Supreme Court da Nova Zelândia .
Situação idêntica se viveria em França e na Itália em termos de vestes académicas e judiciárias, embora a imprensa francesa tenha revelado o seu lado mais misógeno em caricaturas e postais ilustrados.
O combate em prol da abertura da advocacia às mulheres em França foi liderado por Jeanne Chavin (1862-1926), que em 2 de Julho de 1892 defendeu na Faculdade de Direito da Universidade de Paris uma tese de doutoramento de 196 páginas intitulada Des profissions acessibles aux femmes, en droit romain et en droit français. Évolution historique de la position économique de la femme dans la societé. A prestação do primeiro juramento profissional por Me. Petit como advogada foi motivo de capa do Suplement Ilustré do Le Petit Journal, nº 527, de 23 de Dezembro de 1900. No início do ano seguinte começou a circular em França uma série de quinze postais ilustrados com o título “La femme avocat”, onde uma figurante em toga e barrete depreciava a nova profissão com recurso a poses caricatas, legendas de conteúdo negativo e um bebé que recordava a impossibilidade de conciliar as tradicionais funções de esposa e de mãe com a independência profissional .
Ao contrário do que se possa pensar, a situação francesa não foi propriamente pautada por atitudes de “vanguardismo” ou de “pioneirismo”. Nas escolas profissionais de artes e ofícios, o tailleur tipo marinha só viria a emergir em 1964. Na Escola Politécnica de Paris, a versão feminina do uniforme ocorre apenas em 1974. E no Instituto de França será necessário dobrar o limiar da década de 1980 para vermos académicas em “habit vert”, quando em Portugal a Academia das Ciências admitira as primeiras duas sócias em 1912.
Na Suécia, Betty Pettersson (1838-1885) matriculou-se no ano de 1872 em Filosofia e Línguas na Universidade de Uppsala, e uma vez concluído o curso dedicou-se à docência. Pettersson figura numa fotografia de época com o boné dos estudantes. Em 1883 Ellen Fries (1855-1900) obteve o doutoramento em História também em Uppsala .

Em Coimbra, o pedido de dispensa do porte de hábito talar parte da própria Domitila de Carvalho, solicitação que o Reitor Santos Viegas reporta ao governo e considera aceitável “visto não ser admissível às mulheres o uso da capa e batina, que é o uniforme adoptado na Universidade; e parece-me conveniente que se lhe imponha a obrigação, a que ela própria se oferece, de comparecer nas aulas e nos actos académicos honestamente vestida de preto, com o traje próprio do seu sexo” . Em abono da sua posição, Santos Viegas lembrava que os alunos militares e os internos da Santa Casa da Misericórdia de Coimbra também estavam dispensados do uso da capa e batina.
Em bom rigor, a decisão reitoral espelhava a visão das elites portuguesas da época sobre a natureza feminina, partilhada por jurisconsultos, militares, médicos, matemáticos e clérigos. De acordo com o direito positivado e com os preconceitos científicos apregoados pelo direito, antropologia, medicina e biologia, a mulher estaria marcada por um conjunto de estigmas físicos e psíquicos, incapacidades que a colocavam numa posição de inferioridade perante o homem, dispondo-a apenas para o casamento e reprodução .
A capa e batina dos estudantes e lentes laicos conforme o figurino usado em 1890 era um traje masculino à base de casaca preta civil, colete masculino , calça comprida, laçarote e capa singela. Sendo a casaca preta e a calça comprida símbolos da masculinidade burguesa urbana por excelência, era impensável aos olhos dos lentes, reitor e estudantes que as primeiras alunas se atrevessem a apropriar-se deste traje, visão que coloca a UC em situação de rigidez cultural perante a elasticidade das “gowns” anglo-saxónicas.
Mas o que verdadeiramente inquietava a Casa Reitoral e os estudantes era a possibilidade dessas primeiras alunas adoptarem uma toilette viril, invadindo o território masculino . A concordar com o uso da capa e batina pelas alunas, não estaria a UC a contribuir para acentuar o fantasma da desfeminilização da mulher? O receio era fundamentado com exemplos de mulheres que se vestiam com calças compridas, sobrecasaca e botas de equitação, como George Sand (1804-1876) , e de figurinos divulgados em revistas de modas. Em 1831 surgira em Inglaterra o vestido de equitação, com a parte superior masculinizada. Em 1851 a norte-americana Amélia Bloomer propusera sem sucesso o lançamento da calça comprida em Londres, tendo apresentado um conjunto túnica/calça que lembrava as vestes das mulheres persas e indianas . A partir de 1878, as revistas de modas tinham vindo a divulgar nos EUA, França e Inglaterra trajes femininos para ciclista, passeio à beira mar, equitação, ténis e golfe, onde eram bem visíveis os cortes funcionais, os tecidos lisos e a supressão de rendas, bordados e folhos. No caso da ciclista, a saia-calção dera que falar desde Março de 1894 . Num registo comparativo, de há muito que as ceifeiras do Alentejo se tinham antecipado à moda cosmopolita, transformando as saias de trabalho em práticos calções .
Ao inviabilizar a solução unissexo na UC, o titular do cargo reitoral reforçava os preconceitos existentes, sossegava os incomodados e garantia uma radical separação de géneros por mais de 100 anos.
Proibidas de confundir-se com os seus colegas alunos, as estudantes optam por vestir-se de acordo com os padrões da média burguesia e do campesinato provincial abastado: vestido preto comprido, chapéu urbano, e em determinadas cerimónias ou momentos festivos a pasta com fitas de seda e a capa preta. É para todos os efeitos o chamado traje domingueiro das mulheres das aldeias, vilas e cidades de província, com a diferença que as chamadas meias senhoras e burguesas vestiam capas e capotes de honra, ricamente confeccionados, enquanto as estudantes trajavam uma capa de tecido e corte vulgares.
As políticas de exclusão das mulheres na UC não se limitaram ao traje. Ao longo das décadas seguintes, as alunas viverão um autêntico “apartheid” académico. Com efeito, foi no interior da Academia de Coimbra que mais intensa e duradouramente os estudantes praticaram a separação de género e procuraram manter as suas colegas afastadas da “praxe” e da vida cultural, associativa e desportiva extra-curricular . Antes de 1938 as estudantes não entram no edifício sede da Associação Académica nem fazem parte de organismos desportivos, corais, teatrais ou instrumentísticos de dimensão extra-curricular. Muito lentamente, em 1938 ingressam no Teatro dos Estudantes (TEUC) , seguindo-se com intervalos mais ou menos longos a Comissão Central da Queima das Fitas (1940), o Coral dos Estudantes da Faculdade de Letras (1954), o Coro Misto (1957), a Tuna Académica (TAUC, 1960), o Orfeon Académico (1974), a presidência da Associação Académica (1976), e a presidência do Orfeon Académico (1987) .

