sexta-feira, 28 de agosto de 2009

III - Património...
(Académicos de toga e académicos de espada)
O boné militar prussiano, que em Portugal ficaria profundamente associado aos maquinistas e fogueiros de comboios, tipógrafos, padeiros urbanos de Lisboa, moços de fretes e aguadeiros galegos , faria fortuna entre os estudantes da Europa Central e do Norte. Adoptado a partir dos corpos de cavalaria prussianos, o boné de pala preta rígida aparece registado em gravuras de 1815, e numa cena da década de 1820 que mostra universitários germânicos a perfurar bonés com espadas. Em 1827, na Universidade de Gottingen, os “clubb” académicos de esgrima traziam aprovados quarenta bonés de cores diferentes, classificados de acordo com as origens geográficas dos matriculados . Uma gravura de 1831 alusiva aos duelos de alunos da Universidade de Tubingen regista bonés de tecido verde, branco e carmesim, sempre com pala escura rígida .
Em 1852, esta cobertura de cabeça é observada em estudantes de Jena, e poucos anos volvidos serviu de motivo de capa a uma brochura dedicada a cantos goliardos estudantis (Allgemeines Deutsches Kommersbuchs, 1858) . Em 1863 os alunos da Universidade de Berlim que festejaram a guerra da independência foram fotografados com o mesmo tipo de boné. Em 1900, o pintor Gemalde von Georg Muhlberg aflorou o duelo estudantil e uma sessão de cantos goliardos alemães (“Auf die Mensur”, “Sabelmensur”, “Cantus”), tendo retratado a presença do boné escolar numa trintena de quadros belle-époque .
Nos dias de grande gala, associados a paradas cívicas, cerimónias académicas e recepção a altos dignitários, os estudantes alemães trocavam o boné de pala e as vestes civis por um uniforme de ostentação com bota de couro alta, calça branca, dólman de alamares peitorais, faixa de ombros e barretina redonda à cadete profusamente agaloada a ouro.
A partir de universidades germânicas como Bona, Gottingen, Heidelberga e Tubingen, o “mutze” rapidamente irradiou para a Suécia, Noruega, Suíça, Áustria, Finlândia, Islândia, Dinamarca e universidades belgas não católicas (“la penne”) .
O “studentmossa” de pala preta e copa branca de tecido começou a ser usado pelos estudantes da Universidade de Uppsala, Suécia, em 1845, na sequência de um encontro de académicos em Copenhaga . Na Noruega, os estudantes do ensino secundário e superior apropriaram-se do boné militar prussiano, baptizando-o de “duskelue” desde os anos de 1856. Neste país, os estudantes dos cursos de engenharia fizeram adicionar ao boné um cordão preto rematado em borla, costume que em 1879 passou para a Universidade Tecnológica de Calmers, em Copenhaga .
Na Finlândia, a Universidade de Helsínquia não ficou imune à voga do boné. Introduzido por volta de 1870, o “teekari” é usado desde então por alunos e alunas dos ensinos secundário e superior. Anualmente, no dia um de Maio, os estudantes da Universidade de Helsínquia organizam festejos académicos à base de cortejo alegórico, concerto musical, libações báquicas e piquenique (“wappu”). Uma versão gigantesca do “teekari” é içada por uma grua e colocada na cabeça da estátua de Havis Amanda. Tal como acontece na Noruega e na Suécia, o boné munido de borla preta é específico dos estudantes de engenharia (“teekarilakki”).
O “studenterhue” é ainda usado pelos estudantes dinamarqueses desde 1856, e pelos da Islândia (“stúdentahúfa”).
Os alunos católicos de Louvaina que combateram em Itália ao lado das forças papais e assistiram à tomada de Roma em 1870, regressaram à sua Alma Mater com o “colbach” dos zuavos húngaros, um barrete redondo, com borla pendente, de origem islâmica (“chechia”, “kufix”), que em 1859 tinha começado a ser usado em academias militares britânicas como barrete de cadete (“pillbox hat”) e entre 1890-1930 haveria de gozar dos favores dos estudantes do Liceu de Évora, liceus do Porto, liceus de Lisboa (“tacho”) e de franjas de alunos da UC (ca. 1880-1910) , não perdendo de vista o seu porte obrigatório no Colégio Militar.
