quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Por uma carta do património insigniário e vestimentário

O trabalho de campo ralizado entre 1989-2009 revelou um património disperso, desconhecido ou mal conhecido, sobretudo não estudado nem pedagogicamente explicado, detentor de enormes potencialidades nos campos do simbólico e do artístico, com possibilidades de dinamização de projectos em rede[1].
Ao levantamento iconográfico efectuado juntam-se testemunhos insigniários dispersos pelo Museu Académico de Coimbra[2], Arquivo da Universidade de Coimbra[3], Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra[4], Museu Abade do Baçal[5], Museu Bernardino Machado e templos religiosos[6].
A elaboração de um projecto de protecção e salvaguarda da borla e capelo preenche a maior parte dos requisitos tipificados nas alíneas do artigo 17.º da Lei do Património Cultural Português (Lei n.º 107/01, de 8 de Setembro), e enquadra-se sem dificuldade em algumas das exigências constantes da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial aprovada pela UNESCO em 17.10.2003 e entrada em vigor a 20.04.2006[7].
Com efeito, o património artístico referido ao longo deste projecto ilustra os seguintes domínios:

-tradições orais locais com forte radicação em saberes transmitidos de geração em geração e vestígios expressivos na gíria académica;
-manifestações enquadráveis nas artes do espectáculo, nomeadamente a associação morfologia/cor/som/movimento que decorriam da capacidade de ocupação dos espaços urbanos históricos;
-práticas sócio-profissionais directamente imbricadas a rituais e cerimónias de passagem, investidura e publicidade de feitos académicos e científicos;
-saberes tradicionais e oficinais com capacidade de articulação e rentabilização dos contributos de bordadeiras, marceneiros, alfaiates e sapateiros[8];
-veículo privilegiado de afirmação pública da identidade profissional dos membros do corpo docente da UC e da própria Alma Mater, funcionando como ex-libris da identidade visual da instituição.

