domingo, 20 de setembro de 2009

Património vestimentário... (cont.)
Desmantelamento identitário

Os propósitos de laicização, estatização e uniformização das três universidades oficialmente reconhecidas pelo governo da República em 1911 alimentaram um continuado mal-estar entre as forças mais conservantistas da UC que assumiam a preservação do património identitário herdado e o ideário republicano. Encurralada entre acusações de monarquismo, clericalismo, mandarinato do corpo docente e falta de capacidade para protagonizar um projecto industrial e tecnológico semelhante ao patenteado pela Escola Politécnica de Lisboa, a UC viveu anos difíceis. Se não era honroso assumir e exteriorizar as marcas da identidade cultural multisseclar, a UC deveria passar a ser exactamente que tipo de instituição? Apesar de o Decreto de 5 de Maio de 1835 ter extinguido a Fazenda da UC, transformando o Studium Generale numa universidade estatal, a instituição comportara-se ao longo do liberalismo constitucional como uma universidade autónoma. E volta a fazê-lo no após 1910, utilizando a sua herança cultural para afirmar que já existia antes da estruturação do estado.

Entre Outubro de 1910 e Junho de 1911 a ira republicana e anarquista abateu-se sobre a Alma Mater Conimbrigensis, associada aos processos de descristianização e dessacralização . Implantada a República a 5 de Outubro, a UC encontrava-se em período de actos (exames), aguardando-se mais uma cerimónia solene de reabertura das aulas.
No dia 7 de manhã tomou posse como governador civil de Coimbra Francisco José Fernandes Costa e a bandeira do partido republicano foi içada no alto da Torre da UC . Os negócios da instrução pública corriam pelo Ministério do Interior do Governo Provisório, pasta assumida por António José de Almeida, titular que em 14 de Outubro designou João Duarte de Menezes Director da Instrução Secundária e Superior, cabendo a João de Barros a Direcção da Instrucção Primária.
A intervenção do governo provisório não se fez esperar. O Decreto de 13.10.1910 demite o reitor monárquico Alexandre Pais do Amaral e nomeia interinamente para o sólio reitoral o Decano e Director da Faculdade de Philosophia Natural António dos Santos Viegas. Na mesma data, outro decreto extingue os feriados religiosos e institui feriados cívicos substitutivos, disposição que interferia directamente com o calendário religioso-académico. A 17.10.1910 o Pátio das Escolas, a Sala dos Capelos, a Secretaria-Geral, o Vestiário dos Lentes e as salas de aulas dos Gerais foram invadidos e vandalizados por um grupo de estudantes radicais e anarquistas intitulado Falange Demagógica .
A falange deixou um rasto de destruição no Paço das Escolas, com tiros desferidos nos retratos régios da Sala dos Actos Grandes, as cátedras partidas à machadada, as insígnias doutorais de Direito e Teologia rasgadas e pontapeadas, uma bomba artesanal rebentada numa das retretes dos Gerais e tentativas para localizar e linchar o lente e ex-ministro da Justiça de João Franco António José Teixeira de Abreu (1865-1930) e sanear José Maria Joaquim Tavares (1873-1938), Rui Enes Ulrich (1883-1966), António de Assis Teixeira Magalhães (1850-1914) e José Gabriel Pinto Coelho (1886-1978) .
Com a UC e a cidade em pânico, e havendo perigo de incêndio do Paço das Escolas e de linchamamento de lentes suspeitos de monarquismo, o Ministro do Interior António José de Almeida e o novo reitor Manuel de Arriaga chegaram a Coimbra no dia 19 de Outubro.
Arriaga foi empossado na Sala dos Actos Grandes pelo Decano, em cerimónia civil, e aproveitou o disposto no artigo 1.º do Decreto de 18.10.1910, da lavra do Ministro da Justiça e dos Cultos Afonso Costa, que declarava abolido o juramento religioso nas repartições públicas. O Vice-Reitor Sidónio Pais ordenou ao sineiro que deixasse de tanger o sino das aulas, conhecido na gíria académica por “cabra”.
A 8.10.1910 fora publicado um decreto que introduzia profundas alterações nos formalismos associados à produção documental. A invocação “In nomine Dei, Amen”, desaparecia, bem como a frase de abertura dos autos e termos “Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Nos requerimentos e petições instituía-se o “Excelentíssimo Senhor”, que no caso da UC passou erradamente a sobrepor-se aos tratamentos protocolares “Magnificientíssimo Reitor” e “Senhor Reitor”, devendo os documentos terminar com a expressão “Saúde e Fraternidade”.
A 22.10.1910 o Ministro José Relvas sancionou um decreto onde se estipulava que as estampilhas fiscais com as esfinges régias passavam a receber uma sobrecarga a vermelho com os dizeres “República” enquanto não ficassem prontos os novos selos. Seguiram-se os decretos de 23 de Outubro que desmantelavam o sistema religioso, disciplinar e parte da identidade visual e simbólica da UC. O quarto desses diplomas era marcado pelo demagogismo propagandístico, determinando a abolição do “foro académico”, que na realidade não existia, e o encerramento da cadeia académica (efectivamente encerrada em 19.10.1910):