Nas universidades austríacas segue-se a tradição germânica do boné de pala, e do grande uniforme militar à cadete. Nos estabelecimentos de ensino superior da Suíça os bonés de pala e as barretinas à cadete reproduzem a tradição germânico-austríaca. Neste país foram consagrados seis tipologias de coberturas de cabeça. “Le sturmer” de pala preta, com a copa redonda descaída sobre a pala, associado aos alunos tradicionalistas, que também foi usado em França nas escolas de artes e ofícios. “La tellermutze” ou “La stella”, um boné de tecido, de pala preta, variando em cor, com letras bordadas na copa. “Le schlapper”, semelhante ao “tellermutze”, apresentando copa mais baixa e arredondada, com a cruz helvética no centro da copa. A barretina de cadete é uma cobertura de prestígio e tem pelo menos duas variantes. “Le tonneli”, em tecido alaranjado, com letras na copa, é exclusivo de antigos estudantes. “Le cerevis”, igual ao “tonneli” é uma barretina de luxo agaloada a ouro, usada pelos veteranos com farda militar. Caso o portador seja “fuchsmajor”, a barretina pode comportar uma cauda de raposa pendente .
A procura de símbolos estudantis distintivos esteve na origem de uma reunião inter-estudantes belgas em 1877, cujos resultados não passaram de um enunciado de intenções. No ano lectivo de 1894-1895, impelida pelo estudante Edmond Carton de Wiart, surgiu em Louvaina a Société Generale Bruxelloise des Étudiants Catholiques, instituição que desencadeou uma operação de naturalização do “colbach” zuavo, anos mais tarde rebaptizado “La calotte” . Conhecido como o boné dos universitários católicos valões, em 1898 “La calotte” já tinha penetrado nas comunidades estudantis de Liège e de Gand.
Dois acontecimentos distanciados entre si dez anos marcaram a segunda metade do século XIX em termos de invenção de tradições estudantis europeias. Em 1878, uma exuberante formação tunante, conhecida por Estudiantina Española actuou demoradamente em Paris, originando um fenómeno de tunomania que nos anos seguintes alastrou a estabelecimentos de ensino de Portugal e da América Latina, como a Estudiantina Española de Valparaíso (Chile), fotografada com traje à espanhola em 1891.
Em Junho de 1888 múltiplas legações académicas europeias estiveram presentes no 8º Centenário da Universidade de Bolonha. As rivalidades imperialistas e o clima de nacionalismo exaltado, empolados pela Conferência de Berlim e pela partilha de África, geraram nas legações académicas não detentoras de trajes ou de insígnias um sentimento de menoridade cultural. Consequência imediata, a legação académica francesa regressou com um barrete renascentista da região de Bolonha, o qual seria alvo de intensa tradicionalização nos meios estudantis com a designação de “La faluche” (=“la feluca”) . Assim, nas festividades estudantis da Université de Montpellier, realizadas em 1891, os delegados da associação académica fizeram-se fotografar em casaca burguesa, bandeira e “faluche”.
Bolonha, secundada por outras universidades italianas, não ficaria de braços cruzados. Os estudantes ligados à animação de formações goliardas exibiram um chapéu neo-medieval de aba gótica bicuda, à Robin Hood, crismado “La feluca” (“pileo”, “goliardo”). Esta tradição conheceria grande implantação nalgumas das universidades históricas italianas, quase sempre completada por uma capa de fantasia.
Em território peninsular, refira-se a reunião de legações estudantis espanholas e de Coimbra em Madrid, nas comemorações do Tricentenário de Calderón de la Barca. A comitiva conimbricense, formada pelos estudantes Eduardo Abreu, Domingos Ramos e João Marcelino Arroyo, e pelos lentes Bernardino Machado e Gomes Teixeira, seguiu viagem no dia 22.05.1881, tendo participado nos eventos celebrativos e no desfile cívico em traje talar. Por iniciativa dos conimbricenses criou-se em Madrid uma efémera Federação Académica Peninsular, projecto pró-federalista logo acusado de republicanismo nos meandros conservantistas locais. Profusamente aplaudidos, tudo indicia que presença da legação conimbricense ajudou a sedimentar em certas franjas estudantis espanholas uma vontade de trajes e de insígnias.
No ano lectivo de 1888/1889, os estudantes do curso preparatório de Direito e Letras de Zaragoza fizeram-se fotografar em capote escuro e chapéu de coco. Em 1889, alunos de Salamanca foram fotografados com capote de romeira e chapéu de feltro . Conjunto idêntico, assente no binómio capote e cartola, foi usado pelos seminaristas espanhóis de Vich .
Nas universidades históricas da Escócia e da Grã-Bretanha mantinham-se as antigas “gowns” talares, os capelos (“hoods”) e os barretes de copa quadrangular (“mortarbord”, “academic square”). A imposição dos graus de bacharel, licenciado e doutor de joelhos ante o reitor, e a obrigatoriedade do porte do traje no acto de matrícula, demorariam pelo menos em Oxford e Saint Andrews (Escócia). Ao contrário do desprestígio vivido na Europa continental, o paradigma vestimentário e simbólico talar britânico não sofreu a erosão desencadeada pelo discurso abolicionista, tendo mesmo sido apropriado nos EUA, Canadá, África do Sul, Etiópia, Índia, Nova Zelândia e Austrália. Ao contrário do que sucedeu em Coimbra, as suas potencialidades estéticas permitiram a partir da década de 1860 um alargamento pacífico às primeiras matriculandas.
