domingo, 23 de agosto de 2009

III - Património...
O hábito talar e as insígnias doutorais de Bernardino Machado
Académicos de toga e académicos de espada

A Revolução Francesa de 1789 e os subsquentes pronunciamentos liberais apontaram como via de consumação do progresso e da ilustração o laicismo e o cientismo, percurso linear inconciliável com costumes, peculiarismos, rituais e trajes profissionais herdados do passado. Excluindo as universidades anglo-saxónicas europeias e ultramarinas, onde os trajes talares profissionais e insígnias mantiveram o prestígio ancestral, as universidades da Europa Continental optaram pelo abolicionismo vestimentário e pela ostracização do legado católico e da estética barroca.
Na Europa Continental, o dissídio que se arrasta desde o espírito das luzes ao “Mai 68” entre académicos de “toga talaris” e académicos de espada parece fazer pender a balança a favor do abolicionismo e do triunfo do grande uniforme militar.
O ecletismo e o revivalismo vividos nos anos subsquentes ao “Mai 68”, vieram permitir reavaliar à distância os discursos em confronto, numa era de pós-abolicionismo e de polimorfismo de trajes talares.

Em meados do século XIX, as vestes talares herdadas do período medieval, ficaram crescentemente confinadas ao mundo britânico, UC e universidades católicas sedeadas na cidade de Roma[1]. Por todo o Ocidente tendiam a desaparecer, sem glória, sem defensores e sem musealização as vestes de dois corpos sobrepostos, apenas sendo possível avistá-las nos mestres de cerimónias das catedrais anglicanas (vergers), no traje de gala da Universidade de Oxford (convocation dress), em certos colégios católicos de diferentes países cujos alunos cursavam em Roma as universidades pontifícias[2], e em magistrados portugueses que perseveraram na manutenção da beca preta talar de idêntica origem[3].
A partir do movimento revolucionário francês de 1848 a França dita a moda Ocidental burguesa. A alta-costura centra-se obsessivamente no universo feminino. A moral dominante vigia persistentemente a indumentária masculina em termos de tecidos, cores, ornatos e figurinos, instaurando a morte da policromia e dos ornatos. O vestuário civil masculino mergulha numa longa glaciação artística, centrada na imposição de tecidos escuros, lisos, à base de chapéu, calça comprida, casaca de abas de grilo, e a partir da década de 1850 no casaco escuro cortado pela púbis (blaser)[4], cujo figurino remete para o puritano gibão seiscentista.
Por bons duzentos anos, tecidos de luxo, bordados e hábitos talares são ostracizados das margens do estilo de vida burguês, entrando em circulação a consagrada piada cujo enunciado propõe que o “verdadeiro” homem usa calças compridas e os menos homens usam “saias” como as mulheres. Trata-se de uma piada burguesa eurocêntrica, eivada de preconceitos puritanos, que pretendendo ferir os clérigos católicos e os universitários togados, ignora que na mesma época a masculinidade se continua a afirmar pelas vestes talares no Império Otomano, nos povos islamizados da África do Norte, na Arábia e Médio Oriente, na Polónia, na China ou no Império Russo. Mas nem só de hábitos talares falamos. Saios masculinos (anáguas) pela linha do joelho demoravam em uso na Escócia, na Grécia e em momentos festivos de Trás-os-Montes e vizinho território leonês. De acordo com as recolhas de campo de José Leite de Vasconcelos, entre 1892-1927 ainda se encontravam nos meios rurais portugueses de mais idade para quem o traje de festa só se poderia usar com plena dignidade quando complementado por calções[5]. Variante do saio de linho era o saio-calção (“manaias”) usado pelos camponeses e pescadores ribeirinhos de Mira até à Murtosa.
Todo este processo de captura, constrangimento e normalização, marcado pelo puritanismo burguês, e pelo triunfo da moda citadina, se traduz num reducionismo empobrecedor das múltiplas linguagens da indumentária masculina. Em lugar de uma moda masculina e feminina, a cultura burguesa impõe uma alta-costura centrada sobre clientelas femininas. Ao interditar a policromia e a ornamentação, a moda burguesa limita-se a gerir um vestuário masculino marcado pelos valores da funcionalidade e do estatuto sócio-profissional.