Com a Revolução Republicana de 5 de Outubro de 1910 as vestes, insígnias e cerimonial da UC são suspensos pelo governo provisório. Relativamente às estudantes são mantidas as decisões adoptadas em 1891. A documentá-lo visualmente, a Ilustração Portuguesa, nº 310, de 29.01.1912, fotografou a estudante Regina Quintanilha e outras colegas como Maria da Conceição Ferro e Silva em traje civil feminino e pasta com fitas de seda. Matriculada em Direito no ano lectivo de 1910-1911, Regina Quintanilha, ainda com o curso incompleto, foi a primeira mulher a advogar em Portugal . A sessão teve lugar no Tribunal da Boa Hora, Lisboa, em 14.11.1913, tendo Regina Quintanilha vestido toga de advogado, evento que foi motivo de capa da Ilustração Portuguesa de 24.11.1913.
Não há notícia de que os magistrados e advogados presentes, todos eles antigos estudantes da Faculdade de Direito da UC, tenham apoucado Regina Quintanilha ou obstado a que vestisse a toga forense. Aliás, o estado da situação do acesso das mulheres às profissões médicas e jurídicas no Ocidente era bem do conhecimento dos lentes e estudantes da UC. A título de tese de conclusão de curso, João Henrique Ulrich apresentara à Faculdade de Direito um ensaio intitulado Elementos para o estudo da advocacia portuguesa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1902, onde revelara actualizado conhecimento do que se estava a passar na Europa, Rússia e América do Norte. Nesta surpreendente dissertação, dedicada a Afonso Costa e ao Conde de Casal Ribeiro, Ulrich defende que as mulheres diplomadas com cursos superiores devem exercer profissões liberais e ingressar na função pública, revelando os seguintes dados:

-países que proíbem que a mulher frequente cursos jurídicos: Alemanha, Áustria, Hungria;
-mulheres diplomadas em Direito, cujos países autorizam o exercício da profissão: Dinamarca, EUA (em 32 dos 47 estados), França (Lei de 1.12.1901), Índia (1896), Canadá, Nova Zelândia, Austrália, Noruega (1902), Suécia (1897); Suíça (Neuchatel e Zurique);
-mulheres diplomadas em Direito cujos países interditam o acesso à advocacia: Bélgica, Dinamarca, Espanha, Inglaterra, Itália .

Este estudante propunha que Portugal abrisse as portas da administração pública a mulheres diplomadas em direito, tese que teve acolhimento favorável entre os elementos do júri. Reconhecendo o espaço crescentemente ocupado pelas mulheres no professorado, correios, repartições públicas, enfermagem, artes médicas e actividades comerciais, seria o governo republicano a promulgar em 1918-1919 os primeios diplomas que legalizavam em Portugal as profissões de notária, advogada e conservadora dos registos:

-o artigo 1º do Decreto nº 4:676, de 17.07.1918, autorizava às diplomadas em Direito as profissões de advogada, ajudante de notário e ajudante de conservador dos registos. Era titular da pasta da Justiça Alberto Osório de Castro que invocou directamente as leis francesas de 7.12.1897, 23.01.1898 e 1.12.1900;
-o artigo 16º do Decreto nº 5:625, de 10.05.1919, do gabinete do Ministro da Justiça António Joaquim Granjo, que permitia às diplomadas em Direito o exercício do notariado .