Em momentos diferenciados do século XX, Portugal e França viveriam situações idênticas à experiência académica anglo-saxónica em termos de vestes talares adoptadas pelas advogadas e magistradas. Na Coimbra de finais do século XIX, e anos que se lhe seguiram, a profunda masculinização operada no imaginário académico e no conjunto casaca/calça comprida/colete inviabilizaria por décadas o processo de feminilização. Dizendo-se um traje progressista no confronto discursivo entre cultura burguesa e herança aristocrático-clerical, o traje académico burguês revelou-se empedernidamente sexista, e nessa medida reccionário face à dinâmica de mudança. Não sendo detentor da riqueza artística das vestes talares nem da sua polivalência unissexo, os fatos burgueses apostam na demarcação territorial e simbólica dos sexos através da sobrevalorização de peças secundárias como a calça comprida (sexo M) e a saia (sexo F), mesmo quando em contextos militares e policiais tal distinção foi abandonada .
Como se verá mais adiante, os modelos de colete e de capa vulgar louvados pelos estudantes de Coimbra como grandes conquistas civilizacionais contra o “obscurantismo” eram aflorações retardadas e esteticamente inferiores a peças vestimentárias que as mulheres do povo conheciam e usavam desde o século XVI. O colete feminino, de bainha lisa ou recortes, a fechar com atilhos, era usado pelas camponesas em contextos de trabalho e solenidades. A versão de luxo podia comportar motivos bordados e tecidos de seda enramada. A capa de honras feminina das lavradreiras abastadas e meias-senhoras (bem com os capotes, mantéus e capoteiras), em lã fina, com golas e bordados ainda era usada um pouco por todo o Portugal nos casamentos, baptizados, funerais, missas, entradas régias e entradas episcopais no tempo em que as primeiras alunas chegaram à UC.
Ao abandonarem o hábito talar tradicional, substituindo-o por um traje burguês citadino, singelo em tecido e figurino, os estudantes de Coimbra proclamavam-se progressistas. Ponderando estas afirmações em 1888, um profundo especialista da cultura e dos trajes propulares, José Ramalho Ortigão, duvidou da pertinência do discurso. A partir do momento em que o traje académico se transformava num produto esteticamente inferior à maior parte das peças usadas pelos camponeses portugueses como traje domingueiro, para se nivelar com o chamado traje ou fato de trabalho, tornara-se difícil descortinar-lhe traços de progressismo.
Em Portugal, as Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa, Porto, Funchal e Ponta Delgada, fundadas a partir de 1836 , começaram por não instituir qualquer traje talar ou militar para docentes e discentes. O mesmo rumo foi seguido desde 1837 pela Escola Politécnica de Lisboa e Academia Politécnica do Porto , onde o fácies paramilitar não foi bastante para trazer aos muros destas instituições, nos anos iniciais, o grande uniforme napoleónico. Não obstante, os docentes militares das politécnicas usavam as fardas respectivas.
Novas instituições portuguesas de ensino como o Curso Superior de Letras (1859) e o Instituto de Agronomia e Veterinária (1864) não se mostraram receptivas a insígnias, rituais académicos ou trajes para alunos e docentes. A casaca preta/calça comprida/colete/cartola/chapéu de coco, com o indispensável complemento de bengala de castão de prata, terão sido os elementos vestimentários laico-burgueses mais celebrados por este tipo de instituições que não se reviam no modelo talar conimbricense.
Nos alvores da década de 1850, concretamente em 1852, a Rainha D. Maria II foi recebida pelos lentes da Academia Politécnica do Porto em casaca preta, colete, calças compridas, sapatos e meias de seda , presumindo-se que não tenha faltado a indispensável cartola.
Poucos anos antes, em 1847, o governo central de Madrid decretara que os estudantes universitários frequentassem as aulas em casaca negra, calças compridas, gravata preta e chapéu redondo (a que acrescentavam um capote de romeira).
Este era também o traje usado pelos docentes universitários suecos desde finais do século XVIII, ulteriormente transposto para a Finlândia. O paradigma sueco é merecedor de acrescida atenção, pois em 1778 o Rei Gustavo III decretou a abolição das vestes universitárias de inspiração protestante, fazendo-as substituir pelo traje da Academia Sueca: casaca de corte, banda vermelha, rosetas vermelhas na bainha dos calções e nos sapatos, e cartola forrada de seda . Poucos anos mais tarde, em 1784, os lentes de Uppsala confirmavam o conjunto anteriormente referido, mas colocando sobre a casaca uma espécie de opa preta, e cobrindo as cabeças com cartolas forradas de seda: preto para Teologia, branco para Leis, verde para Medicina e azul claro para Artes Liberais/Filosofia.