Quanto a países como a Espanha, a França, a Itália, e no Portugal das escolas politécnicas de Lisboa e Porto, a consagração de modelos próximos dos trajes profissionais judiciários e militares parecia imparável. Concomitantemente, os departamentos da administração central responsáveis pela instrução pública publicavam normativos que apostavam na nacionalização e homogeneização de um mesmo traje e insígnias em todas as universidades públicas. A França e a Espanha terão sido os países da Europa que mais longe foram na consagração e perpetuação da solução centralista e uniformizadora.
Em França, a “toge” talar, confeccionada como veste de corpo único desde o período napoleónico[6], passou a não se distinguir do traje dos magistrados judiciais, conhecendo dificuldades em ombrear com os dias de prestígio vividos pelos grandes uniformes militares em uso nas escolas politécnicas, nas escolas de artes e ofícios[7], no Institut de France, no corpo diplomático e nos dirigentes da administração civil central e regional[8].
Na École Polytechnique de Paris usar-se-ia desde as origens um uniforme militar napoleónico[9] próximo do avistado na Península Ibérica durante as invasões francesas de 1807-1811. Tal traje não era desconhecido dos estudantes de Coimbra, pois fora o uniforme oficial dos membros do Batalhão Académico activo entre 1808-1811[10]. A farda referida abandonou o capote e feminilizou-se em 1974. Nas escolas de artes e ofícios, o uniforme militar próximo de soluções consagradas no Ocidente por carteiros, oficiais de marinha, bombeiros, polícias, guardas prisionais, chefes de cozinha, músicos de bandas filarmónicas amadoras, oficiais de aviação civil, enfermeiras da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, chegou ao século XX, com feminilização tardia (1964).
Ao grande favor tributado pelos académicos da Europa Continental aos uniformes militares masculinos, não serão alheios os diversos conflitos que desde as Invasões Napoleónicas da Península Ibérica à conquista da Roma dos Papas pelo exército italiano (20.09.1870) levaram estudantes portugueses, espanhóis, italianos, alemães e belgas a pegar em armas.
Nas universidades alemães, na passagem do século XVIII para o século XIX abandona-se a grande casaca militar e o tricórnio de feltro[11], mas o prestígio e a disciplina do exército prussiano conduzem desde aproximadamente 1815[12] à generalização do boné dos corpos de cavalaria entre os estudantes cultores das canções goliardas (“commercium songs”) e clubes de praticantes de esgrima.
Em Itália, manteve-se a murça de arminhos dos doutores e reitores, mas as togas e barretes adoptados em Bolonha ou Perugia eram agora as mesmas envergadas pelos advogados e juízes (toga e tocco). Em Espanha, o traje dos estudantes foi oficialmente abolido em 1834[13], e a loba e barrete doutoral dos lentes (“bonete de picos”) viram-se substituídos em 1850 pela toga preta dos advogados[14]. Neste país, apenas sobreviveria a murça de ombros, na cor científica da especialidade, numa versão relativamente simplificada, próxima das murças clericais. Em Sevilha, alguns doutores manteriam até finais do século XIX o antigo capelo doutoral de murças sobrepostas, insígnia que não sobreviveria no século XX. O barrete doutoral antigo, de quatro arestas, semelhante ao usado na Coimbra dos séculos XVI e XVII, foi igualmente substituído pelo barrete preto hexagonal dos advogados, sem cristas na copa.
Nos jovens países saídos da primeira vaga descolonizadora, surgiam no decurso do século XIX movimentos de construção identitária revivalista. Nos EUA, universidades e colégios reuniram delegados em 1893, tendo sido criada a “Intercollegiate Commission” com o objectivo de aprovar trajes e barretes adaptados a partir da tradição britânica. Os trabalhos relativos aos padrões, cores e tecidos foram aprovados em reunião de interlocutores no Columbia College, em 1895, com a designação de “Code of Academic Regalia”[15].
Nos EUA, tal como em Inglaterra, Escócia, Canadá, Índia, Austrália e Nova Zelândia as mulheres passaram a usar as togas universitárias sem resistências dos seus pares masculinos, conforme documentam fotografias de formandas inglesas, norte-americanas e australianas vestidas de toga e barrete académico para os anos de 1870 a 1900[16]. Nas escolas técnicas de ensino médio e nas politécnicas de agricultura e mecânica, os alunos norte-americanos seguiram o uniforme militar normalizado em França, servindo de exemplo a farda de cadete reformada em 1897 pelo Virginia Agricultural and Mechanical College and Polytechnic Institut[17].