Deste modo, a partir de 1918 a toga forense é convertida sem crispação em veste profissional unissexo, situação não verificada ao nível das notárias e conservadoras que nunca chegaram a ter traje profissional.
A obrigatoriedade de uso diário de uniforme masculino estudantil na UC foi abolida por Decreto de 23.10.1910, situação de certa forma extensiva aos liceus onde o porte masculino fora autorizado por diplomas do Ministério do Reino. O diploma referido não interditava o traje, apenas o tornava facultativo, tanto mais que no curto prazo a esmagadora maioria dos alunos da UC, da Tuna Académica (TAUC), do Orfeon Académico e da Tuna do Liceu Central de Coimbra manifestaram vontade de continuar a envergar a capa e batina.
Quando em 19 de Outubro de 1910 o Ministro do Interior António José de Almeida e o novo reitor da confiança do governo Manuel de Arriaga chegam a Coimbra com o propósito de reformar e republicanizar a UC, a maioria dos alunos da Alma Mater e do vizinho Liceu continuava a envergar a capa e batina. Desde a Greve Académica de 1907 que os alunos inconformistas haviam deabotoado a casaca, aplicando-lhe lapelas de cetim, a capa andava enrolada no colarinho ou deitada pelo ombro como se fora um salpicão, e nas gravatas, coletes e sapatos avistavam-se cores transgressivas e provocatórias como o laçarote vermelho dos carbonários.
Tendo a Casa Reitoral deixado de regulamentar o porte do hábito talar discente e as transgressões que lhe estavam intimanente associadas, o “negregado balandrau” (Hipólito Raposo) não é de imediato apropriado pelo Conselho de Veteranos (CVAC). Aliás, até à década de 1920, o CVAC não se pronuncia publicamente sobre o traje académico quanto a figurino, cores, modo de usar, interdições ou punições. Após décadas de predomínio da tradição oral, só em finais da década de 1950 o referido órgão opta por integrar a capa e batina nos domínios estritos da “praxe”, regulamentando o traje com o vocabulário e os instrumentos de controlo habitualmente usados para enquadrar as fardas militares e paramilitares .
Após a promulgação das primeiras medidas abolicionistas, quem começa por tentar regulamentar o porte do que resta do hábito talar discente são as direcções da TAUC e do Orfeon, preocupadas com a eficácia da sua comunicação imagética extra-muros. Entre 20 e 29 de Fevereiro de 1911, a TAUC deslocou-se em digressão a Valladolid, Salamanca, Zamora e Ciudad Rodrigo, com os tunos em capa e batina. Confirmada a digressão a Paris, em Março de 1911, o Orfeon desdobrou-se em concertos promocionais no Porto, Coimbra e Lisboa, sempre de capa e batina, tendo participado a 2 de Abril na inauguração do primeiro Jardim-Escola João de Deus aberto em Portugal.
A 8 de Abril o Orfeon seguiu de comboio para Paris, com programa coral e serenateiro agendado para o Eliseu, Sorbonne, Associação dos Estudantes de Paris e visitas às manufacturas de tapeçarias. Com data de 1 de Março de 1911, a direcção do Orfeon divulgara junto dos 300 estudantes inscritos uma nota sobre as “Condições para integrar a excursão”, na qual constava expressamente que “O traje académico de capa e batina é obrigatório”.
No ano seguinte, procurando normalizar uma certa iconoclastia de cores e acessórios, a digressão da TAUC a Évora, Beja, Faro, Silves e Lagos, realizada entre 14 e 21 de Fevereiro de 1912, levou a direcção da tuna a divulgar um comunicado de “Informações úteis”, onde se frisava “Devem todos apresentar-se de capa e batina, gravata preta, colete preto, e respectivo distintivo (laçarote no ombro da batina) . Todos os instrumentos devem trazer fitas”.
Entre 1911-1912, na UP, os sócios da Tuna e do Orfeão secundaram as medidas adoptadas em Coimbra. A maior parte dos liceus manteve a capa e batina que já era usada desde a segunda metade do século XIX, ou a ela aderiu. Seguindo na esteira dos movimentos em vias de expansão nas high schools britânicas, norte-americanas e japonesas, as alunas dos liceus de Lisboa e do Porto surpreenderam ao optarem pela invenção de um uniforme facultativo semelhante aos das enfermeiras da Grande Guerra.
Em Lisboa, alunos dos liceus reuniram por alturas de Setembro/Outubro de 1915, com o fito de discutir e aprovar que trajes envergar por alunos e alunas. Estas sessões terão sido participadas por alunos da UL que decidiram adoptar a capa e batina. Alunos mais radicais reclamaram mesmo o retorno da obrigatoriedade de porte, mas na prática o uso da capa e batina ficou confinado aos edifícios do Campo de Santana, a grupúsculos masculinos da Faculdade de Direito e ao “Liceu do Carmo”.
Na UP, em reunião inter-faculdades, realizada em finais de Fevereiro de 1916, decidiu-se implementar o uso generalizado da capa e batina a partir do dia 15 de Março de 1916 . Faltam-nos dados sobre as matérias deliberadas nestas reuniões e perfil dos participantes, não sendo possível afirmar se a decisão abrangeu apenas alunos e alunas da UP, ou se nelas marcaram presença alunos/alunos dos liceus.
A Gazeta de Coimbra, nas suas edições de 27.10.1915 e 4.03.1916 informa que em Lisboa já se viam "meninas" trajadas, certamente liceais. Aliás, a promulgação do Decreto nº 10.290, de 12.11.1924, que procedeu à nacionalização da capa e batina nos liceus e estabelecimentos de ensino superior teve como antecedente imediato os conflitos e movimentos grevistas que em Outubro de 1924 perturbaram os liceus lisboetas. O articulado do referido diploma não teve qualquer aceitação na UC ou nos liceus de Coimbra, persistindo o entendimento masculino segundo o qual as alunas não podiam usar traje académico.
O traje feminino, espontaneamente consagrado em Lisboa no segundo semestre de 1915 é um tailleur preto trapezoidal, à base de saia pela meia perna, casaco cintado, cortado pelo meio da coxa e blusa branca. A gravata demoraria a impor-se. Numa fotografia da turma de finalistas da poetisa Florbela Espanca, captada no Liceu de Évora em 1917, é bem visível o tailleur preto com capa e blusa branca sem laço ou gravata . Em fotografias de inícios da década de 1940 relativas a alunas do Liceu de Évora, a blusa branca ostenta as golas abertas, sem gravata alguma. Já no Liceu de Braga, num programa festivo de 1935, a aluna exibe um papillon preto . No caso do Porto, a gravata terá sido usada pelo menos desde a década de 1920. Assim está documentado numa fotografia tirada em 1925 por uma aluna do Liceu Alexandre Herculano e numa de 1946-1947 relativa ao Orfeão Universitário.
O fato referido era o mesmo envergado pelos corpos de enfermeiras da marinha e da Cruz Vermelha, nos EUA (em azul marinho, com capote e chapéu de abas), e em certos hospitais europeus pela mesma época (em cinzento), conforme determina o Decreto nº 4:136, de 24.04.1918, e respectivos desenhos anexos, que o manda aplicar às enfermeiras militares portuguesas. Ao referido conjunto se adicionou um capote azul-escuro forrado de vermelho e uma barretina, conforme atestam fotografias de época. Este último elemento, resulta de uma transformação do barrete islâmico do magrebe, o "chéchia" ou "kufix", que também era usado desde 1859 em escolas militares britânicas de formação de cadetes ("pillbox hat"). Antes de ter feito a sua entrada triunfal nos liceus de Lisboa, Porto e Évora ("tacho"), em versão unissexo, o "pillbox" já era largamente usado em Portugal por militares, impedidos de oficial e alunos da Academia Militar.

Ia adiantado o século XX quando se acendeu a discussão sobre a necessidade de as alunas da UC tirarem benefícios práticos do uso de um traje de tipo uniforme. Não ter traje académico fazia parte da identidade das académicas da UC desde 1891, ano em que contemporaneamente se matriculou a primeira aluna. A não participação feminina na vida associativa, a ausência de organismos culturais mistos até 1938 e a omissão da cerimónia de formatura de bacharéis e licenciados desde 1910, foram justificando a inércia observada em Coimbra. A nível dos liceus locais, mesmo considerando o Liceu Feminino Infanta D. Maria , nada consta quanto a um hipotético uso de farda, se considerarmos que a bata branca não era propriamente um uniforme escolar.
As alunas da UC tinham o privilégio do uso de pasta de luxo em tecido pintado ou bordado com fitas de seda e capa preta sem uniforme, costume que na década de 1980 ainda era praticado por quintanistas que iam ao Baile de Gala das Faculdades durante os festejos da Queima das Fitas. Era o equivalente aos trajes cosmopolitas de ir à ópera e ao teatro, usados até à década de 1950 em Nova York, Paris, Londres, Milão e Lisboa.
Nos finais da década de 1940 este estado de coisas começou a mudar quase imperceptivelmente. As universitárias de Coimbra estavam a par do uso do tailleur preto nos liceus portugueses e no Orfeão Universitário do Porto. O tailleur tinha vindo a conhecer crescente popularização no Ocidente graças às enfermeiras da Segunda Guerra Mundial e aos corpos de hospedeiras das companhias de aviação civil. As divas de Hollywood exibiam o tailleur e estilistas como Christian Dior apostaram na sua apropriação pela indústria da alta-costura. O peso crescentemente atribuído desde meados da década de quarenta às latadas de começo de ano escolar e às cerimónias de imposição de insígnias (grelos no 4º ano, fitas no 5º ano), começaram a suscitar em alunas da Faculdade de Letras vontade de adopção de um traje académico. No dia da imposição de insígnias às novas greladas e novas fitadas de Medicina e Farmácia, a 19 de Novembro de 1949, a estudante de Germânicas Ilda Pedroso desfilou com um conjunto saia/batina/capa, acontecimento muito comentado no millieu e bem acolhido segundo os relatos recolhidos . Todas as informações consultadas testemunham a opção pela saia embainhada abaixo do joelho, numa época em que os códigos da moralidade e do pudor vigentes em Portugal não poderiam aceitar na mulher o porte de calça comprida, e pela batina masculina também embainhada abaixo do joelho (frock coat), com lapelas de cetim.
Parecia encontrada uma solução, numa instituição onde a cultura histórica não legitimava de ânimo leve nem o tailluer, nem uma distinção formal entre modelo masculino e modelo feminino. No curto prazo, a evolução seria bem outra.
Em 1951 as alunas do Teatro dos Estudantes (TEUC) prepararam uma digressão ao Brasil, tendo decidido levar um conjunto vestimentário funcional que substituísse os custos e os incómodos habitualmente havidos com os vestidos de gala. Ficou decidido tarnsportar nas bagagens o tailleur preto conforme modelo em voga na alta-costura e no pronto-a-vestir. Entre 12 de Agosto e finais de Outubro de 1951 o TEUC actuou no Brasil e visitou a Universidade de São Paulo .
A opção pelo tailleur como que passou despercebida no meio académico. Decisão espontânea, terá contado com o beneplácito de figuras masculinas que integraram a comitiva como Francisco Barrigas de Carvalho (Dux Veteranorum), Maximino Correia (reitor), bem como os lentes João Pereira Dias, Manuel Lopes de Almeida e Eduardo Correia. O protagonismo coube a Maria do Céu Fidalgo, Margarida Costa, Ermelinda Gomes Leal, Ilda Pedroso, Maria Ascensão Albuquerque, Maria Augusta Mimoso e Albertina Botelho.
De 1951 a 1954 não se sabe com rigor que nível de adesão o tailleur terá conhecido em Coimbra, que lhe possa ter grangeado ser mais do que o fato que as alunas do TEUC levaram ao Brasil. Uma coisa é certa, se estivesse popularizado e se fosse querido das estudantes, não teria havido necessidade de o impor por decreto .