Na Finlândia, por influência da Academia Sueca e da Universidade de Uppsala, prevaleceu a opção pela casaca civil de corte, adaptada à moda do século XIX (preta, cortada no ventre, com abas de grilo), espadim e cartola. O exemplo melhor conhecido é o da Universidade de Abo, transferida para Helsingfors em 1827, onde as cartolas pretas representavam Artes Liberais e Medicina e as vermelhas Leis. Os reitores tinham ainda direito ao porte de um manto talar de veludo carmesim, orlado de seda branca. Nos restantes estabelecimentos de ensino finlandeses, uma lei de 1817 determinara o uso de farda militar.
Confirmando o paradigma laico-burguês, docentes e discentes do Curso Superior de Letras e do Instituto de Agronomia e Veterinária entrariam no século XX de labita preta e cartola, costume de certa forma prolongado após a respectiva integração nas universidades fundadas em Lisboa após 1910 .
As escolas de ensino técnico-profissional de agricultura, lançadas pela legislação fontista de 16 de Dezembro de 1852, e reorganizadas por Emídio Navarro (Decreto de 2.12.1886), não terão definido traje docente.
Quanto à Escola Nacional de Agricultura, aberta em Coimbra no ano de 1887, não se conhece prescrição de traje profissional para o corpo docente. Os alunos começaram a usar no dia a dia um pequeno uniforme composto por boné de pala ou barretina com pompom, colete e gravata, camiseiro à “farmer” e calças compridas . Nos dias de gala optavam por um grande uniforme à lavrador, cujo figurino era o mesmo do chamado traje português masculino de equitação . O primeiro destes dois conjuntos gozava de acrescido prestígio junto das quintas britânicas oitocentistas de agricultura experimental, e foi desde cedo institucionalizado em Portugal como farda dos menores internados em casas de correcção instaladas em quintas agrícolas como Vila Fernando (1895), e posteriormente na Penitenciária de Lisboa (1913 e ss.) e na Colónia Penal de Sintra (1915 e ss.). O mesmo tipo de camiseiro seria adoptado desde ca. 1900 pelos “juízes” do Tribunal de las Aguas de Valência.
Foi com um pequeno uniforme deste tipo, à base de calça comprida, camiseiro de cotim, bota de montar e barretina à cadete com pompom, que a primeira fornada de formandos da Escola Nacional de Agricultura de Coimbra se fez fotografar em 1892. A pasta de ganga esverdeada, com fitas largas verdes e brancas surgiria alguns anos mais tarde .
Situação próxima da referida terá sido vivenciada pelos alunos e docentes das escolas industriais de ensino médio (Decreto de 30.12.1852), cuja rede regional atravessaria um processo de intensificação quando António Augusto Aguiar liderou a pasta das Obras Públicas . Aqui, a opção terá recaído na articulação de um conjunto prático civil (calça comprida/camisa) com um boné de pala e uma bata, conforme usança oficinal nas escolas francesas de artes e ofícios mecânicos. Ao longo da primeira metade do século XX, os alunos da Escola Industrial Brotero, de Coimbra, ficariam conhecidos pelo apodo “lagarto azul”, graças ao fato de ganga ou fato de macaco oficinal que não sendo uma farda acabava por funcionar como tal .
Estabelecimento de ensino médio era também o Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, filho do Decreto de 25 de Janeiro de 1894, substituído após 1911 pelos Instituto Superior Técnico e pelo Instituto Superior de Comércio, para o qual não foi definido traje profissional. O mesmo acontecia com o Instituto Comercial do Porto, criado pelo Ministro João Franco em 1891 .
É tardiamente, em 1889, que os alunos do terceiro ano da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, se lançam no uso da capa e batina, traje que possivelmente já seria envergado pelos escolares do Liceu do Porto . A formação da Tuna Académica do Porto, por 1890, com alunos do liceu, da Politécnica e da Médico-Cirúrgica, o nacionalismo fervilhante gerado pelo Ultimatum e requentado pelo 31 de Janeiro de 1891, e o debutar de festividades carnavalescas e de fim de ano (Enterro da Farpa, Festa da Pasta) , terão ajudado a sedimentar a capa e batina na cidade do Porto.
O etnólogo José Leite de Vasconcelos, antigo aluno da Médico-Cirúrgica do Porto, mostrar-se-ia hostil ao uso da capa e batina nas escolas politécnicas portuguesas e liceus . E com Vasconcelos estariam muitos dos liberais de oitocentos que assumiam como traço identitário o fato masculino burguês usado nas cidades ocidentais.