-Decreto n.º 1 de 23.10.1910, abole os juramentos religiosos católicos dos lentes, estudantes, reitor e funcionários, e o juramento do dogma da Imaculada Conceição;
-Decreto n.º 2 de 23.10.1910, anula as matrículas no 1.º ano da Faculdade de Teologia, medida que deixava antever o encerramento da escola;
-Decreto n.º 3 de 23.10.1910, suprime a presença obrigatória às aulas e os antigos formalismos da chamada em voz alta pelo bedel e da marcação de falta ;
-Decreto n.º 4 de 23.10.1910, declara facultativa a capa e batina dos alunos da UC e abole o regulamento disciplinar de 1839.

Por Despacho de 29.10.1910, António José de Almeida declarara abolido o porte quotidiano do hábito talar docente, e a 1 de Novembro suprimia-se o cerimonial inerente à colação do grau de bacharel. Seguiu-se o Decreto de 14.11.1910 que extinguiu a cadeira de Direito Eclesiástico ministrada na Faculdade de Direito. No início do ano seguinte, o Decreto de 21.01.1911 suprimiu o culto religioso na Capela da UC e nela mandou instalar um museu de arte sacra. Por Decreto de 23.01.1911 procedia-se à supressão do exame de licenciatura e e substituía-se o acto de conclusões magnas pelo exame de estado. A obtenção do grau de doutor passava a depender da entrega e arguição de uma dissertação impressa perante um júri administrativo, podendo o acto decorrer em traje civil. Algumas destas medidas do governo central foram antecedidas por propostas da lavra do Vice-Reitor Sidónio Pais, nomeadamente o porte facultativo de trajes e insígnias para discentes e docentes, a supressão do cerimonial de colação dos graus e a reforma das antigas cartas de curso , agora substituídas por certidões autenticadas com o selo branco da secretaria.
As medidas enunciadas foram secundadas por saneamentos encapotados no seio do corpo docente. O anterior selo da UC, reformado em 1901 por António Augusto Gonçalves em estilo neomanuelino seria alvo de atitudes iconoclastas . A face anterior do estojo de prata do selo pendente em uso nos diplomas solenes foi mandada reformar, com amputação da coroa que desde os alvores do século encimava o brasão de D. Manuel I. A legenda latina, extraída do versículo 15 do Livro dos Provérbios de Salomão, “Per me reges regnant et legum conditiores iusta decernunt”, sofreu hostilização. Propunha-se a adopção de uma extensa legenda laica, que não vingou, com os dizeres do credo positivista “A Ciência leva a toda a parte a Verdade e, com esta, a Liberdade, o Progresso e a Paz dos Povos”, situação que levou a Casa Reitoral a trocar o selo com a Sapiência entronizada por uma variante neogótica de 1897 em que a alegoria surge em pose erecta e legenda simples (Insígnia Universitatis Conimbrigensis). As implicações foram extensivas à coroa da Sapiência e à cruz que rematava o ceptro manuelino .
O autor dos referidos desenhos, António Augusto Gonçalves (1848-1932), docente da Faculdade de Philosophia Natural, abriria em 1913 o Museu Nacional Machado de Castro com os acervos do Museu de Arte Sacra da Sé de Coimbra (criado em 1884) e parte do património museológico da UC, decisão que o ciclo político sonegou à discussão. Lembremos as origens deste acervo. Com a reforma dos estatutos da Academia Dramática de Coimbra, os institutos dramático, de música e de pintura originaram apenas um instituto que em Março de 1851 se autonomizou com a designação de O Instituto [de Coimbra]. Constituído por lentes e estudantes, o Instituto de Coimbra passou a ter sede no Bairro Latino, no Colégio de São Paulo-o-Eremita, e em Abril de 1852 deu à estampa o primeiro número de uma das mais duradouras e prestigidas revistas de estudos literários, científicos, históricos e arqueológicos editados em Portugal, “ O Instituto”.
Com características de academia de artes e ciências, o Instituto de Coimbra criou em 1874 uma Secção de Arqueologia e respectivo museu anexo, passando a reunir no piso térreo estatuária da UC, baixos relevos, telas oriundas dos colégios extintos em 1834, lápides e moedas romanas da antiga Aeminum, diplomas e diversos materiais doados. O prestígio destas colecções era reforçado por visitas de estudiosos e referências no Catálogo de 1873-1877 e no Primeiro Suplemento de 1877-1883 . Em 26.04.1883 as colecções numismáticas, epigráficas, escultóricas e pictóricas do Instituto de Coimbra foram inauguradas com a designação de Museu de Antiguidades do Instituto de Coimbra, de que havia passado a ser conservador António Augusto Gonçalves.
O ambiente de hostilidade e de diabolização que rodeava a UC nunca permitiu reconhecer o pioneirismo local do Instituto de Coimbra, que era um prestigiado organismo da UC, nem o contributo que prestou ao projecto do Museu Nacional Machado de Castro. No dizer dos estudantes, os sócios do Instituto de Coimbra reuniam-se para “jogar voltarete”, visão que fez época na opinião pública.

