sábado, 22 de agosto de 2009

I - Património vestimentário e insigniário conimbricense

O hábito talar e as insígnias doutorais de Bernardino Machado


O Museu Bernardino Machado (MBM) custodia um importante conjunto vestimentário que foi pertença de Bernardino Machado enquanto lente da Faculdade de Philosophia Natural (=Faculdade de Ciências Naturais) da Universidade de Coimbra em efectivo exercício de funções entre os anos de 1876-1907.
Considerando a raridade, originalidade e valor testemunhal de época destas peças de confecção artesanal, importa proceder à sua contextualização, identificação e conservação preventiva. Património vestimentário-insigniário em fase inactiva, resulta de um processo de musealização conduzido a partir de oportuno legado familiar. As peças remanescentes encontram-se devidamente acondicionadas em vitrine paralelepipédica, fora do alcance directo do público e da acção da luz solar.
As condições de higienização e de exposição ao público são tecnicamente satisfatórias, repousando a capa, a frock coat, o capelo e a borla doutoral em manequim.
A fragilidade destas peças, associada à sua raridade, implica especiais cuidados em termos de manuseamento e acondicionamento, sendo aconselhável o restauro das insígnias e a reprodução de cópia fiel do conjunto talar[1].


Um objecto inexplorado
Os etnólogos e investigadores portugueses ligados às instituições de ensino superior entraram no século XXI sem dar mostras de interesse pela abordagem de temáticas como os trajos profissionais, as insígnias e o cerimonial[2]. A uma superabundância de estudos etnográficos produzidos desde finais do século XIX sobre vestuário popular, bordados e artesanato, opõe-se um quase persistente mutismo sobre fardas, vestes profissionais e distintivos[3].
Depois de António Tomás Pires (Materiais para a história da vida urbana portuguesa. A mobília, o vestuário e a sumptuosidade nos séculos XVI a XVIII, Lisboa, 1899), Eduardo de Noronha (O vestuário. História do traje desde os tempos mais remotos até à Idade Média, Lisboa, Tipografia Libânio e Silva, 1911), Alberto de Sousa (O trajo popular, com gravuras reproduzidas directamente segundo os documentos da época, Lisboa, 1925), Gustavo Matos Sequeira (História do trajo em Portugal, Porto, Lello & Irmão, 1938), e José Leite de Vasconcelos (Etnografia Portuguesa, Vol. VI, Lisboa, INCM, 1983), os estudos de história da indumentária, trajes profissionais e insígnias parecem circunscrever-se a curiosos locais e directores de grupos folclóricos[4].
Nas décadas de 1950-1960 quem saberia falar do vestuário em Portugal seria Maria José Mendonça, então Directora do Museu Nacional dos Coches, ulteriormente Directora do Museu Nacional de Arte Antiga, que esteve ligada a trabalhos de merecimento como o catálogo O trajo civil em Portugal. Exposição organizada pela Direcção-Geral dos Assuntos Culturais no Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Janeiro/Fevereiro de 1974. Na mesma data, Maria Madalena de Cagigal e Silva assinava O Trajo no século XVIII através das colecções do Museu Nacional dos Coches, editado na revista Bracara Augusta, Volume XXVII.
Pelos finais da década de 1950 decorre na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa uma iniciativa destinada a historiar a origem, evolução e prestígio do grande uniforme e da toga talar das Escolas Médico-Cirúrgicas, herdada após 1911 pelas novas universidades de Lisboa e Porto. A pretexto do primeiro centenário da criação das fardas da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa (Decreto de 1.10.1856), o Prof. Doutor Sebastião Cabral da Costa Sacadura realizou na Faculdade de Medicina da UL, corria o dia 29 de Novembro de 1957, uma palestra intitulada Trajos oficiais e sociais dos médicos[5], iniciativa apoiada numa exposição iconográfica. Elogiando o caso da UC e de outras universidades históricas ocidentais frequentadas pelos cientistas portugueses, Sacadura Costa lamentava o esquecimento do grande uniforme napoleónico e a ausência de contextos cerimoniais na UL.
A crítica deste idoso médico, diplomado pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, parece deixar antever algum mal-estar resultante da diferenciação identitária entre a Faculdade de Direito (que usava traje e insígnias conforme a tradição coimbrã) e a “Nobreza do Professorado de Medicina” que se mantinha fiel à herança das Escolas Médico-Cirúrgicas de forja oitocentista.
Numa atitude de distanciamento face aos horizontes político-militares dos historiadores activos nas universidades de Lisboa e Coimbra, António Henrique Rodrigo de Oliveira Marques (1933-2007) explorou as potencialidades do vestuário enquanto objecto de estudo. Assim, no mesmo ano em que Oliveira Marques publica “Efemérides para o estudo do vestuário nos séculos XII e XV” (Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, 1959), Maria Otília Simões Martins apresenta à Faculdade de Letras da UL uma dissertação de licenciatura intitulada Elementos para o estudo do vestuário nos séculos XIII, XIV e XV. Em 1963 Oliveira Marques dava a lume o livro de história quotidiana A sociedade medieval portuguesa, com um expressivo e muito completo capítulo sobre “O Traje”, cuja leitura crítica esteve a cargo de Maria José Mendonça (A sociedade medieval portuguesa, 5ª edição, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1987).
A década de sessenta parecia abrir as portas à consagração dos estudos sobre a indumentária em Portugal, merecendo referência trabalhos assinados por Ernesto Soares (“Trajos e costumes dos séculos XIV, XV e XVI”, Dicionário de iconografia portuguesa, Lisboa, 1960), Maria Natália Brito Correia Guedes (Organização de um Museu de Indumentária. Dissertação apresentada ao Curso de Conservador de Museu, Lisboa, 1969), e Fernanda Espinosa (Escritos históricos, Porto, Porto Editora, 1972).