Em Lisboa, o ambiente propiciatório da constituição de tunas académicas e o empenhamento dos estudantes em causas públicas após o Ultimatum terão contribuído para a naturalização da capa e batina entre os liceais e politécnicos.
Seria a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa a dar o passo em direcção ao grande e ao pequeno uniformes, mas restringindo-os ao corpo docente. O Decreto de 1 de Outubro de 1856 adoptava a título de pequeno uniforme de porte quotidiano uma toga preta talar, de um corpo, em grande parte resultante da fusão da beca judiciária portuguesa com a toga de advogado, lacinho branco, cintura de borlas pendentes, sapatos pretos de fivela e barrete cónico; e um grande uniforme napoleónico, à base de casaca militar azul escura, com bordados a ouro, gravata e colete brancos, calça comprida azul escura avivada a ouro, bicórnio emplumado e espadim .
Não existiam diferenças dignas de nota entre o grande uniforme descrito e o traje dos diplomatas ocidentais , ministros e conselheiros de estado (França, Portugal, Espanha, Itália), Real Academia das Ciências de Lisboa ou o “habit vert” do Institut de France. Um ano decorrido, o Decreto de 15 de Setembro de 1857 estendeu estes dois trajes profissionais à Escola Médico-Cirúrgica do Porto . Na viragem do século, o Decreto de 6 de Fevereiro de 1902 alargou o conjunto talar referenciado à Academia Politécnica do Porto, precisando que as rosetas peitorais da toga fossem nas cores das especialidades científicas ministradas naquele estabelecimento de ensino.
A militarização imagética das academias científicas e dos politécnicos inscrevia-se num conjunto de representações liberais e descristianizadoras, reunindo amplos consensos entre as elites ocidentais que vociferando contra a hegemonia espiritual católica se reviam no perfil heróico e disciplinado do militar fardado.
Vencido o ciclo do abolicionismo, torna-se possível clarificar que os uniformes militares de gala e o cerimonial militar escorado em paradas pedestres, cavalgadas, fanfarras, apresentação de armas, salvas de artilharia, entrega de espadas, cerimonial fúnebre, imposição do bastão de marechal e de insígnias, juramentos de honra, gritos masculinos, grandes uniformes avivados e agaloados, não eram menos simples, menos disciplinadores, menos conservantistas nem menos dispendiosos do que as práticas ostentatórias apontadas às universidades clássicas.
Os intelectuais europeus teriam de aguardar o desenlace da Grande Guerra de 1914-1918, as atrocidades da Segunda Guerra de 1939-1945 e o lançamento de bombas atómicas sobre o Japão para começarem a questionar o prestígio da simbólica castrense. Em Portugal o processo seria mais lento, alimentado pela Guerra Colonial (1961-1974) e pela tardia institucionalização do estatuto do objector de consciência .
No caso de Coimbra, o abolicionismo periodicamente reclamado, não se confinava a mera parusia niilista. Um horizonte imaginário de símbolos alternativos à batina, aos calções, ao colarinho raso e ao cerimonial tradicional piscava o olho à labita burguesa e às fardas militares. Quanto ao destino a conferir à capa, o romantismo estético pululante reservou-lhe lugar especial no imaginário masculino das vivências anónimas e do heroísmo individualizado. A gesta de capa e espada, muito enraizada na centúria de oitocentos, e depois apropriada pelo cinema de aventuras de Hollywood, não concebia um prestidigitador, um Drácula, um Fantasma da Ópera, um Zorro ou um Superman sem capote ou capa esvoaçante . Eça de Queirós, também ele, não concebeu Antero de Quental a discursar revoltas no adro da Sé Nova de Coimbra sem a romântica capa negra a descair pelo ombro .
Em meados do século XIX, os autores de quadras destinadas às danças das fogueiras do São João de Coimbra já se tinham apropriado da capa estudantil, cantando no “Malhão” (=Estalado): A capa do estudante/É um jardim de flores/Toda cheia de remendos/Cada um de seus amores , copla que na década de 1860 passou a ser cantada no novel Fado dos Estudantes Açorianos. Outras coplas, circulantes, foram rapidamente tradicionalizadas:

-A beleza do estudante/É tal, que por ela morro/Gorro e capa, capa e livro/Livro e capa, capa e gorro;
-O seu todo é elegante/Sua voz muito engraçada/Um jovem de capa e gorro/Traz minha alma apaixonada;
-Adeus capas, adeus gorros/Adeus livros, tudo enfim/Adeus ó bela Coimbra/Saudades levo de ti .