Como se pode constatar, uma percentagem bastante expressiva dos vociferantes com capacidade de intervenção na produção legislativa era enformada por antigos estudantes da UC. Bom conhecedor do ideário biológico-positivista que lia as instituições como corpos arruinados pelo atavismo de miasmas, quistos e sintomas degenerescentes, António José de Almeida aplica à UC o tratamento esperado pelas elites reformistas. Amputam-se os órgãos considerados gangrenados, procede-se à ablação dos quistos e espera-se que o tratamento produza rapidamente efeitos de confirmação da regeneração e do progresso.
Considerada instituição em estádio teológico por excelência e acusada de intoxicar os jovens estudantes, importaria confirmar a previsão comtiana e numa aceleração do tempo da história precipitar a irrupção do estádio positivo, cujos sintomas de materialização seriam o cientismo e a tecnologia . Embora existissem grupos radicais de pressão no interior do republicanismo que reclamavam a extinção da UC, António José de Almeida defendia que a instituição deveria ser sujeita a uma terapia de cura apta a neutralizar-lhe as patologias.
À maior parte das críticas esgrimidas subjazem três traços vertebradores:

-o cerimonial académico exibiria alguns pontos de sintonia com o cerimonial católico e o cerimonial monárquico. Ao contrário do que foi dito e escrito, não se confundia nem diluía neles, assentando numa identidade multissecular própria - o cerimonial académico universitário -, próximo de soluções que estando em processo de desaparecimento na Europa Continental manifestavam grande pujança nas universidades britânicas. Em momento algum se reconheceu ao cerimonial académico conimbricense o valor que efectivamente tinha em termos de coesão institucional, reforço da identidade, dinamização cultural e emotiva dos cenários urbanos, encantamento do quotidiano, reforço do prestígio internacional, capacidade para afirmar a diferença da UC bem como o fascínio que exercia sobre outras escolas portuguesas e brasileiras;
-afirmava-se haver uma relação determinística de causa-efeito entre o património cultural e simbólico e a produção científica e o discurso pedagógico. Esta relação nunca chegou a ser satisfatoriamente demonstrada. A análise das lições, sebentas, visitas científicas, recepção de obras oferecidas, citação de autores estrangeiros e recheio das bibliotecas das Faculdades existentes revela não propriamente um atraso científico e cultural mas antes a persistência de uma pedagogia assente na lição magistral, atitude que irritava os estudantes e originava inflamados manifestos. O sentimento de frustração de alguns estudantes era comungado por muitos docentes que periodicamente reclamavam ao governo central reformas que não chegavam a ser apreciadas ou eram adiadas. A maior parte das críticas centrava-se nas rotinas das aulas magistrais da Faculdade de Direito, escola maior que não representava Medicina, Matemática, Ciências, Teologia ou Farmácia;
-insistia-se na ausência de uma missão tecnológica vincada na UC, quando a instituição não fora redefinida ao longo de oitocentos como instituto politécnico e a cidade de Coimbra não se tinha afirmado como urbe industrial. A este propósito, não deixa de ser estranho e até paradoxal que o fascínio das elites portuguesas pela industrialização e seus derivados, as tecnologias e as maquinarias, tenha ocultado no debate perversões já então bem conhecidas como a poluição das cidades britânicas, as doenças respiratórias e as malformações ósseas, a exploração do trabalho infantil e feminino ou as mazelas do proletariado .