Pouco antes da Queima das Fitas de Maio de 1954, o Conselho de Veteranos da Academia de Coimbra (CVAC), após decisão exclusivamente masculina, deliberou impor por "decretus" o tailleur preto à base de casaco preto curto/saia como traje discente feminino. Ficou determinado que nas latadas das Faculdades e imposições de insígnias de Novembro desse ano as novas greladas e novas fitadas não pudessem usar pastas com grelos ou fitas sem o tailleur.
Entre Setembro e Novembro de 1954 Coimbra viveu dias de corrida ao "fato", abrindo desde então as portas ao pronto-a-vestir. A imprensa periódica que efectuou a cobertura dos eventos relatou que a quase totalidade das novas greladas e novas fitadas usava o tailleur. O concentrar das atenções da comunicação social em Coimbra fez esquecer que a mesma indumentária era usada ia para 39 anos nos liceus portugueses e pelo menos desde há 8 anos no Orfeão Universitário do Porto.
A medida decretada em meados de 1954 gerou uma onda de descontentamento entre as alunas que não se sentiam agradadas com o modelo escolhido, ou que liam a obrigatoriedade como um atropelo masculino à sua tradicional prerrogativa de não uso de uniforme académico. Outro pomo de discórdia residiu na imposição das meias altas pretas, quando as estudantes preferiam não vestir meias ou usá-las na cor da pele. Ao longo da segunda metade da década de 1950 as alunas pintarão riscos pretos na parte de trás das pernas. Não vestindo meias, na verdade pareciam estar a usá-las graças ao artifício do risco pintado na pele, o qual imitava a costura posterior vertical que as meias altas femininas da década de 1950 ainda comportavam. Procurando suavizar os descontentamentos, o CVAC integrou o tailleur no "Código da Praxe de 1957 " e manteve a velha prerrogativa do uso de capa preta com vestido de gala. O primeiro grande utente e divulgador do tailleur terá sido o Coral da Faculdade de Letras (CELUC) que se apresentara em público em Abril de 1954.
A decisão, que parecia colidir com os interesses de gestão imagológica da Mocidade Portuguesa Feminina, suscitou as atenções da comunicação social mundana, tendo a revista FLAMA, n.º 353, de 10.12.1954, dedicado o rosto e páginas ao assunto. Se as alunas não foram parte activa na decisão, também a Casa Reitoral liderada por Maximino José Morais Correia (1893-1969) se manteve à margem da decisão tomada pelo CVAC, em respeito à máxima campeante desde 1910 segundo a qual a Reitoria não deveria imiscuir-se nos assuntos dos estudantes (=“A Academia é soberana”).
Vingava assim na UC, por decisão marginal ao senado e decreto assinado à revelia das interessadas, um fato de tipo "high school", ou escola de artes e ofícios (França), cujo figurino e contexto cultural nada tem que ver com a história e as tradições da Alma Mater. O design adoptado não tem originalidade nem comporta valor estético bastante para individualizar no conjunto características artísticas ou patrimoniais. A confecção da saia e do casaco é de tipo pronto-a-vestir. Os tecidos mais utilizados, não sendo ordinários, também não se adequam a um traje contemporaneamente usado em contextos cerimoniais. Os preços praticados pelas lojas do pronto-a-vestir exorbitam o real valor do conjunto de confecção industrial.
Olhando ao que se passa em universidades históricas como Oxford ou Cambridge, nunca foi suficientemente provado que numa universidade como Coimbra haja necessidade de trajes diferenciados para alunos e para alunas, solução que só o desconhecimento do percurso e características das vestes talares poderia justificar.
Nunca tendo conquistado na UC o capital simbólico de que goza nos corpos militares, forças policiais, “business schools”, gestoras de empresas, administradoras e dirigentes intermédias e superiores da administração pública, o “fato” sobreviveu, e no Código da Praxe da Universidade de Coimbra de 2001, mantinha-se a diferenciação de género e autorizava-se a título de acessórios as lapelas de seda, a mini-saia e o colete , numa possível aproximação aos trajes de majorettes.
A impropriedade do “fato” assenta num conceito ultrapassado de normalidade vestimentar determinada pelas elites burguesas em função da permanente diferenciação dos sexos, situação que na UC é materializada pelo dimorfismo casaca/calça comprida e casaco curto/saia. Acrescem a isto a ausência de raiz talar nesta veste e o facto incontornável de o tailleur ser a indumentária das funcionárias da UC em contextos cerimoniais. Com o seu forro de cetim, estolas dianteiras e cabeção, a capa de cerimónia das funcionárias acentua a singeleza da capa da estudante. Outrotanto acontece num confronto entre a capa escolar e a reconstituição etnográfica das capoteiras e capotes de gala exibidos pelas tricanas conimbricenses de oitocentos .