Terminados os arraiais dançantes do São João, muitos eram os estudantes foliões que seguiam nas rusgas populares para a Fonte do Castanheiro, local associado ao rejuvenescimento hierogâmico, aos folguedos e a actos sexuais, pelo que a quadra humoristicamente cantava São João perdeu a capa/No caminho do estudo/Juntaram-se as moças todas/Compraram-lhe uma de veludo .
No entardecer da centúria, as vozes do ultra-romantismo e do pessimismo mórbido-decadentista forjaram coplas que fizeram as delícias dos serenateiros estivais:

-Minha capa vos acoite/Que é para vos agasalhar/Se por fora é cor da noite/Por dentro é cor do luar (António Nobre, 1890);
-A minha capa velhinha/Tem a cor da noite escura/Não a quero por mortalha/Quando for prá sepultura (Augusto Hilário, 1895).

Da recta final da Monarquia Constitucional é a Escola Colonial, fundada pelo ministro Moreira Júnior, por Decreto de 18 de Janeiro de 1906, vocacionada para a formação de quadros ultramarinos. De acordo com a tradição napoleónica acreditada entre as elites, e considerando os costumes militares portugueses, um eventual traje a adoptar pela instituição estaria próximo dos uniformes em uso na Marinha. Mas não terá sido este o caminho trilhado por docentes e alunos da sucessivamente chamada Escola Superior Colonial, Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (1961 e ss.), e ISCSP da Universidade Técnica de Lisboa: o Despacho de 6 de Janeiro de 1955 optou pela instauração de um traje docente à base de toga preta, estola e fez .
No âmbito da preparação do professorado do ensino primário, a Carta de Lei de 18 de Março de 1897 determinou a criação de Escolas Normais, segundo o modelo francês, nas capitais de distrito, porém sem consagração de traje docente/discente .
Concluído o périplo pelos estabelecimentos de ensino técnico-profissional fundados em Portugal entre 1836-1910, pode dizer-se que à data da Revolução Republicana de 5 de Outubro de 1910 o traje militar fora oficialmente adoptado nas médico-cirúrgicas e politécnicas de Lisboa e Porto (traje docente de gala), e em versão mais modesta no Real Colégio Militar (traje discente).
Mas não nos deixemos ludibriar perante este aparente fracasso do paradigma napoleónico naturalizado nos países ocidentais não abrangidos na esfera da cultura escolar anglo-saxónica. Relendo com atenção a literatura de época e visualizando as fotografias disponíveis, rapidamente se conclui que na UC, nas Médico-Cirúrgicas e nas Politécnicas de Lisboa e Porto, o traje militar masculino fora reconhecido aos alunos como equiparado a “traje académico” para efeitos de frequência de aulas, exames e cerimónias .
Tamanho triunfo levar-nos-ia a pressupor que em contexto escolar anticlerical e abolicionista de Primeira República, o uniforme militar teria vingado de forma generalizada nas escolas comercias e industriais, liceus e universidades estabelecidas em Lisboa e Porto no ano de 1911. De acordo com o mesmo pressuposto, tudo indiciaria que a participação de Portugal na Primeira Grande Guerra de 1914-1918 precipitaria uma corrida empática ao fardamento de certas instituições e profissões, à semelhança do verificado na Cruz Vermelha, enfermeiras francesas, inglesas ou norte-americanas onde o capote azul escuro avivado a vermelho e o tailleur militar da marinha (dólman/saia) encontraram terreno favorável .
Com efeito, este parecia ser o caminho a trilhar, tendo em conta o primeiro doutoramento honoris causa concedido pela UC a elementos exógenos ao seu claustro doutoral. A 15 de Abril de 1921, a Faculdade de Ciências concedeu a laurea azul celeste e branca (Secção de Matemática), na Sala dos Actos Grandes, aos heróis militares da Grande Guerra Marechal Joseph Jacques Césaire Joffre (França), Generalíssimo Armando Diaz (Itália), e General Smith Dorrien (Inglaterra) . Uma fotografia da colecção do Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa mostra os laureados no escadório da Via Latina, à saída da cerimónia, com a borla e capelo sobre os uniformes militares , situação anómala em termos protocolares que já não se repetirá em 1949 quando o General Francisco Franco receber o doutoramento honoris causa .
Conforme se procurará demonstrar no capítulo seguinte, entre os lentes e estudantes de Coimbra havia uma cultura multissecular enraizada que não permitia criar um nicho favorável à plena substituição dos trajes talares pelas fardas militares.
Contrariando a hipótese pró-farda, os alunos das escolas comerciais e industriais viveriam um século XX com bata funcional e fato de macaco vestidos apenas em contextos oficinais. Nos liceus manteve-se até à década de 1960 a herança masculina da capa e batina herdada da UC.