Ângelo Rodrigues da Fonseca (1872-1942) , docente da Faculdade de Medicina da UC, nomeado Director-Geral da Instrução Secundária, Superior e Especial, por Decreto de 23.01.1911, preparou a reforma da UC e das novas universidades a estabelecer em Lisboa e no Porto. Entre Fevereiro e Maio de 1911 o Ministério do Interior publicou o essencial das reformas do ensino superior, seguindo-se em Agosto os respectivos regulamentos internos. Em todos estes diplomas o clássico “lente” que lia a lição teórica é extirpado e substituído pelo “professor”.
A intensa produtividade do Ministério do Interior seria de alguma forma secundada pelo Ministério do Fomento sob tutela de Brito Camacho. Coube a este ministro reorganizar as bases do ensino superior politécnico nas áreas de engenharia, comércio, indústria, agronomia e veterinária.
Traduzindo os ensinamentos da lição iluminista e burguesa, as instituições universitárias semelhantes são tratadas em plano de igualdade, assim acontecendo com as faculdades de Medicina, as de Letras e as de Ciências. O laicismo é levado ao extremo no governo e gestão das faculdades. A obtenção dos graus académicos é associada à aprovação administrativa na última cadeira de curso ou à defesa de uma tese impressa. No caso dos doutoramentos, a legislação consagra a expressão “doutor ipso facto” que alongados remoques suscitaria em Coimbra. A carta doutoral é referida mas com formalidades minimalistas. A Faculdade de Direito de Coimbra, que continua a ter o monopólio do ensino em Portugal até 1913, é alvo de uma longa peroração pedagógica e científica, esperando o governo provisório republicano a completa “regeneração” desta escola. As Bases da Nova Constituição Universitária de 19.04.1911 assumem-se como uma diploma orgânico centralizado e vigilante, afirmando sem ambiguidades a primazia do poder central e sua última palavra no que respeitava ao funcionamento interno e derimição de crispações nas três universidades.
Tentava-se forçar a abertura das instituições universitárias à comunidade, através da participação dos estudantes, governo civil, câmara municipal e protectores ou notáveis locais, todos com assento no Senado , num país onde o entendimento corporativo das instituições lia a participação de elementos exógenos como intoleráveis intromissões. Propunha-se que em cada circunscrição universitária, os municípios e as instituições contribuíssem activamente para o desenvolvimento da respectiva universidade. No caso específico de Coimbra, o apelo era feito aos municípios e instituições compreendidas nos distritos de Coimbra, Leiria, Castelo Branco, Aveiro, Viseu e Guarda , o qual ficaria em letra morta.
Privada da sua identidade simbólica, a UC é convertida numa repartição ministerial sem autonomia financeira ou administrativa. Competências multissecularmente atribuídas ao cancelário-reitor aparecem diluídas nas figuras dos directores das faculdades. O paradigma mediterrâneo da “inceptio”, que atribuía aos papas, bispos e reitores a “criatio”, aparece agora substituído pelo modelo francês escorado na “disputatio”.
Embora reclamasse a laicização, a UC não estava culturalmente preparada para assumir que os seus doutores fossem apenas fruto de proclamação administrativa de um júri. Em 1916, a legislação que abre as portas aos doutoramentos honoris causa volta a insistir na atribuição da legitimidade institucional aos directores das faculdades, situação que uma vez mais colidia com os poderes tradicionalmente reservados aos cancelários-reitores. Definitivamente, os ministros da instrução pública não estavam interessados em compreender a UC, nem em dar um sinal de aprovação em relação ao que quer que fosse do legado patrimonial da instituição.
A tentativa de imposição de reitor da confiança governamental percorre o regime . Desarticulada a Casa Reitoral, cuja equipa não elabora nem cumpre programas culturais-simbólicos anuais, ao contrário da tradição plurissecular, o reitor transforma-se num delegado nomeado pelo poder central que em actos triviais de gestão corrente da instituição consulta a opinião do titular da pasta por ofício e telegrama. A função de representação é cometida ao Senado, órgão que no caso de Coimbra não consegue suprir o vazio deixado pelo dessoramento da Casa Reitoral. A situação agrava-se com o Estatuto contido na Lei n.º 861, de 27 de Agosto de 1918. Se entre 1911 e 1918 se utilizou a fórmula dos estatutos manuelinos que consistia em a UC eleger três nomes de docentes que depois eram propostos ao titular da pasta, entre 1918 e 1926 as universidades perdem o direito de escrutinar os nomes dos eventuais candidatos.
A universidade entendida como uma instituição laica apta a formar novos cidadãos saudáveis física e psicologicamente é afirmada, sobretudo nos diplomas que regulamentavam as escolas menores de Farmácia, de Educação Física (as últimas nunca chegariam a funcionar) e Normais Superiores.