Apesar de Oliveira Marques ter continuado a incluir a indumentária nas suas histórias de Portugal[6], e de em 1977 ter ocorrido a fundação do Museu Nacional do Traje e da Moda[7], não se pode dizer que os meios académicos portugueses concederam abrir portas ao tema. Trabalhos ulteriores de merecimento assinados por João Afonso (O trajo nos Açores, Angra do Heroísmo, SRAS, 1987), e Maria José Palla (Do essencial e do supérfluo. Estudo lexical do traje e adornos em Gil Vicente, Lisboa, Editorial Estampa, 1992), não parecem ter alterado as inércias existentes. Serão excepção a este cenário, nos anos oitenta e noventa do século XX, os trabalhos de apoio do Prof. António Camões Gouveia à reconstituição da Embaixada do Rei D. Manuel I ao Papa Leão X[8], os estudos sociológicos de Nuno Luís Madureira na FCSH/UNL (Lisboa. Luxo e distinção. 1750-1830, Lisboa, Editorial Fragmentos, 1990), ou o trabalho desenvolvido no Ministério da Educação por Fernando José Cunha de Oliveira (O vestuário português ao tempo da expansão. Séculos XV e XVI, Lisboa, EME, 1993).
A distracção dos historiadores foi comum aos sociológos e psicólogos, se considerarmos a falta de recepção a propostas assinadas por Umberto Eco e outros (Psicologia do vestir, 1ª edição, Lisboa, Assírio e Alvim, 1975), Daniel Roche (La culture des apparences. Une histoire du vêtement en France, Paris, Fayard, 1989), ou Gille Lipovetsky (O império do efémero. A moda e o seu destino nas sociedades modernas, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989).
A ausência de sensibilidade apontada não é corroborada pela comunidade académica de países como a Espanha, a França, o Brasil[9] e a Grã-Bretanha, onde a história da moda, das indumentárias populares regionais, das vestes profissionais, das insígnias e do protocolo, são alvo de estudos frequentes, consistentes e prestigiados.
O enfoque de alguns historiadores portugueses na moda e cerimoniais da Época Moderna como que tem ajudado a sedimentar uma visão distorcida da realidade, na medida em que a um Ancient Régime rico em indumentária e cerimonial teria sucedido um ambiente pós Revolução de 1789 e Revoluções Liberais sem fardas nem cerimonial, o que não corresponde de todo à realidade portuguesa oitocentista. Os sistemas culturais característicos da cultura de palco, cultura de salão, cultura de animação urbana, cultura de palácio e cultura de catedral permaneceram, adaptaram-se a novas realidades e algumas aprenderam mesmo a viver sob a ameaça do abolicionismo. Dizer que a cultura palaciana era elitista, exibicionista e luxuosa, sendo verdade, é sobretudo um preconceito burguês alimentado por um sistema político, cultural e ideológico cujas vulnerabilidades e contradições seriam severamente postas a nu pelos vários movimentos contraculturais juvenis e estudantis simbolizados pelo Mai 68.
Espanha ocupa lugar de destaque na produção de estudos sobre o protocolo municipal, protocolo universitário, vestes e insígnias académicas. Em 1996 foi criada a Asociación para el Estúdio y la Investigación del Protocolo Universitario, que além de emitir recomendações, dinamiza grupos de trabalho, promove encontros inter-universitários desde 1996, e edita regularmente em formato digital as actas das comunicações[10]. No conspecto das produções disponibilizadas nos últimos anos destacam-se, de Francisco Galino Nieto, Del protocolo y ceremonial universitário y complutense, Madrid, Editorial Complutense, 1999, e de Juan Luís pólo Rodriguez e Jerónimo Hernández de Castro, Cerimonias y grados en la Universidad de Salamanca. Una aproximación al protocolo académico, Salamanca, Ediciones Universidad Salamanca, 2004.

Reflectindo sobre as potencialidades da moda e da história do vestuário na era do pós-abolicionismo, da globalização das colecções do pronto-a-vestir e do império das marcas, Arianna Giorgi propõe uma indagação apta a superar as teorias clássicas que colocaram o vestuário fora das fronteiras da produção artística ou proclamaram sucessivamente a sua desnecessidade em função de visões que consideram a indumentária um produto cultural tido por aparentemente supérfluo ou incómodo:

Rescatada de su sociológico exílio, la indumentaria se perfila como herramienta de trabajo y como una sistemática vertiente cultural que, indispensable para la divulgación cotidiana de la identidad humana, representa un ingente testemonio estilístico, perpetuando su atractiva y estética historia creativa[11].

Em Espanha, Brasil e Bélgica foram criadas especializações académicas e pós-graduações em cerimonial e protocolo. O tema, que nunca perdeu acuidade nos meios políticos, diplomáticos, militares e religiosos, ganha novo fulgor nos currículos de formação de gestores e organizadores de eventos empresariais, onde o domínio do protocolo é visto como estratégia comunicacional. Na Grã-Bretanha, o estudo do cerimonial mantém-se vicejante, situação atestada por monografias de grande envergadura publicadas nos séculos XIX e XX[12]. Em 2000 surgiu em Londres uma instituição expressamente vocacionada para o estudo comparado das vestes e insígnias universitárias, The Burgon Society, que disponibiliza copiosa informação iconográfica e histórica, bem como bibliografia especializada[13].