Após a independência do Brasil, a Lei de 11 de Agosto de 1827 abriu portas à Faculdade de Direito de Olinda e à Faculdade de Direito de São Paulo. O curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Academia de São Paulo começou a funcionar em 1 de Março de 1828, e o de Olinda em 15 de Maio de 1828, com as duas instituições a consagrarem ab initio a borla e capelo conforme a tradição da Faculdade de Leis de Coimbra, solução ulteriormente seguida por outras universidades brasileiras. Quanto ao traje profissional, os docentes universitários brasileiros optaram pela toga judiciária preta.
Em colégios do ensino secundário, como o de D. Pedro II, pela década de 1850 tornou-se obrigatório um pequeno uniforme masculino à base de calça comprida clara, casaco escuro com botões de sugerência militar e boné de pala, cobertura de cabeça sintonizada com as soluções em processo de afirmação nos meios universitários da Suíça, Suécia, Noruega, Áustria, Bélgica e Alemanha e em colégios particulares de ensino secundário um pouco por todo o Ocidente.
REFERÊNCIAS
[1] No século XIX, os doutores pelas universidades católicas romanas já não usavam a antiga loba talar de dois corpos sobrepostos, conhecida em Roma e Bolonha por “loba dos doutores”, mas as vestes talares correspondentes às diversas dignidades seculares e regulares. O chapéu doutoral continuava a ser o barrete quadrangular rematado com cristas, forrado de seda preta, com a borla na cor da especialidade científica. À semelhança de Coimbra e de Salamanca, mantinha-se o anel de ouro com a palavra “Roma” gravada no bezel. Informação adicional em John Abel Nainfa, Costume of prelate of the Catholic Church, Baltimore, John Murphy Company, 1926, p. 241 e ss (1ª edição de 1909).
[2] Chegaram à década de 1960 os seguintes trajes talares de corpos sobrepostos, derivados da antiga “loba dos doutores”, sendo a veste interna designada por sotaina e a externa por soprana: Collegio Capranica, sotaina e soprana pretas; Pontifício Collegio Germânico-Húngaro, sotaina e soprana vermelhas; Pontifício Collegio Grego, sotaina e soprana azuis, faixa vermelha; Venerable English College, sotaina e soprana pretas; Pontifical Scots College, sotaina roxa, soprana preta, faixa vermelha; Pontifical Irish College, sotaina e soprana pretas; Collegio Lombardo, sotaina e soprana pretas, faixa violeta; Collegio Maronita, sotaina e soprana pretas, faixa azul; Pontifício Collegio Polaco, sotaina e soprana pretas, faixa verde; Collegio de São Bonifácio, batina preta avivada a amarelo, soprana preta; Collegio Rutheriano, sotaina e soprana azuis, faixa laranja. Desde 1969 que estes trajes se encontram caídos em desuso. Os alunos do colégio francês foram os primeiros a adoptar traje civil, sendo em geral seguidos pelos seminaristas dos restantes colégios. Nos dias de gala alguns colegiais ainda envergam o traje distintivo, mas a antiga loba de dois corpos foi substituída pela batina romana. Nas faixas ou cinturas, predominam as cores das bandeiras dos países associados ao nome dos colégios.
[3] Sobre a origem, evolução e características deste traje profissional, veja-se AMN, “Trajes Judiciários Portugueses. A Beca”, in Revista do Ministério Público, nº 113, Janeiro/Março 2008, pp. 179-222, de que saiu separata.
[4] Breve sinopse para os casos inglês e francês em James Laver, A roupa e a moda. Uma história concisa, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 153 e ss.
[5] Etnografia Portuguesa, Volume VI, Lisboa, INCM, 1983, p. 499.
[6] Mais desenvolvimentos em Jean Duvallier, “Histoire des costumes universitaires françaises. Séance du 6 décembre 1954”, apud Bulletin de la Société Toulousaine d’Études Classiques, Nº 99, Décembre 1954-Janvier 1955, pp. 1-4 (agradeço ao Doutor João Caramalho Domingues a cedência de uma cópia deste texto).
[7] O “zagalon” ou uniforme “gadzart”, que a partir de 1936 adoptou o figurino de oficial da marinha, consagraria uma versão feminina em 1964. Estão disponíveis imagens de apoio com base em manequins e reconstituições no Museu da École Nationale Pratique d’Ouvriers et de Contremaires de Cluny (fundada em 1891), no sítio http://ahclam.gadz.org/Accueil/Voir; e em http://fr.wikipedia.org/wiki/Gadzarts (consultados em Março de 2007).