A diferenciação apontada reflecte-se nos preços de confecção do pronto-a-vestir. Atendendo aos preços praticados em 2008-2009, enquanto o conjunto masculino clássico importa em €125, o tailleur custa €84. Confrontando estes montantes com o custo de trajos académicos femininos de outros estabelecimentos de ensino superior criados em Portugal a partir de 1989, o resultado é arrasador: €189,50 na Universidade do Algarve, €148 no Instituto Politécnico de Leiria, €119 para o conjunto da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, €145 no IADE e €155 na Universidade da Beira Interior.

Património vestimentário... (cont.)
Do “talar” ao “casacar”

O edital reitoral de 10 de Outubro de 1863 , não obstante o seu cariz liberalizador, não era um texto conseguido do ponto de vista vestimentário. Pretendendo instaurar uma divisão clara entre grande uniforme, destinado a actos solenes, e pequeno uniforme, de cariz funcional quotidiano, o autor do texto limitava-se a autorizar os sapatos pretos vulgares e as botinas, as calças compridas, a camisa branca, a gravata e o colete civis pretos e a casaca burguesa integralmente abotoada na frente. A ausência de um regulamento e de desenhos de apoio não ajudou a clarificar o espírito subjacente à reforma. Seguir-se-ão novos ciclos transgressivos, marcados pela falta de equilíbrio entre as novas realidades emergentes (feminilização discente), opção por tecidos de qualidade discutível em resistência e cor, bem como crescente tendência para o desencontro entre a morfologia da indumentária e a anatomia corporal.
Nas instituições escolares, militares e religiosas onde se mantinha o porte diário de uniforme, os tempos ditavam a distinção entre um grande uniforme ou traje de gala e um pequeno uniforme para serviço corrente. A Casa Papal não ficou indiferente a estas orientações. Por volta de 1870 o Papa Pio IX autorizou, em situações protocolares específicas, o uso do “abito piano”, composto por sapatos pretos de fivela, meias altas, calções, batina romana preta sem cauda e avivada, faixa de seda, cabeção, volta, romeira de ombros, e como cobertura de cabeça o solidéu e o barrete quadrangular .
Na Coimbra do após 1863, relativamente aos momentos solenes e cerimónias, continuava a exigir-se o porte de calções e de volta branca, sendo a última disposição comum aos eclesiásticos, magistrados judiciais, oficiais de justiça e militares.
O edital reitoral promulgado por Vicente Ferrer era omisso quanto ao traje dos lentes e estudantes clérigos, situação enquadrada pelos usos e costumes, nada adiantando quanto às vestes a usar pelos lentes e estudantes civis em contextos cerimoniais e festivos, nem quanto aos padrões de tecido apropriados às situações Verão/Inverno e hábito grande/hábito pequeno.
A questão das insígnias próprias dos graus académicos não era contemplada, num momento da história da instituição em que as insígnias de bacharel e de licenciado estavam caídas em desuso, restando tão-somente as insígnias doutorais. Reagindo contra a escassa visibilidade e inconsistência da formatura, os bacharelandos ocuparão a segunda metade do século XIX a transformar os fitilhos de atar as pastas em ostentatórias fitas de seda e a implementar festas de formatura alternativas ao vazio institucional existente, com recurso à récita de gala, balada de despedida, carta de curso (=álbum fotográfico), serenata fluvial, banquete comunitário, lançamento de foguetes e desfile público abrilhantado por filarmónica.
A ausência de elementos femininos na UC manteve o debate rigorosamente circunscrito aos códigos vestimentários masculinos. A breve-trecho registou-se uma tendência para o uso generalizado do hábito pequeno em momentos solenes como a colação do grau de doutor, quando este traje não se coadunava com o valor patrimonial nem com a linguagem estética da borla e capelo. Numa análise comparada entre as peças nucleares do hábito pequeno conimbricense autorizado em 1863 e a toga talar instituída como veste de trabalho na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa em 1856, e na Escola Médico-Cirúrgica do Porto em 1857, facilmente ressalta a inferioridade da opção coimbrã. O mesmo vale para a comparação entre o pequeno uniforme conimbricense a a toga dupla consagrada nas escolas superiores de Medicina do Rio de Janeiro e São Salvador da Bahia.
Qual o exacto alcance da “reforma” de 1863, no que ficou escrito e no que se não chegou a escrever?

Hábito Pequeno: seguindo as pisadas francesas que apontavam para a dicotomia pequeno uniforme/grande uniforme, amplamente consagradas em Portugal a propósito das fardas militares, nas Escolas Médico-Cirúrgicas e na Casa Papal ao instituir por volta de 1870 o “abito piano”, a UC autorizou o porte de um uniforme funcional, destinado a uso diário, leccionação e aulas de prática laboratorial. Na data em que foi aprovado, este traje era extensivo à totalidade do corpo docente e discente da UC e do Lyceu de Coimbra. O seu uso não era obrigatório e, pelo que se apurou, os estudantes clérigos da Faculdade de Teologia não o chegaram a adoptar, nem os lentes daquela Faculdade que continuavam a envergar o hábito talar eclesiástico romano.
A distinção entre pequeno uniforme e grande uniforme (ou farda de gala) era aplicada desde 1836 aos fardamentos dos archeiros e oficiais da UC. Abolido o tricórnio de feltro, a cabeleira postiça e a grande casaca verde agaloada, o corpo dos archeiros passara a usar em contextos de trabalho uma farda composta por barretina redonda ornada de tope azul e branco, casacão de saragoça com o colarinho avivado a azul e carcela de botões metálicos, calça comprida da mesma fazenda, sapatos comuns, espadim e cinturão de couro preto apertado na frente com uma fivela de latão amarelo.
Nos dias de grande gala, os archeiros envergavam o grande uniforme napoleónico, semelhante ao adoptado pela casa real, à base de sapato preto de fivela de prata, talabarte agaloado, espadim, alabarda, calções, meia branca de seda, colete branco, lacinho branco, luvas brancas, casaca de abas de grilo em lã azul ferrete e bicórnio de feltro. Num território marcado por relações de proximidade, rumores e dichotes, os estudantes divertiam-se espiando os lentes e funcionários. Raros eram os archeiros que não tinham alcunhas e, reproduzindo os ambientes masculinos aldeões onde se devassava a vida privada, havia quem se divertisse a espreitar a barriga da perna dos archeiros e os eventuais chumaços que alguns trariam por dentro das meias de seda.
A distição era extensiva aos oficiais maiores e menores, neles se incluindo o guarda-mor, os bedéis e os contínuos. No dia-a-dia os funcionários vestiam mantéu, calça comprida preta, casaca burguesa preta, colete preto e camisa branca. Nos dias de cerimónia, os funcionários exibiam mantéu de luxo (forrado de cetim preto), casaca, calções e colete tudo em veludo preto, com as bocas de mangas forradas de renda, camisa branca fina, plastron de duas línguas, meia alta preta e sapatos de couro ornados de fivela de prata, bem como luvas brancas. Fazia parte do conjunto um chapeirão preto redondo, tombado no esquecimento após a reacção às cabeleiras postiças.