Por tudo quanto foi dito, não surpreende que o hábito talar e as insígnias da Universidade de Coimbra (UC)[14] não tenham originado estudos monográficos, num país onde apenas se tem vindo a prestar atenção à confecção artesanal da casaca de toureiro e ao “traje português de equitação”[15].
As insígnias doutorais conimbricenses, obra artesanal rara e original cujo fabrico local se perdeu, nunca foram satisfatoriamente estudadas. Não se conhece qualquer levantamento iconográfico e nenhum especialista procedeu a uma descrição satisfatória do modo de confecção, dos padrões de tecidos empregues, da ornamentação, dos pontos usados pelas bordadeiras locais, da designação de cada uma das peças bordadas ou forradas a fio de seda ou mesmo do seu feitio. Afinal quantos nós se dão para fazer uma aselha? Quantos volteios faz a agulha para revestir uma mandorla? Como se corta e afeiçoa a cartolina do barrete? Como se talha, reveste e atarraxa a pega à copa do barrete?

No monumental catálogo de Alberto Correia, Portugal. Artesanato da Região Centro, Coimbra, Edição do Instituto do Emprego e Formação Profissional/Delegação Regional do Centro, 1992, a arte citadina da confecção da borla e capelo não é mencionada, apesar de nesta data ainda se manter em actividade a última bordadeira que sabia confeccionar as insígnias doutorais, Leocádia Machado[16]. Relativamente a Coimbra, apenas são indicados os panos tradicionais do Almalaguês. Quanto a trabalhos de luxo, com utilização de fio de seda natural, o destaque na obra referida vai para o bordado de Castelo Branco, na Beira Baixa.
A inércia que rodeia o estudo, reconhecimento da originalidade e valor patrimonial das insígnias doutorais conimbricenses, e os silêncios em torno da sua descrição/caracterização e modo de confecção suscitam perplexidade, pois em campos contíguos são vários os trabalhos dados à estampa em Portugal. Recorde-se, sem preocupação de exaustividade, o monumental projecto coordenado por Carlos Laranjo Medeiros, com texto de António Teixeira de Sousa, Bordados e rendas nos bragais de Entre Douro e Minho, Edição Programa de Artes e Ofícios Tradicionais, 1994; de Clara Vaz Pinto, Colchas de Castelo Branco, Instituto Português de Museus, 1993; de F. Baptista de Oliveira, História e técnica dos Tapetes de Arraiolos, 1983[17]; ou de Leandro Jardim, O bordado da Madeira na história e quotidiano do Arquipélago, 1996.
Diversos saberes tradicionais, pouco conhecidos, ou ameaçados de extinção, têm suscitado estudos dignos de realce, servindo de exemplo os trabalhos de Ernesto Veiga de Oliveira, Instrumentos populares portugueses, Lisboa, Fundação Caloust Gulbenkian, 1964[18], Estêvão Carrasco e Alberto Peres, Barcos do Tejo, Lisboa, Edições INAPA, 1997, Sven Stapf, Faiança Portuguesa. Faiança de Estremoz, 1997, Priscila Cardoso, Filigrana portuguesa, Porto, Lello Editores, 1998, Teresa Perdigão, Tesouros do artesanato português, Lisboa, Verbo, 2001, José Alberto Sardinha, Viola Campaniça. O outro Alentejo, Vila Verde, Tradisom, 2001[19], ou mesmo o catálogo 50 anos de tapeçaria em Portugal. Manufactura de Tapeçarias de Portalegre. 26 de Setembro 1996. 16 de Dezembro, Lisboa, 1996.
E no âmbito do projecto “Porto. Capital Europeia da Cultura 2001”, de uma série de dez estudos temáticos, pelo menos dois versaram assuntos da cultura imaterial/patrimonial: François Guichard, Rótulos e cartazes no Vinho do Porto, Lisboa, Edições INAPA, 2001, e Hélio Loureiro, Gastronomia Portuense, Lisboa, Edições INAPA, 2001.

Na Coimbra dos anos que se seguiram ao Maio de 1968/Crise Académica de 1969 e Revolução de 25 de Abril de 1974 o legado da Aufklarung burguesa ditou acções separadas e ambíguas de revitalização das tradições universitárias.
De uma lado da barricada a Casa Reitoral, do outro a Academia estudantil. Na impossibilidade de se pensar o património universitário simbólico e imaterial como um sistema integrado, capaz de reflectir as especificidades do corpo docente, corpo discente e funcionários, em estreita articulação com o tecido urbano e seus habitantes, os movimentos de revitalização estudantis não dialogaram nem concertaram quaisquer estratégias com o Senado ou com a Casa Reitoral. O corpo com menor afirmação simbólica tem sido o dos funcionários, herdeiro do capital simbólico dos antigos oficiais maiores e menores, que em 1984 fundou a Casa do Pessoal da UC. E contudo, os funcionários da UC possuíam insígnias e uniforme de trabalho e de gala, não se compreendendo o seu não uso em cerimónias de tomada de posse dos titulares de determinados cargos, ou a não participação de dirigentes de cargos intermédios e superiores como vice-director do AUC, da IUC, da BGUC, do administrador, do vice-presidente dos serviços de acção social escolar no cerimonial universitário. Esta exclusão configura uma má herança do período do Estado Novo, bem ao arrepio do disposto nos chamados Estatutos Velhos[20]. Eis uma fractura que se mantém desde a Revolução Republicana de 1910, cuja chave de leitura radica num século XIX encapelado de relações difíceis.
No após 1976, diversas perversidades das tradições e praxes estudantis, sedimentadas durante o liberalismo clássico e o Estado Novo, vieram de novo à tona das vivências juvenis, convocando o retorno de tiques burgueses requentados como a velha separação dos sexos e o culto da visão linear do tempo histórico. O peso da memória vivencial dos antigos estudantes do sexo masculino matriculados entre as décadas de 1930-1950 revelar-se-ia esmagador na construção do movimento restauracionista pós-1974, impondo uma visão monocultural e anacrónica do passado re-inventado.