A preocupação efectiva com a situação económica dos estudantes originou o Decreto de 22.03.1911 que pela primeira vez tentava superar o ciclo da caridade e o âmbito restrito das sociedades académico-filantrópicas e instituir um serviço público de bolsas de estudo. Excluindo a cerimónia de abertura do ano escolar, expressamente referida na nova lei de bases do ensino universitário, todos os diplomas eram omissos em matéria de identidade visual e simbólica, sinal eloquente de que o património identitário acumulado pela UC era considerado inimigo da formação do novo perfil do jovem “normal”. Subjacente ao processo de erradicação do cerimonial estava um preconceito moral semelhante ao praticado por seitas radicais, assente na frugalidde e no despojamento. A nível do governo central houve mesmo lugar a uma espécie de ritual inaugural em que Teófilo Braga, na qualidade de presidente do governo provisório, se deixou fotografar em casaca, guarda-chuva e chapéu de coco, no percurso entre a sua casa e o local de trabalho, sem segurança, sem viatura de serviço, sem aparato algum, usando o eléctrico como os demais cidadãos. As fotografias de Joshua Benoliel foram divulgadas na Illustração Portuguesa n.º 244, de 24.10.1910, e no L’Illustration n.º 3530, de 22.10.1910, suscitando nas elites liberais e nos meios diplomáticos a reaccção inversa da desejada. Não era possível acreditar na Europa dita civilizada de 1910 um regime cujo presidente se dava a ver publicamente nos antípodas das imagens de acreditação do poder.
Vejamos mais de perto a legislação produzida:


Entidade Produtora/ Instituição Regulamentada/ Natureza do diploma/ Identidade Visual/ Património Simbólico e Emocional:

M. Interior/D. de 22.02.1911/Fac. Medicina UL, UC, UP/ Estrutura orgânica/ Omisso/ Omisso
M. Interior/D. de 18.04.1911/ Fac. Direito UC/ Reforma jurídica/ Omisso/ Omisso
M. Interior/D. de 19.04.1911/ Estatuto Universitário da UC, UL e UP/ Estrutura orgânica, missão e competências/ Omisso/ Refere a “sessão inaugural”/ Diploma de aluno Premiado/Diploma de Estado
M. Interior/D. de 27.04.1911/ Hospitais da UC/ Estrutura orgânica/ Omisso/ Omisso
M. Fomento/D. de 1.05.1911/ Escola de Medicina Veterinária/ Estrutura orgânica/ Omisso/ Omisso
M. Interior/D. de 9.05.1911/ Faculdades de Letras da UC e UL/ Estrutura orgânica/ Omisso/ Omisso
M. Interior/D. de 12.05.1911/ Faculdades de Ciências da UC, UL e UP/ Estrutura orgânica/ Omisso/ Omisso
M. Interior/D. 21.05.1011/ Escolas Normais Superiores da UC e UL/ Estrutura orgânica/ Omisso/ Omisso
M. Interior/D. 22.05.1911/ Escola da Arte de Representar/ Estrutura orgânica/ Prémios e diplomas/ Omisso
M. Fomento/D. 23.05.1911/ Instituto Superior Técnico e Instituto Superior do Comércio/ Estrutura orgânica/ Omisso/ Omisso
M. Interior/Decretos de 26.05.1911/ Escolas de Farmácia da UC, UL e UP e Escolas de Educação Física da UC e da UL/ Estrutura orgânica/ Omisso/ Omisso
M. Interior/D. 26.05.1911/ Escolas de Belas Artes de Lisboa e Porto/ Estrutura orgânica/ Omisso/ Omisso
M. Interior/D. 19.08.1911/ Secretarias-Gerais da UC, UL e UP/ Regulamento/ Omisso/ Omisso
M. Interior/D. 19.08.1911/ Faculdades de Letras da UC e UL /Regulamento/ Omisso/ Omisso
M. Fomento/D. 19.08.1911/ Instituto Superior de Agronomia Regulamento/ Omisso/ Omisso
M. Interior/D. 21.08.1911/ Faculdade de Direito da UC/ Regulamento/ Omisso/ Omisso
M. Interior/D. 22.08.1911/ Faculdades de Ciências da UL, UC e UP/ Regulamento/ Omisso/ Omisso
M. Fomento/D. 22.08.1911/ Escola de Medicina Veterinária/ Regulamento/ Omisso/ Omisso
M. Fomento/Decreto de 14.07.1911, DG nº 209, de 7.09.1911/ Instituto Superior Técnico/ Regulamento/ Omisso/ Omisso .


A crença nas infinitas potencialidades da razão enquanto discurso omnisciente que viria libertar os seres humanos dos grilhões da inteligiência emocional não deu os resultados esperados em territórios ainda profundamente marcados por identidades visuais e emocionais fortes como eram os casos de Coimbra e do Porto.
Os reformistas republicanos mais activos partiam da premissa que os universitários atingiriam um estádio de conhecimento que se bastaria a si próprio, libertando o ser humano da necessidade de rituais, charivaris, vestes cerimoniais, heráldica e função simbolizadora . No limite, aceitava-se ser possível suprimir os símbolos existentes e impor outros através de diploma positivado nas páginas do diário oficial.
Este modo de ver as instituições e os seus actores parece contraditar a prática pedagógica e propagandística republicana que demonstrou estar muito atenta à heráldica, à bandeira, ao hino, à moeda padrão, à toponímia e a determinadas festividades centradas no culto de mortos ilustres e heróis como o soldado desconhecido. Num registo comparado, a instituição republicana que mais se aproxima daquilo que o governo esperava da UC é o casamento civil. Confinado a uma austera sala de actos de conservatória que pelo seu extremo despojamento artístico e simbólico pretendia ser uma alternativa credível aos sumptuosos cenários dos tempos católicos, o casamento civil arriscou ser considerado pelos portugueses um falso casamento ou uma mera formalidade imposta pelo Estado.
As atitudes de aniquilamento da identidade patrimonial da UC e o clima de negativização a que o Studium Generale foi sujeito não obtiveram equivalente no universo militar ou paramilitar. No máximo, não houve abolicionismo nem detracção, tendo as coroas régias dos botões das fardas sido substituídas pelas esfinges e frases alusivas à República. Assim aconteceu efectivamente com o Plano de Uniformes da Guarda Republicana (Decreto de 29.10.1910), o Plano dos Uniformes dos oficiais, guarda-marinhas e aspirantes das diversas classes da Armada (Decreto de 19.01.1911), o Regulamento Geral da Academia das Ciências de Portugal (Decreto de 24.01.1911), o Regulamento do desenho e normas para a atribuição da medalha militar (Decreto de 6.02.1911), o Regulamento das Continências e Honras Militares (Decreto de 16.03.1911), o Regulamento das cores e a heráldica da nova bandeira e hino nacional (Decreto de 8.07.1911), o Plano dos Uniformes do Exército (Decreto de 7.08.1911, DG nº 227, de 28.09.1911), e o Plano de Uniformes e pequeno equipamento para praças da Armada (Decreto de 23.09.1911, DG nº 224, de 25.09.1911).
Cansada do papel de bode expiatório, da interiorização de uma imagem negativa de si própria e do reformismo imposto como dickat, no médio e no longo prazo a UC não só retomará o seu cerimonial como parte significativa dos seus alunos e docentes aderirão ao Estado Novo .

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