Eram peças comuns ao pequeno uniforme académico:

-sapatos pretos comuns ou botinas pretas de couro ;
-meias pretas ;
-calças compridas pretas, de abertura de alçapão, com ulterior consagração da braguilha de carcela interna;
-colete preto de carcela de trespasse, munido de seis botões médios, forrados, e decote em V ;
-camisa branca, lisa, sem golas apostas ao colarinho;
-opção facultativa por plastron ou laçarote preto, cujas pontas se deveriam usar por dentro da frock-coat (casaca);
-gorro preto tubular, de porte facultativo, de uso comum aos lentes;
-“batina” preta de sarja, cintada, colarinho raso, com as mangas e costas talhadas no formato da “frock-coat” burguesa da época, e carcela dianteira integralmente fechada com uma fileira de botõezinhos planos forrados de tecido. Bainha inferior quase à meia perna, sendo ligeiramente mais comprida para os lentes;
-capa preta singela, em lã ou sarja, embainhada para os lentes, sem bainha para os estudantes amigos dos rasgões, colarinho raso, dispondo a dos estudantes de alamares, e a dos docentes de cordão de borlas ou de cordão simples.

Diferentemente do hábito talar histórico, o pequeno uniforme marca o triunfo das virtudes burguesas: ordem, trabalho, poupança, austeridade, normalização dos costumes de vida. Convocando um certo espírito de seita publicamente expresso na indumentária, o pequeno uniforme parece incorporar reminiscências das vestes puritanas seiscentistas, e bem assim do trajar frugal dos Quakers e dos Amish. À luz do espírito de poupança e contenção dos gestos, os amplos panejamentos, as linhas evasés, os bordados e os tecidos de luxo claudicam. Impera um figurino vincadamente geométrico, onde não há lugar para excessos de alfaiataria. Se dantes eram admitidos o preto, o pardo e o castanho, agora o preto é a única cor autorizada.
A indumentária masculina descrita manteve-se relativamente estável até à sua abolição em 23 de Outubro de 1910. Antes de 1912 não se registam ingressos femininos no claustro docente. As primeiras alunas haviam chegado à UC em 1891, mas a Casa Reitoral optou por dispensar as estudantes do porte do uniforme escolar. No que respeita à “batina”/”frock-coat”, na passagem para a década de 1870 os estudantes abandonaram a carcela de botõezinhos, passando a usar quase até ao período do Ultimato Britânico de 1891 carcela interna e colarinho adornado de gola de orelhinhas, tipo gabardine. Entre o Ultimato e a Greve Académica de 1907, a “batina” perde novamente a gola de orelhinhas, acentuando-se os actos provocatórios tendentes ao andar desabotoado. A Greve de 1907 hiperboliza a moda da abertura da “batina”, com as lapelas a dobrar sobre o peito em V e o recurso aos adornos de cetim, numa época em que as golas e lapelas em cetim eram símbolo de distinção social para os novos-ricos. A capa passa a usar-se enrolada no colarinho.
Os lentes pró-republicanos, positivistas e anticlericais, seguiram na peugada dos estudantes, mas nunca desabotoaram a “batina”. O 5 de Outubro de 1910 surpreendeu a “batina de lente” integralmente abotoada na frente com carcela fingida, comportando sobre esta uma carcela ornamental à base de botõezinhos revestidos de tecido. É este modelo que se retoma, ao arrepio de todos normativos protocolares, a partir de 1915, como traje de gala masculino, numa versão ainda mais despojada e banalizada, sem carcela ornamental, e com os botões forrados substituídos por botões de massa, numa conjuntura política e cultural hostil à herança patrimonial da UC.
Fazendo jus aos ditados populares “Quem tem capa sempre escapa”, ou “A capa tudo tapa”, a UC atravessaria um século XX confinada ao pequeno uniforme, cujo talhe e tecido não estão em equilíbrio com as insígnias doutorais barrocas e a antomia corporal.
Nas universidades de Lisboa e do Porto, onde este traje teve algum acolhimento, são de destacar três situações:

a) docentes da Faculdade de Direito da UL, que transpuseram o paradigma conimbricense sem modificações;
b) diversos docentes de Lisboa e Porto que usaram a capa e a “frock-coat” apenas entre a fase de defesa de provas doutorais e a ascensão a catedrático, passando então ao porte da toga talar por considerarem que a capa e a casaca não se coadunam com a dignidade de professor catedrático ;
c) a invenção da versão feminina do hábito talar, à base de batina/saia pela linha do joelho em 1945 na Faculdade de Ciências da UP.

A situação descrita torna-se ainda menos inteligível quando se sabe, por via do estudo comparado dos trajes populares regionais portugueses, que no mesmo período em que a UC confundia o hábito pequeno com o hábito de cerimónia diversos elementos do povo intentavam a sua afirmação social através do recurso a capas de luxo, e à confecção de corpinhos (blusas) e saias em sedas lavradas (brocado).
Assim, entre a década de 1850 e o findar da Grande Guerra de 1914-1918, afirmam-se em Portugal as peças de aparato das lavradeiras abastadas ou meias-senhoras e o acesso a capotes, gabões e capas de gala :

-corpinhos ou chambres de seda preta lavrada exibidos em momentos festivos e solenidades por lavradeiras ricas do Minho (Meadela, Braga), Vila Nova de Gaia e Gondomar;
-coletes garridos de seda lavrada, atados na frente com cordões (Minho, Douro Litoral, Beira Litoral);
-aventais de seda lavrada (Vila Nova de Gaia);
-saias compridas pretas em seda enramada, amplamente pregueadas, podendo comportar folhos e barras de veludo (Vila Nova de Gaia, Gondomar, Santa Maria da Feira, Paços de Brandão);
-capotes e gabões burgueses, e peças de indumentária diversa como a capa de honras de Miranda do Douro, o capote debruado da lavradeira rica de Braga, o mantéu feminino de Ovar, a meia capa de Santa Maria da Feira, a capoteira da tricana de Coimbra, a capa de honra de Paços de Brandão, a capa de festa de Castelo de Vide, o bioco do Algarve e o capote e capelo dos Açores.