Na Coimbra académica das décadas de 1970-1980 praticava-se uma estranha guerra das trincheiras entre as sensibilidades adeptas do retorno das tradições (retorno com adaptações; retorno puro e duro a partir das interrupções de 1969) e as forças defensoras do abolicionismo integral pacífico e do abolicionismo assente na acção violenta.
Percorridos dois séculos de Aufklarung burguesa[21], torna-se mais claro o quanto as estratégias de aniquilação da identidade do adversário[22], o desprezo visando diminuir ou desmoralizar o outro, foram valores que apesar de não assumidos explicitamente fascinaram os arautos mais radicais dos discursos revolucionários e anarquistas.
Do outro lado da barricada, a hoste dos adeptos dos paradigmas tradicionalistas acobertava inúmeras sensibilidades sem que as facções mais radicais se assumissem como reaccionárias[23]. Por seu turno, o pelotão auto-concebido como vanguardista e modernista não abdicava dos vários mitos ancorados em filosofias da história[24] e em paradigmas neotribais pósmodernos[25]. Ambas as facções se espiavam, insultavam e agrediam, numa guerra-fria que se arrastou penosamente até finais da década de 1980.
O embate dos últimos grandes paradigmas ideológicos ocorreu em Coimbra, num plano meramente teórico e idealístico, no embalo de uma cronologia retardada, quando o mundo ocidental estugava o passo em direcção ao fim da Guerra-Fria. Mas os “mundos” discutidos acaloradamente nas teóricas tertúlias coimbrãs não reflectiam um aprofundado conhecimento da realidade das ditaduras ou das democracias, nem sequer do Portugal profundo nas suas idiossincrasias e falares[26].
Juntemos a tudo isto um traço comportamental característico das vivências e representações das elites docentes e discentes coimbrãs, o hipercriticismo autofágico que frequentemente redunda na depreciação de projectos e no não reconhecimento de valor aos bens e agentes culturais, atitude que tem valido à Alma Mater Conimbrigensis o apodo de “madrasta”[27]. Os exemplos não faltam. Subaproveitado, o Museu Académico de Coimbra arrastou-se penosamente nesses anos, quando possuía um acervo único no Ocidente desde 1951. Um quarto de século mais tarde viria a ser ofuscado por projectos mais dinâmicos como o Museo Europeo degli Studenti (Bolonha: 2004)[28] e o Museo Internacional del Estudiante (Salamanca: 2008)[29]. Noutro registo, os trabalhos de pesquisa sobre os costumes estudantis, acumulados pelo Dr. António José Soares desde a década de 1940, poderiam ter originado projectos museológicos, bem como iniciativas e publicações de grande envergadura, mas as potencialidades deste antigo estudante não foram minimanente aproveitadas[30].
Para aquilo que nos importa, e recentrando o caudal do discurso no seu leito, o peso da Aufklarung era ainda determinante em Coimbra na escolha dos temas de investigação que os titulares das cadeiras das áreas de História, Sociologia, Psicologia Educacional e Antropologia propunham para investigação nas décadas de 1980-1990. Eram não “temas” de investigação nesses anos o traje académico, as festividades académicas, a Canção de Coimbra e as serenatas, o cerimonial universitário ou os casos de sucesso polarizados em torno da ocupação dos tempos livres estudantis. Relegados para a gaveta das “coisas de estudantes”, ou das “curiosidades”, quando muito teriam lugar no âmbito da literatura memorialística ou da etnografia[31]. A história oral, em processo de afirmação em instituições como a Columbia University, era tida por inadmissível.
Importantes publicações singulares e colectivas levadas a cabo nesses anos traduzem a inércia e o desconhecimento dos docentes da UC, da Casa Reitoral e dos institutos científicos das várias Faculdades perante a importância e potencialidades do património multissecular gerado pela instituição. Curiosamente, ninguém se sentia ridículo ou reaccionário a estudar lesmas, caracoletas, borboletas, algas, musgos ou lascas de pedra.
O Congresso de História da Universidade, realizado em Março de 1990 a propósito do 7º Centenário da fundação, originou cinco tomos de actas publicadas em 1991 sob o título Universidade(s). História. Memória. Perspectivas. Só o tomo três apresenta uma rubrica intitulada “Quotidiano e sociabilidade estudantil na Cidade Universitária”. Das doze comunicações transcritas, apenas uma aflora em concreto questões como a origem e evolução do hábito talar e insígnias doutorais, assunto ilustrado por alguma iconografia de apoio[32].
Por seu turno, a prestigiada Revista de História das Ideias, editada pelo Instituto de História das Ideias da Faculdade de Letras, dedicou os números 8 e 9, de 1986-1987, à temática O sagrado e o profano, o número 12, de 1990, ao tema Universidade, e o número 15, de 1993, aos Rituais e Cerimónias, com total omissão de artigos sobre as insígnias doutorais e cerimonial académico que traduzissem as últimas orientações ventiladas pela Unesco em termos de salvaguarda do património cultural[33].

Nas décadas de 1980-1990 as tradições, trajes, insígnias e cerimonial da UC gozavam de enorme prestígio na UP, na UL[34], nas jovens universidades portuguesas públicas e privadas em processo de afirmação e na maior parte das universidades brasileiras. Muitos dos institutos superiores politécnicos portugueses criados nas décadas de 1970-1980 tinham os olhos postos nas tradições da UC, tendo desencadeado processos de imitação/apropriação da festa da Queima das Fitas, das serenatas, da capa e batina, da pasta e das fitas, das cartolas de fantasia, dos anéis de curso, e transposições quase literais do “código da praxe de 1957”.