Seriam ainda os liceus de Lisboa e Porto a inventar espontaneamente entre 1915-1916 o traje feminino, à base de tailleur saia-casaco e capa, o qual só muito tardiamente entrou nas universidades: na do Porto em 1946, pela mão das alunas sócias do Orfeão; na de Coimbra em 1951, devido à acção das sócias do Teatro dos Estudantes, seguindo-se generalização não pacífica decretada pelo Conselho de Veteranos em 1954 .
Após a criação das universidades de Lisboa e Porto, os alunos portuenses ligados à tuna e orfeão adoptaram desde 1911-1912 a capa e batina dos conimbricenses, seguindo-se uma adesão generalizada a partir de 15.03.1916. Em Lisboa, o uso da capa e batina ficaria duradouramente restringido aos liceus e a franjas de alunos da Faculdade de Direito então situada no Campo de Santana. Na vizinha Faculdade de Medicina, o uso de capa e batina seria bem menos expressivo do que o filme A canção de Lisboa (1933) parece deixar antever .
Quanto aos corpos docentes das duas universidades instituídas em 1911 pelo Ministro do Interior António José de Almeida, a herança politécnica que sustentava o grande uniforme napoleónico foi abandonada desde logo. Lisboa e Porto inclinavam-se de forma pouco convicta para a toga preta talar aprovada em 1856 para a Escola Médico-Cirúrgica, solução que se arrastou pelo século XX sem grande consistência gregária ou identitária .
Logo após o 5 de Outubro de 1910, o governo provisório publicou um conjunto de medidas abolicionistas e laicizadoras que visaram os rituais, o cerimonial e os trajes da UC, num ajuste de contas que se foi tornando mais claro à medida que não se aboliu nem afrontou o legado das politécnicas nem das médico-cirúrgicas.
É perante uma UC subjugada e privada da sua identidade simbólica, receosa de exteriorizar os seus trajes, insígnias e cerimonial, que logo em 1911 o ministro da tutela, António José de Almeida, promove eleições reitorais no Porto e em Lisboa (em Coimbra impõe o advogado Manuel de Arriaga) e dá luzimento às cerimónias de abertura solene das aulas em Lisboa e Porto .
A Academia das Ciências de Lisboa, honorificamente presidida pelos chefes de estado, continuou a realizar a sua cerimónia solene anual, sem quaisquer constrangimentos quanto ao uso do grande uniforme napoleónico , espadim e bicórnio designado na gíria por “abatjour”.
A criação da Faculdade de Direito de Lisboa (1913) ditou uma migração maciça de quadros formados na Faculdade de Direito da UC, ali se tendo começado a registar desde 1915 uma afirmação descomplexada do uso do hábito talar e da borla e capelo. Com a publicação do Estatuto Universitário contido no Decreto nº 4:554, de 6 de Julho de 1918, as insígnias doutorais conimbricenses eram apropriadas pelo Ministério da Instrução Pública e declaradas insígnias nacionais. A UP optava pelas insígnias doutorais conimbricenses e na UL o porte passava a ser extensivo às várias faculdades. Porém, a generalização extra-muros das insígnias conimbricenses, começara muitas décadas antes nas escolas jurídicas brasileiras. Em Lisboa e Porto, intenta-se uma aproximação dispersiva ao cerimonial doutoral conimbricense. Ao nível do porte de insígnias em situações festivas e de gala, a década de 1920 registou diversas combinatórias e iconoclastias: borla e capelo com toga herdada das Médico-Cirúrgicas e da Politécnica do Porto; borla e capelo com toga de advogado (Lisboa); borla e capelo com hábito talar idêntico ao de Coimbra ao longo de todo o percurso profissional (Fac. Direito de Lisboa); hábito talar conimbricense em Lisboa e Porto até à ascensão à cátedra, e porte de toga talar pelos professores catedráticos; concessão de honoris causa a candidatos em farda militar; defesa de actos magnos de doutoramento em labita.
No curto prazo, um certo predomínio simbólico da Faculdade de Direito na liderança da equipa reitoral da UL imporia o mimetismo de costumes ancestrais conimbricenses como a dispensa do capelo pelos reitores e vice-reitores. A visão centralizadora e uniformizadora dos fenómenos culturais herdada da Aufklarung legitimaria deste modo as medidas governamentais que em 1918 procederam à nacionalização das insígnias doutorais conimbricenses nas três universidades existentes, e posteriormente da capa e batina dos estudantes a ambos os sexos em 1924 .

Teria o uniforme militar os dias contados em Portugal, no seu confronto com as virtualidades estéticas, afectivas e simbólicas atribuídas aos trajes talares?