Em recolhas etnográficas do período da Grande Guerra, José Leite de Vasconcelos confirmou a presença de capas talares pretas e azuis escuras, de certo aparato, em diversas localidades: masculinas e femininas, semelhantes à estudantil, em Penamacor durante o Inverno ; em povoações de Trás-os-Montes, capas femininas próximas das eclesiásticas e académica ; capas pretas e azuis escuras observadas nas mulheres do Baixo-Minho; capas talares domingueiras, exibidas pelas mulheres de Leiria e do Cartaxo, sendo as de Leiria ricamente ornamentadas na frente e na gola .

Ou seja, não é facilmente compreensível que o hábito talar da UC se tenha convertido num conjunto esteticamente inferior a uma peça da indumentária popular portuguesa como a capa de honras de Miranda do Douro, o capote e capelo dos Açores, a capa domingueira das leirienses, o capote alentejano e o gabão do tipo aveirense.
Como já se demonstrou, contra este insólito empobrecimento ergueu voz um bem documentado conhecedor de costumes populares portugueses e de questões estéticas, José Ramalho Ortigão, na crónica “O estudante de Coimbra”, apensa à litografia publicada em 1888 no “Álbum de costumes portugueses”. Se a adjectivação empolada parece conservantista, as interrogações formuladas afiguram-se pertinentes e não respondidas, nem na época nem depois dela.
A perda de identidade do hábito talar abriria as portas a mais de um século de confusão entre uniformes e vestes populares, discurso apropriado desde os alvores do século XX pelos bilhetes-postais ilustrados, figurinhas cerâmicas, capas cartonadas de fonogramas e grupos folclóricos. Na década de 1980 ainda era possível encontrar em Coimbra postais, copos de vidro e figurinhas cerâmicas com o “estudante e a tricana”, conciliação de todo impossível entre farda e traje popular e entre conjuntos de épocas distintas (o da tricana, de ca. 1880-1900; o do estudante, posterior a 1910).

Hábito Grande (versão confessional): embora o normativo de 1863 não o exarasse, mas as disposições estatutárias e a tradição institucional assim o determinavam, os estudantes e lentes da UC que fossem membros do clero regular ou secular mantinham o direito ao porte dos respectivos hábitos talares religiosos. Se após a nacionalização das ordens monásticas de 1834 os docentes e discentes regulares praticamente se não avistavam na UC, o mesmo já não acontecia em relação a estudantes e lentes do clero secular ligados em menor escala à Faculdade de Direito, e em maior extensão à Faculdade de Teologia.
Os alunos de Teologia mantiveram o porte da batina talar romana de um corpo, sapatos pretos de fivela de prata, meias altas e calções, cabeção preto, volta branca rígida e ferraiolo. Os lentes de Teologia usavam os hábitos talares correspondentes às suas dignidades, hábitos esses que iam desde o preto integral ao preto avivado nas cores autorizadas e às vestes de seda nas cores próprias das várias hierarquias. Numa fotografia de 1908, alusiva a lentes da UC que se deslocaram a Lisboa para felicitar o novo monarca D. Manuel II, avista-se um doutor de Teologia com borla e capelo brancos e hábito talar clerical confeccionado em seda preta, em flagrante contraste com o a indumentária singela de dois lentes de Direito que ficaram registados na mesma película. Nenhuma destas antigas disposições foi alterada, continuando os hábitos talares religiosos a ser considerados equiparados ao “habitus academicorum”.

Hábito de gala (versão laica): relativamente aos estudantes e lentes que se prestassem a participar em solenidades, o edital reitoral de 1863 não prescrevia nenhum traje de gala. Apenas se exigia que na colação dos graus de bacharel, licenciado e doutor os graduandos comparecessem com luvas brancas, sapatos pretos de couro/ou verniz e fivela, calções e volta branca. Os lentes civis, ou adquiriam estes acessórios ou recorriam aos préstimos dos seus colegas de Teologia. Os estudantes iam com frequência ao Seminário de Coimbra pedir emprestados os calções, os sapatos e os colarinhos, chegando alguns a usar tiras de cartão branco cortadas à tesoura.
Não se mencionava no texto, mas também não se declarava abolido, o hábito talar histórico, cujas peças nucleares colocavam a UC ao mesmo nível das instituições congéneres britânicas:

-mantéu talar de gala, ou ferraiolo, confeccionada em tecidos ricos como a seda preta lisa ou moiré, que além do cordão de borlas, incluía as duas estolas dianteiras e o cabeção a escorregar pelas espáduas. Apesar das suspeições de clericalismo, o ferraiolo talar era uma peça de gala própria da indumentária dos juízes dos supremos tribunais de Portugal e do Brasil, e em versões menos compridas, dos vereadores portugueses, dos oficiais da UC e dos funcionários judiciais. Na cultura popular provincial portuguesa esta capa de honras ou mantéu de gala era usado como traje de festa por mulheres abastadas (mantéu, capoteira);
-a sotaina ou veste interna, na verdade uma túnica preta larga, de linhas “evasés” susceptível de modernização funcional, através de abotoadura dianteira. Confeccionada em seda lavrada de padrão miúdo, com os canhões adornados de seda lisa brilhante;
-a chamarra ou garnacha, sobreveste que oscilava entre uma versão simples, sem mangas, e variantes mais complexas, à base de incorporação de estolas dianteiras, cabeção, e saio traseiro pregueado entre as omoplatas;
-luvas brancas em contextos cerimoniais e pretas em situações de luto;
-sapato preto de couro adornado de fivela de prata;
-meias pretas de seda;
-calção preto (até 1910), e após 1915 calça comprida e saia.

Esta veste foi regularmente usada pelos juízes portugueses na sua versão histórica até à década de 1960, por estudantes das universidades católicas de Roma, em Oxford, por dirigentes dos domínios britânicos como o Presidente do Senado de Ontário e por funcionários das catedrais de confissão anglicana. Traje caído em desuso em Coimbra, e por diversas vezes invocado, sem que os signatários tenham consciência das características, complexidade e riqueza do que mencionam, uma versão próxima ainda se podia avistar à entrada do século XX nos alunos do Colégio dos Inglesinhos , sito em Lisboa, aqui com a sotaina substituída pela batina talar romana, mas mantendo a chamarra e a estola peitoral lançada em V.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Imagens do ser e do querer parecer


Os estudantes da UC com o pequeno uniforme segundo recolha da casa Palhares nos alvores da década de 1870. Quando Bernardino Machado se matricula pela primeira vez em 1866 a batina tinha costas de casaca e carcela dianteira de botõezinhos desde o colarinho à bainha inferior. Poucos anos decorridos, quando Bernardino Machado concluiu a formatura (1873), os acabamentos dianteiros eram idênticos ao do sobretudo civil ou da gabardine com a gola de orelhinhas aposta em torno do colarinho.
Em conversa sobre estes assuntos, uma vez houve em que o Dr. António José Soares fez questão de me alertar para a enorme quantidade de fotografias de estudantes em meio busto. Na interpretação daquele reputado estudioso a hiperbolização da pose em meio busto não decorreria apenas das imposições/limitações da fotografia destinada a álbuns de curso (carte-visite). Os fotografados sabiam muito bem que neste tipo de fotografias solenes o protocolo recomendava sapatos de fivela de prata e calções, pelo que na falta destas peças optava-se quase invariavelmente pela representação de meio busto.