No espectro dos pedidos de informação à UC figuravam ainda solicitações de apoio técnico sobre a história e evolução do hábito talar discente para efeitos de realização de séries televisivas que integravam aspectos da vida académica. No mesmo período, nas universidades históricas italianas e espanholas lamentava-se a perda do cerimonial medieval, citando-se Coimbra como um caso único no contexto europeu continental.
As solicitações de colaboração à Casa Reitoral por parte de instituições portuguesas e brasileiras eram em número avultado, não se compreendendo a atitude de inércia investigativa patenteada pelos docentes da instituição, quando se encontravam em situação privilegiada para praticar e incentivar estudos sobre as temáticas afins[35].
Na matéria que nos ocupa, a diferença de atitudes entre a Casa Reitoral de Coimbra e a Reitoria da Universidade do Minho não podia ser mais flagrante. A um uso irresponsável ou amadorístico do património cultural, típico de Coimbra, opõe a Universidade do Minho uma atitude consciente apostada numa construção identitária integrada. Apesar de não ter conseguido resolver as crispações entre o projecto bracarense em construção e os adeptos das antigas festividades nicolinas de Guimarães, a ofensiva cultural intentada pela Universidade do Minho na década de 1990 cifra-se em resultados bastante positivos testemunhados por Henrique Barreto Nunes/Maria Helena Laranjeiro da Cunha/Nuno Pinto Bastos (coordenação), Tradições académicas de Braga, Braga, Associação Académica da Universidade do Minho, 2001, e Albertino Gonçalves, O sentido da comunidade num mundo às avessas: o imaginário grotesco nas tradições académicas de Braga, Braga, Biblioteca Pública de Braga, 2001.

No nº 15, de 1993, da Revista de História das Ideias editou Luís Reis Torgal, docente ligado ao Instituto de História das Ideias, um longo escorço intitulado “Quid petis? Os “doutoramentos na Universidade de Coimbra”, que na esteira da Aufklarung e da chamada “guerra dos lentes”[36] interpelava a legitimidade das cerimónias e insígnias, bem como a acuidade e preço das insígnias doutorais[37]. Contrariamente ao que se ofereça inferir de uma leitura apressada deste artigo, Luís Reis Torgal não enfileirava pelas visões abolicionistas clássicas. Propunha a produção de reflexões que conduzissem à simplificação de alguns aspectos do cerimonial, criticava veementemente os elevados preços praticados pela casa de confecção portuense que na altura confeccionava as insígnias doutorais em exclusividade e instava os Serviços Sociais da UC a abrirem uma oficina de manufactura de trajes e insígnias a preços mais compatíveis[38]. Enquanto não fosse implementada a oficina, recomendava-se que o Conselho Directivo de cada Faculdade encomendasse um conjunto de insígnias doutorais para uso gratuito em situações protocolares. Os esforços desenvolvidos em 1992 com vista ao lançamento de um primeiro curso de confecção de insígnias doutorais fracassaram em toda a linha, em grande parte devido à recusa da mestra bordadeira em trabalhar com matérias-primas de menor qualidade. Que projectos desta natureza eram sustentáveis viria a prová-lo a Universidade da Beira Interior ao criar na Covilhã uma oficina de manufactura de trajes docentes e insígnias[39].
O crescente desfazamento entre o legado anacrónico de uma Aufklarung tardo-burguesa à moda de Coimbra e a mudança de paradigmas culturais no mundo ocidental parece justificar o mutismo da UC perante as responsabilidades que a instituição partilhou com o Estado Novo em termos de destruição da Alta para construção da nova cidade universitária[40]. Nos anos que se seguem a 1974, a UC não funda um centro de história oral visando a recolha dos testemunhos de vida e registo do património imaterial das comunidades compulsivamente desalojadas, como não participa oficialmente em iniciativas de grande vulto como o A Velha Alta desaparecida. Álbum comemorativo das Bodas de Prata da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, Coimbra, Almedina, 1984[41].
Quanto ao 1º Encontro sobre a Alta de Coimbra. Coimbra, 23, 24, 25 e 28 de Outubro de 1987 (Alta de Coimbra. História, arte, tradição. Actas, Coimbra, GAAC, 1988), da iniciativa do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, a Casa Reitoral limita-se a uma comunicação lacónica, intitulada “A Universidade de Coimbra e a Alta. Presente e futuro”, onde não assume qualquer responsabilidade moral face à demolição da Alta, nem apresenta projectos de abertura da instituição à cidade ou de revitalização de patrimónios destruídos ou em perigo.
E contudo, a amnésia da UC perante a demolição do Bairro Latino[42], a deportação forçada das comunidades populares para bairros periféricos, a inevitável extinção de vivências orais como os arraiais de São João Baptista ou o desaparecimento das oficinas de passamanaria que confeccionavam artesanalmente as insígnias doutorais, levam-nos a questionar se teria sido necessário esperar pela edificação de uma consciência preservacionista escorada em iniciativas Unesco como a conferência de Washington “Avaliação mundial da recomendação de 1989 sobre a salvaguarda da cultura tradicional popular, participação e cooperação internacional” (1999), ou a “Convenção para a salvaguarda do património cultural” (2003/2006)?