Por circular de 23.04.2007 o Ministère du Budget, des Comptes Publics et de la Fonction Publique de França determinou a criação de uma Agence du Patrimoine Immatériel com os objectivos de optimizar o impacto da gestão do património imaterial do Estado na economia, tirar partido da valorização de bens “inertes” e a partir da sua rentabilização modernizar a imagem dos serviços públicos, e prevenir o Estado e os potenciais utilizadores contra actos de perda do património[9]. Tentando aproveitar o que esta iniciativo tem de positivo, desde que se tomem medidas para garantir que o património tradicional não fica sujeito ao saque do capitalismo de massas, tudo indica que a técnica tradicional de confecção, morfologia estética e cerimonial associado ao património insigniário e vestimentário conimbricense podem ser alvo de projectos de reinvestimento local (ateliês especializados, formação de bordadeiras, turismo, dinamização de espaços históricos, qualidade de vida)[10] e de abertura à comunidade e aos cidadãos.
Um dos maiores desafios dum projecto desta natureza passaria pela elaboração de uma carta dos sítios/instituições onde foram preservados testemunhos do património insigniário e vestimentário da Alma Mater Conimbrigensis e respectiva articulação em rede virtual onde pudessem depositar informação e partilhar projectos os membros do Grupo de Coimbra e do Grupo de Coimbra das Universidades Brasileiras, o Museu Académico de Coimbra, o Museu Bernardino Machado, templos detentores de bens referidos ao longo deste trabalho e instituições onde foram assinaldas obras de arte e iconografia. Devem ficar garantidos desde o primeiro momento a elaboração de estudos especializados, a dinamização de oficinas de transmissão de conhecimentos, a produção de trabalhos monográficos, a edição de roteiros iconográficos, a reconstituição exaustiva de indumentária e insígnias, exposições materiais e virtuais e prestação de serviços educativos[11] e de fruição, e o apetrechameno do Museu Académico de Coimbra com exemplares de trajes e insígnias. A reprodução das peças do hábito talar caídas no esquecimento e o seu uso em momentos de visitas de estudo poderá constituir um dos momentos interactivos mais conseguidos.
E mesmo que nada se faça (coisa que não me surpreenderia na idade em que estou e tendo já visto o que vi), o Museu Bernardino Machado não deve acanhar-se de assumir um projecto global de restauro das insígnias doutorais, reconstituição de exemplar completo do hábito talar docente e concepção de serviços culturais e educativos correlacionados. Bernardino Machado era um gentlman e a sua memória bem merece tal cuidado.
ANOTAÇÕES
[1] A propósito do disposto no Título IV dos Estatutos de 1989, importaria superar as disposições que ficaram em letra morta como a elaboração do regulamento das cerimónias, trajes e insígnias e as indecisões quanto às insígnias reitorais, definição de trajes e insígnias para detentores de novos cargos e a questão da retoma do cerimonial específico dos graus de licenciado (formatura) e mestrado. A não criação de um conselho cultural pode empurrar a questão da identidade visual e do manual de normas gráficas para meros projectos de decalque da identidade visual das management schools e business schools. No pior dos cenários, o resultado seria uma colagem aos fascinantes efeitos especiais usados pela indústria cinematográfica e pelos serviços de protocolo das forças políticas instaladas no poder, com o cerimonial histórico substituído pela organização de eventos (protocolo).
[2] A borla vermelha do Doutor António Lopes Guimarães Pedrosa (1850-1933), de alcunha O Petiz, danificada em 17.10.1910 pela Falange Demagógica. Pontapeada desde o vestiário dos lentes e pátio da UC, seria recolhida do lado de fora da Porta Férrea e anos mais tarde oferecida ao Museu Académico. Seria o barrete usado por Guimarães Pedrosa desde o seu doutoramento realizado em 1879.
[3] Em 1955 a viúva do Doutor José Cipriano Rodrigues Dinis (1876-1954) ofertou ao AUC as insígnias doutorais de Farmácia do seu marido. Exemplar de grande importância, testemunhando a cor adoptada pela UC após a elevação da Escola de Farmácia a Faculdade, foi usada pelo seu proprietário em cerimónia colectiva honoris causa realizada em 22.03.1921.
[4] Insígnias doutorais em azul claro e branco, de Matemática, que pertenceram ao Doutor Manuel Marques Esparteiro (1893-1985).
[5] Numa visita efectuada a este museu nas férias da Páscoa de 1986 vimos uma borla branca de Teologia exposta numa vitrine.
[6] Caso da imagem de São Ivo, na Igreja do Carmo, Coimbra, que ostenta borla e capelo da antiga Faculdade de Cânones.
[7] Informações apud Pourquoi une convention?, http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?, pp. 00004 a 00007.
[8] Qu’est-ce que le patrimoine culturel immatériel?, http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?pg=00002.
[9] Sobre a APIE, vide http://www.minefi/gouv.fr/directions_services/apie7index.htm; http://fr.wikipedia.org/wiki/Agence_du_patrimoine_immat%C3A9riel_de_l%E2%80%99C3%89tal; Maurice Lévy et Jean-Pierre Jouyet, L’Économie de l’immarériel, Paris, 2006, disponível no endereço http://www.minef.fr/directions_services/sircom/technologies_info/immateriel/immateriel.pdf.
[10] Sigam-se os exemplos patenteados pelo European Institute of Cultural Routes (património gastronómico no Pays du Roquefort), http://kiem.culture-routes.lu/php/fo_index.php?view=full&Ing=en&back=%252Fphp; Jacinthe Bessière, Valorisation du patrimoine gastronomique et dynamiques de développement territorial. Le haut plateau de l’Aubrac, de pays de Roquefort et le Périgord Noir, http://ruralia.revues.org/document154.html; Arts du spectacle (comme musique, la danse et le théâtre traditionnels), http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?pg=00054; Pratiques sociales, rituels et évenements festifs, http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?=00055; Savoir-faire liés à l’artisanat traditionnel, http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?pg=00057.
[11] Sobre o papel dos serviços educativos nos museus e a acção dos agentes especializados, leia-se Teresa Duarte Martinho, Apresentar a arte. Estudo sobre monitores de visitas a exposições, Lisboa, Observatório das Actividades Culturais, 2007 (colecção Documentos de Trabalho 9).

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