Uma primeira retracção se vive no Portugal de Outubro-Dezembro de 1910, no que respeita ao abandono liminar dos uniformes de gala dos vereadores municipais , pares do reino do Parlamento , conselheiros de estado, ministros de estado, governadores civis , secretários dos governadores civis, administradores dos distritos administrativos e seus secretários, bem como magistrados do Tribunal de Contas .
Passados os dias quentes de finais de 1910, o grande uniforme napoleónico sobreviveu apenas no corpo diplomático e na Academia das Ciências de Lisboa, cujos botões e cores foram adaptados à iconografia republicana, e Academia das Ciências de Portugal . Em consequência deste abandono, os detentores de cargos representativos do poder legislativo, executivo e presidencial abandonam qualquer assimilação à imagética militar ou aristocrática, resvalando para um puritanismo geométrico e despojado de ornatos, à base do fato preto. No limite, o poder público passava a vestir de preto, cor predominante no século XIX entre a burguesia liberal e os arautos da moral vitoriana, procurando ventilar uma imagem de seriedade, ordem, labor e empreendedorismo cujo fim seriam o progresso e a felicidade. Verberando os uniformes, os burgueses adoptavam o fato civil escuro como uniforme dos políticos, empresários e administradores. Após a Segunda Guerra Mundial, as escolas de gestão acrescentariam a este figurino o esmero físico dos actores de Hollywood.
Se as desigualdades ficavam aparentemente abolidas no confronto nobreza/burguesia, não deixavam de permanecer muito vincadas na distinção vestimentária entre média e alta burguesia e gentes do povo, que um pouco por todo o Portugal rural continuavam a vestir resíduos de trajes “folclóricos”.
Continuando a tradição artística naturalista de finais de oitocentos, os intelectuais republicanos exaltaram os trajes populares através da pintura de costumes, do azulejo e do bilhete-postal ilustrado, discurso que não era correspondido pelos visados. Em podendo, o camponês e o pescador optavam invariavelmente pelo abandono dos trajes rústicos que consideravam sinónimo de inferioridade e de desconforto .
Alguns regimes ditatoriais europeus acarinhariam ainda o grande uniforme napoleónico, o qual foi consagrado como imagem de marca da Academia Real de Itália, instituída por Mussolini em 1926 , e tardiamente em Portugal pela Academia Portuguesa de História (1945) .
No período de entre guerras, o enquadramento visual das juventudes pelos regimes autoritários seria construído à margem da capa e batina , a partir da mobilização de massa das juventudes políticas. Foram os anos dos acampamentos, paradas citadinas, inaugurações, missas campais e desportos ao ar livre, protagonizados por juventudes politizadas e hierarquizadas, que se davam a ver através da exibição de uniformes masculinos e femininos em tons pretos e castanhos, de desenho funcional pouco conseguido.
Em Inglaterra, o conjunto vestimentário mais próximo do sacralizado pelos ditadores continentais será o “Scout Uniforme”, inspirado em fardamento militar da Guerra Bóer travada na África do Sul. Popularizado pelos pupilos de Robert Baden Powell durante a Grande Guerra, este uniforme apresenta alguns elementos comuns aos primitivos equipamentos futebolísticos, não se inscrevendo na liturgia autoritária de entre guerras.
As escolas portuguesas de vertente técnico-profissional e as politécnicas permaneceram arredadas do uniforme militar, solução que nas décadas de 1930-1940 foi largamente utilizada pelo Estado Novo para definir a imagem sócio-profissional dos oficiais menores e motoristas dos ministérios e secretarias de estado , polícia cívica, bombeiros, enfermeiras, carteiros, hospedeiras de aviação civil, carregadores de bagagens dos caminhos de ferro, cobradores de bilhetes e motoristas da carris e das empresas de autocarros.
Desde a Primeira Guerra Mundial, um pouco por todo o Ocidente e nas possessões coloniais, o uniforme da marinha foi rapidamente apropriado pelas enfermeiras e pelas companhias civis de aviação (traje de hospedeira) . Nos hotéis de referência, a prestação de serviços de qualidade e as estratégias de sedução e fidelização de clientelas passaram pela consagração de uniformes inspirados nas fardas militares, apropriação que já tinha sido testada com sucesso na segunda metade do século XIX pelas companhias detentoras de navios turísticos de luxo.
Portugal e Espanha distanciavam-se definitivamente do imaginário politécnico francês. Para os vários institutos federados na Universidade Técnica de Lisboa desde 1930, o Ministro da Educação Nacional, José Caeiro da Matta (1877-1963), determinou em Portaria nº 11:170, de 17 de Novembro de 1945, o porte da toga preta talar, da gorra renascentista e do epitógio franco-belga. Dez anos mais tarde, o traje talar do ISEU, aprovado por Despacho de 6 de Janeiro de 1955, também fugiu ao grande uniforme militar. Era o triunfo dos académicos togados.

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