A legislação novecentista portuguesa, assente numa visão estritamente monumentalista de certas tipologias de património edificado não ajudou. Mas quem estivesse atento, teria notado em 1972 a “Convenção para a protecção do património mundial, cultural e natural”, a proposta de protocolo avançado pela Bolívia sobre a necessidade de proteger o folclore (1973), a criação do “Comité de Especialistas para a salvaguarda do folclore” (1982), a “Recomendação da Unesco para a salvaguarda da cultura tradicional e popular” (1989), e o programa “Tesouros humanos vivos” (1994)[43].
Se plenamente aproveitada, a candidatura do Paço das Escolas e espaços envolventes a património imaterial da Unesco poderá constituir um momento charneira para a revitalização da confecção das insígnias doutorais, reforma e actualização do património vestimentário, criação de objectos de prestígio associados à identidade visual e relançamento de momentos cerimoniais como a formatura e os actos de mestrado.
REFERÊNCIAS
[1] Na sequência dos contactos com o MBM, a Dra. Paula Lamego propôs em inícios do Outubro de 2008 à CMVNF a afectação de verba para o restauro das insígnias e reprodução das peças do hábito talar.
[2] Referência formulada a partir do habitus cultural de instituições como a Universidade Clássica de Lisboa, a Universidade de Coimbra e a Universidade do Porto. Em Lisboa, o ISLA começou a ministrar um curso de “imagem, protocolo e organização de eventos”, nos inícios da 1ª década do século XXI, que em Março de 2009 entrou na 16ª edição. Informação presente no sítio http://www.isla.pt/isla/PosGraduacoes/ImagemProtocoloOrganizacaoEventos/25k. O plano de estudos, muito centrado na realidade empresarial e hoteleira, incluía no Módulo III a abordagem do protocolo diplomático, municipal, militar, religioso e universitário (6 horas). Uma das responsáveis, Isabel Amaral, esteve ligada ao lançamento da Associação Portuguesa de Estudos de Protocolo, fundada em 2005. Cf. http://www.apep-protocolo.com/.
Armando Luís de Carvalho Homem, docente história medieval na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, dedicou uma monografia aos trajes dos professores universitários portugueses: O Traje dos Lentes, Porto, FLUP e-dita, 2007, obra que contém alguns comentários sobre o protocolo na UP ao longo do século XX. À inércia dos investigadores da Época Contemporânea opõe-se trabalhos centrados no Antigo Regime, nomeadamente os assinados por Ana Maria Alves, Pedro de Almeida Cardim (FCSH-UNL) e José Pedro Paiva (FLUC). De referir as actas do encontro realizado em Coimbra entre 25-27 de Maio de 2001, com o título Religious Ceremonials and images. Power and social meaning (1400-1750), Coimbra, 2002 (recepção crítica por David Felismino, PENÉLOPE, Nº 27, 2002, pp. 161-181, disponível em
http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_27/27_10_leituras.pdf), o conjunto de comunicações enviadas à Revista de História das Ideias, nº 15, de 1993, cujo tema agregador foi Rituais e Cerimónias, ou a incursão de Maria G. Parani, Reconstructing the reality of images. Byzantine material culture and religious iconography (11th-15th centuries), Washington, 2003, acessível em http://books.gogle.pt/, (9.06.2009).
[3] A influência da Aufklarung burguesa no pensamento dos historiadores da Época Contemporânea continua a fazer inteligir a ostentação e os cerimoniais como meros actos de exibicionismo, e como tal desnecessários e até reprováveis. É o que parece acontecer em parte com Irene Flunser Pimentel in Cardeal Cerejeira. Fotobiografias do século XX, Lisboa, Temas & Debates, 2008. Não tem sido este o entendimento da questão nas Forças Armadas, onde os estudos relativos aos fardamentos, condecorações e insígnias ocupam um importante espaço. Veja-se, a título de exemplo, Pedro Soares Branco, Os uniformes portugueses na Guerra Peninsular, Lisboa, Tribuna, 2008.
[4] Em finais do século XX, os trajes populares mereceram alguma antenção por parte de disciplinas de Sociologia da Moda. No final da década de 1980, estilistas como Nuno Gama reintegravam na moda sazonal elementos etnográficos. Dados em Cristina Duarte, Trajes regionais. Gosto popular, cores e formas, 2007, pp. 163 e 167. No ano lectivo de 2007/2008, o Departamento de Ciências e Técnicas do Património da FLUP oferecia uma cadeira de História do Traje, a cargo de Manuel Augusto Lima Antunes.
[5] Publicada no jornal O Médico, nº 331, 1958, pp. 63-70.
[6] Ou mesmo em monografias, como aconteceu com a notável incursão às vestes cerimoniais e insígnias maçónicas. Cf. António de Oliveira Marques, Figurinos maçónicos oitocentistas. Um guia de 1841-42, Lisboa, Editorial Estampa, 1983.
[7] Informação adicional no respectivo sítio web, http://www.museudotraje-ip-museus.pt/.
[8] Terá sido o primeiro grande cortejo histórico-alegórico realizado em Portugal após o Cortejo Histórico da Tomada de Lisboa aos Mouros em 1147, encenado e recriado pelo cineasta Leitão de Barros em 1947. Inspirado nos filmes históricos de Holywood, este cortejo misturava fantasia com realidade, propondo vestes e adereços nem sempre escorados no conhecimento das épocas retratadas. A encenação exibida na Expo Sevilha de 1992 era mais sólida do que a de 1947, tendo sido apresentada em Lisboa algum tempo antes (guarda-roupa recriado por uma equipa de estilistas do Parque Mayer).