A austera casaca, espelho de virtudes: casaca militar norte-americana característica do período da Guerra Civil. Na UC os estudantes adeptos da laicização do ensino criticam asperamente o antigo traje institucional e apropriam-se da indumentária burguesa que consideram símbolo de virtude cívica e cultural. Ao longo do século XIX a imagem mental da ordem militar e os uniformes militares marcam presença duradoura no imaginário romântico estudantil. No seu plano de reforma dos uniformes, o exército português apontou para a instauração de formas crescentemente geometrizadas, depuradas e estandardizadas, tendência reforçada pela reformação dos uniformes decretada em 1856. É esta reforma de 1856 que introduz o casaco ou túnica de modelo próximo ao patenteado na fotografia, medida bem conhecida dos estudantes da UC, instituição que desde 1839 tinha considerado o uniforme militar equiparado ao hábito talar.
É certo que a casaca dos estudantes não comportava vivos, bordados ou galões, e abotoava da base do colarinho à bainha inferior (a militar só abotoava até ao baixo ventre), mas a filosofia subjacente era a mesma. O sistema cultura burguês era monocultural e nessa qualidade estigmatizava tudo quanto não correspondessem aos seus padrões estéticos e éticos.


O jovem Eça de Queirós: Eça frequentou a Faculdade de Direito da UC entre 1861 e 1866. À semelhança de outros literatos da sua geração que puderam dedicar-se aos estudos e às leituras ociosas em contexto de pacificação trazido pela regeneração, Eça deixou da UC uma imagem muito negativa que deve ser lida com alguma cautela e distanciamento. Apesar de ter trabalhado no Teatro Académico como actor amador, Eça não era propriamento um estudante activamente empenhado nas causas escolares nem um boémio, pelo que a capa esburacada aqui desenhada melhor caberia a um Antero de Quental ou a um Mata-Carochas. A cor da pasta também não está certa pois a Faculdade de Cânones achava-se extinta desde 1836.
Quando em 1888 David Corazzi lançou em Lisboa o Álbum de Costumes Portugueses o estado da etnografia em Portugal ainda não permitia traçar uma distinção suficientemente clara entre uniformes e trajes populares. O editor, cujo conselheiro cultural não se sabe quem tenha sido, optou por uma obra mista que tanto englobou trajes rurais e provinciais como fardas e uniformes.
Coube a José Ramalho Ortigão escrever o texto de acompanhamento da litografia, que infelizmente não está assinada. Ramalho aproveitou uma fotografia juvenil do seu amigo Eça de Queirós e a partir dela, conjuntamente com o aguarelista, intentou recriar o hábito talar estudantil conforme figurino anterior às reformas de 1863 em contexto diário. Daí os sapatos pretos de atilhos e a capa desmazelada que era ponto de honra aos olhos da veterania encartada de Coimbra e das universidades espanholas.
Contrariando a corrente burguesa já então dominante no meio académico conimbricense, Ramalho Ortigão não se mostrou nada convencido com o pequeno uniforme à base de casaca burguesa e calça comprida, opinião que domina todo o artigo de complemento à litografia.

Uma das raras fotografias conhecidas da capa e batina antes das transformações operadas em 1863: o estudante de Direito, poeta e executante de viola toeira João de Deus (de bigode, com gorro) e o seu condiscípulo José de Sousa Vilhena em 1855. Confirmando os relatos de época, a capa exibe talhe singelo, vendo-se em Vilhena a bainha da batina e uma parte das meias altas.


À medida que cresce o século XIX, os estudantes da UC degladiam-se na luta entre uma dimensão mais conservantista da instituição e um irreprimível fascínio pela laicização, cientificação e aburguesamento da sua escola. Para os alunos da geração de 1860, os primeiros a inscrever no imaginário uma imagem da instituição como "madrasta" irreformável, a UC faça o que fizer nunca está alinhada com a visão idealizada que dela se vai construindo.
O desconforto crescente criticava tudo ou não reflictia o estilo de vida burguês, o que na prática implicava capturar e ostracizar tudo quanto pudesse lembrar o imaginário aristocrático, clerical e barroco.
Um dos objectos de prestígio usado por docentes e estudantes do último ano de curso desde o século XVI era a pasta forrada de tecido para transporte e resguardo de documentos/papéis e a capa de cetim, seda ou damasco confeccionada para protecção de livros e cadernos de notas. As pastas e capas podiam ser manualmente pintadas ou bordadas, ostentando as mais luxuosas embutidos em metais preciosos e trabalhos de passamanaria em fio laminado. Nas capas havia sempre um fitilho comprido que servia para marcar as páginas que se estavam a ler ou as folhas de escrita. Nas pastas cosiam-se uns oito fitilhos que eram rematados por nós e laçarotes.
Foram estas pastas que estiveram na origem das pastas de luxo dos quintanistas, um dos poucos objecto de prestígio e ostentação que a cultura estudantil oitocentista valorizou.
Na foto: capa de caderno de notas de inícios do século XIX


Estudante formado pela Universidade de Oxford, finais do século XIX: um exemplo do hábito talar de festa (convocation dress), ou loba de dois corpos sobrepostos, com a sotaina de abotoadura em trespasse (igual à usada em Portugal pelos juizes), o cinto de cetim, o colarinho branco raso e a sobreveste. Estamos perante indumentárias profissionais ou institucionais cuja leitura segue caminhos distintos na mesma época: na Grã-Bretanha, nos seminários católicos de Roma e nos tribunais portugueses a veste de dois corpos mantém o seu prestígio intacto; na UC a veste talar de dois corpos é anatematizada e extinta. Pormenor a não perder de vista, grande parte dos detractores do hábito talar académico histórico eram alunos de Direito que uma vez concluído o curso ingressavam na carreira diplomática, na carreira política ou na carreira judicial, não se lhes conhecendo qualquer posição de animosidade contra os trajes profissionais que passavam a envergar enquanto adultos.
(imagem do acervo do Museo Internacional del Estudiante)