[8] Vejam-se alguns dos trajes emblemáticos de dirigentes ligados à administração interna e à diplomacia francesas, apud “Le Chaine & l’Olivier”, http://le-chene-et-le-laurier.blogspot.com/ (acedido em 8.11.2008).
[9] Historial e imagens de apoio no sítio http://www.patrimoine.polytechineque.fr/expositions/grandu2008.htm (consultado em Março de 2007). A versão feminina foi consagrada em 1974.
[10] Gravura a cores em Fernando Barreiros, Notícia histórica do Corpo Militar Académico de Coimbra (1808-1811), Lisboa, Livraria Bertrand & Aillaud, 1918, junto à p. 20.
[11] Para a visualização destes trajes na Universidade de Gottingen em 1773, consulte-se “Studentenverbindungen”, http://commons.wikimedia.org.wiki/Studentenverbindungen?uselang=de (consultado em 8.11.2008).
[12] Diversa iconografia confirmativa no sítio “Benutzer:Rabe!/Bilder”, http://de.wikipedia.org/wiki/Benutzer:Rabe!/Bilder (acedido em 3.12.2008).
[13] O traje talar manter-se-ia nas universidades espanholas apenas para alunos detentores de ordens sacras.
[14] Abolição concretizada pelo governo central de Madrid e declarada extensiva a todas as universidades espanholas, em conformidade com a letra do Real Decreto de 6 de Março de 1850, e 2 de Outubro de 1850, complementada pelo Real Decreto de 22 de Maio de 1859. O abolicionismo decretado em 1850 foi seguido de um conjunto de medidas centralizadoras e uniformizadoras, tornadas extensíveis a todas as universidades, na esteira da gestão napoleónica. As escolas politécnicas de engenharia, na esteira da França, aderiram ao traje militar, situação que se manteve até 1967, ano em que o governo de Franco fez substituir o uniforme dos “corpos de engenheiros” pela toga preta de advogado, barrete de franjas e murça (tom castanho). Cf. Ana Martín Villegas, “El Traje Académico. Ritual e símbolos. Ritual y uso del Traje Académico”, Actas do I Encuentro de Responsables de Protocolo y relaciones internacionales, Universidad de Granada, 6 e 7 de Março de 1996, apud http://www.protocolouniversitario.ua.es/, Asociación para el estúdio y la investigación del Protocolo Universitário (consultado em 9.02.2006); no mesmo sentido, Historia de la indumentaria académica. Medalla. Atributos. Símbolos. Himnos, http://www.ua.es/es/servicios/syf/formacion/cursos_programados/documentacion/protocolo/traje_academico (artigo de 1999, consultado em 9.02.2006). Quanto às cores científicas, foram mantidas as medievais, comuns a Coimbra, mas o azul celeste passou a representar a Filosofia (e humanidades), e o roxo emergiu como símbolo de Farmácia.
[15] Academic Dress, http://en.wikipedia.org/wiki/Academic_Dress, consultado em 2007.
[16] Imagens disponíveis no acervo digital do Museo International del Estudiante (Salamanca), secções de Fotografias e de Grabados, http://www.museodelestudiante.com/.(consultado em 24.10.2008). Relativamente à presença de alunas na University of Glasgow, http://archives.ac.uk/honour/biog.php?bid=2845; http://www.university.gla.ac.uk/women-backgrownd/. Dados adicionais em “Pioneer women group. 1898. University of Sidney. Faculty of Medicine”, http://www.medfac.usyd.edu.au/museum/image.php?FAMMUS=FMMUS88; “Filtered images: vision of pioneering women doctors in thwentieth-century Australia”, http://www.historycooperative.org/journals/hah/8.2/maccarthy.html; “Universty Archives and records center. University of Pennsylvania”, http://www.archives.upenn.edu/history/features/women/chron3.html; doutoramento honoris causa da Condessa de Aberdee em Direito, na Queen’s University, Canadá, Maio de 1898, http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Comtess_of_Aberdeen_in_Queen%27s_U_robes_Topley.jpg.
[17] Instituição remontante a 1872. O sítio Web desta instituição divulga fotografias relativas a alunos e turmas das décadas de 1880-1890: http://spec.lib.vt.edu/archives/125th/students/intro.htm.

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