[9] A título meramente exemplificativo, Maria do Carmo Teixeira Rainho, A cidade e a moda, Brasília, Universidade de Brasília, 2002; Gilda de Mello e Sousa, O espírito das roupas. A moda no século XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 2005; Camila Borges da Silva, A indumentária como linguagem. Cultura política no Rio de Janeiro (1808-1821), http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1211929416_ARQUIVO_Aindumentariacomolinguagem-culturapoliticanoRiodeJaneiro.pdf (8.09.2009), Rosane Feijão de Toledo Camargo, A moda e a cidade na reforma de Pereira Passos. Modernidade, velocidade, visibilidade e controle na Belle Époque Carioca, http://www.intercom.org/br/papers/regionais/sudeste2008/resumos/R9-0256-1.pdf (8.06.2009), Jocélio Teles dos Santos, Incorrigíveis, afeminados, desenfreiados. Indumentária e travestismo na Bahia do século XIX, Revista de Antropologia, São Paulo, Volume 40, http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex&pi=S0034-77011997000200005 (8.06.2009).
[10] Mais informação no sítio http://www.protocolouniversitario.ua.es/associacion.jsp.
[11] Arianna Giorgi (Universidad de Murcia), «Artísticamente Moda», in Revista Electrónica de Estudios Filológicos, p. 5, disponível em http://www.um.es/tonosdigital/znum12/secciones/Moda.htm (consultado em 13.04.2009). E mais adiante, na p. 21, “Desafortunadamente, prescindiendo de una histórica aceptación de intelectuales y literatos hasta los años ochenta del siglo XX, la moda se vio apartada de los tratados y de los estúdios del património cultural, por su cariz frívolo y su asociación com la vanidad (…)”.
[12] Podendo destacar-se trabalhos levados a cabo por Daniel John Cunningham, The evolution of the graduation ceremony, Edinburgh, 1904, Joseph Wells, The Oxford degree ceremony, Oxford, The Clarendon Press, 1906, e W. Hargreaves-Mawdsley, A history of academical dress in Europe until the end of the eighteenth century, Oxford, At the Clarendon Press, 1963.
[13] Historial e links no sítio http://www.burgon.org.uk/.
[14] Instituição designada doravante pelas unciais UC.
[15] Título de uma obra bem documentada e ricamente ilustrada, da autoria de Lina Gorjão Clara e João Gorjão Clara, que se encontra esgotada, e que está na origem de projectos culturais de divulgação, salvaguarda e recuperação deste tipo de indumentária. O referido traje, nas suas versões masculina e feminina, viria também a ser adoptado pelos alunos da Escola Superior Agrária de Santarém.
[16] A omissão é fruto de desconhecimento. Também não se cita em parte alguma deste importante catálogo o trabalho de recuperação da viola toeira e da guitarra de Coimbra que estava a ser desenvolvido em oficinas locais.
[17] A necessidade de protecção do ponto de Arraiolos chegou a motivar a apresentação, na Assembleia da República, do Projecto de Lei nº 444/VIII, de 16 de Maio de 2001.
[18] Clássico reeditado em 1982, 1986 e 2000, sempre com enorme procura. O trabalho de Veiga de Oliveira tem alimentado notáveis projectos de reconstituição e registo de fontes sonoras, experiências ligadas à construção e ensino de instrumentos musicais tradicionais.
[19] Os trabalhos deste autor abriram a porta a projectos de construção e ensino da viola tradicional alentejana, então em risco de desaparecimento.
[20] Situação observada ao longo das décadas de 1980-1990, correspondendo ao reitorado de Rui de Alarcão, ao que parece transversal aos reitorados ulteriores. Exemplificando, na tomada de posse do Reitor Fernando Seabra Santos, realizada no dia 28.02.2007, encontravam-se junto à porta fundeira da Sala dos Actos Grandes o vice-presidente dos Serviços de Acção Social Escolar, e algumas assistentes sociais do quadro da instituição, sem traje, sem insígnias, e sem integração na cerimónia. Centremo-nos apenas em fotografias de 1993 relativas ao doutoramento honoris causa de Gladstone Chaves de Melo e Vergílio Ferreira, e de 2001 relativas ao honoris causa de Fernando Aguiar-Branco. Nas duas obras editadas pela Fundação Eng. António de Almeida, o cerimonial enfoca erroneamente apenas os bedéis e o guarda-mor, sendo bem visível a degradação do uniforme de gala e a irrupção de um conjunto de barbarismos como fato masculino azul-escuro, sapatos vulgares, calças compridas, meias cor de pele, gravatas pretas e ausência de luvas.
[21] Tema aprofundado nos ensaios de Hans Mayer, Les marginaux. Femmes, juifs et homosexuels dans la litérature européene, Paris, Albin Michel, 1994 (original alemão de 1975).
[22] Acompanhem-se algumas reflexões sobre a dimensão purgatória da iconoclastia em Françoise Chaudenson, À qui appartien l’oeuvre d’art?, Paris Armand Colin, 2007, pp. 99-108. Para uma visão sociológica mais clássica, siga-se Michel Vovelle, A mentalidade revolucionária. Sociedade e mentalidades na Revolução Francesa, Lisboa, Edições Salamandra, 1987. Quanto aos prolegómenos da visão contra-revolucionária, atente-se nas propostas de Robert Nisbet, O conservadorismo, Lisboa, Editorial Estampa, 1987.
[23] Para um enquadramento da ideologia conservadora, vide Robert Nisbet, O conservadorismo, Lisboa, Editorial Estampa, 1987.
[24] Tema problematizado por Fernando Catroga, Caminhos do fim da história, Coimbra, Quarteto Editora, 2003.
[25] Assunto escalpelizado no âmbito da sociologia compreensiva pósmoderna pelo sociólogo francês Michel Maffesoli em obras como L’Ombre de Dyonisos. Contribuition a une sociologie de l’orgie, Paris, Librarie des Méridiens, 1985, Du nomadisme. Vagabondages initiatiques, Paris, Librarie Générale Française, 1997, O eterno instante. O retorno do trágico nas sociedades pós-modernas, Lisboa, Instituto Jean-Piaget, 2001.
[26] Oriundo do imaginário académico convencional, em meados da década de 1950 o estudante-trabalhador José Afonso dava-se conta do profundo distanciamento entre o elitismo teórico coimbrão e a dura realidade regional da maior parte da população portuguesa. Debatendo a questão no âmbito do casamento burguês e dos fanatismos ideológicos, António Alçada Baptista propõe uma leitura semelhante. Cf. O tecido do Outono, 5ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 2000, p. 32.
[27] Como que a corroborar a frase de Pierre Vergniaud, “A revolução é como Cronos. Ela devora os seus próprios filhos”, importaria averiguar até que ponto o terrorismo verbal conimbricense não consubstancia uma forma de provincianismo não explicitamente assumido. A sobrecarga retórica niilista é cultivada tanto pelos habitantes de Coimbra que sistematicamente criticam a “macrocefalia” da UC, como pelas elites docentes e estudantis. Num registo comparativo, este tipo de atitudes é tido por inadmissível pelas elites activas na cidade do Porto. Boaventura de Sousa Santos, da Faculdade de Economia da UC, questionou o desencantamento e a falta de auto-estima das elites coimbrãs numa crónica publicada em 2001 com o título “A morte de Coimbra”, ulteriormente inserta na obra A cor do tempo quando foge. Crónicas. 1985-2000, Porto, Afrontamento, 2001. O assunto é também aflorado (sem que dele se extraiam todas as consequências filosóficas) por Aníbal Frias e Paulo Peixoto no texto Representação imaginária da cidade. Processos de racionalização e de estetização do património urbano de Coimbra, 2001, disponível em http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/183/183pdf (consultado em 13.04.2009).
[28] Alojado no sítio web da Universidade de Bolonha desde 2004, dados disponíveis em http://www.archiviostorico.unibo.it/museostud/default.asp?IDFolder=140&LN=IT.
[29] Fundado por Roberto Martinez del Rio em 11 de Março de 2008, um ano mais tarde tinha recebido milhares de visitantes virtuais de todo o mundo. Infomações e acervo no sítio http://www.museodelestudante.com/.
[30] AMN, António José Soares (1916-2002). Notas sobre um estudioso…, editado no Blog Guitarra de Coimbra I, de 24.04.2005, http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2005/047perfil-biogrfico-do-dr.html.
[31] A assunção oficial do potencial contido no património simbólico da UC só viria a acontecer pela primeira vez em plena crise de matrículas e de financiamento do ensino superior, no reitorado de Fernando Seabra Santos. Este prelado foi eleito para um primeiro mandato em 20.01.2003, seguindo-se a investidura no dia 12.02.2003. Cumpriria um segundo mandato, com eleição em 15.01.2007 e posse no dia 28.02.2007. É no decurso do primeiro reitorado que começam a surgir no sítio web da UC e na imprensa periódica portuguesa mensagens culturais valorativas da multissecularidade da instituição, dos trajes, actividades extracurriculares distintivas, festividades e rituais. Fernando Seabra Santos é assim o primeiro reitor a adoptar uma gestão integrada do património cultural universitário, distanciando-se da visão muito pobre e incipiente que após 1910 tinha centrado as atenções na revitalização dos doutoramentos. A esta viragem não será totalmente alheia a formação “etnográfica” colhida pelo Reitor nos anos em que foi membro do Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra?
[32] AMN, “Subsídio para o estudo genético-evolutivo do Hábito Talar na Universidade de Coimbra”, in Universidade(s)… Actas 3, Coimbra, 1991, pp. 399-419.
[33] Junte-se à bibliografia citada o artigo de Boaventura Sousa Santos, “Coimbra: prioridade à cultura. Condições e meios da produção cultural. Teses para uma universidade pautada pela ciência pós-moderna”, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 27/28, Junho de 1991, pp. 50-59. No final do artigo/ensaio, o autor alude à necessidade de reencantamento da instituição, não mencionando os contributos e desafios lançados pela Unesco em termos de salvaguarda do património e sua reutilização. Excluindo a promoção de doutoramentos honoris causa, solução que menos desafios patrimoniais mobiliza, a Faculdade de Economia não promoveu nas décadas de 1980/1990 estudos no âmbito da divulgação/salvaguarda do património oral e imaterial da UC.
[34] Em Lisboa, ao longo do século XX, predominaria junto do professorado e dos estudantes de direita e de esquerda uma visão cliché do estudante de Coimbra como um filho-família endinheirado, reaccionário, provinciano, elitista, ocioso e inimputável. Após 1974 a maior parte das instituições lisboetas de ensino superior seguiria o fenómeno nacional de imitação e apropriação das tradições académicas conimbricenses, num período de massificação do ensino superior marcado pela ascensão dos filhos do campesinato, emigrantes e pequena burguesia.
[35] Para a compreensão das atitudes referidas, sigam-se os contributos de Allan Bloom, A cultura inculta. Ensaio sobre o declínio da cultura geral. De como a educação superior vem defraudando a democracia e empobrecendo os espíritos dos estudantes de hoje, Mem Martins, Europa América, 1989, Wolf Lepenies, Ascensão e declínio dos intelectuais na Europa, Lisboa, Edições 70,1995, ou a desmontagem neurológica do mito do pensamento racional por António Damásio, O erro de Descartes. Emoção, razão e cérebro humano, 20ª edição, Mem Martins, Europa América, 2000.
[36] Mais dados em Dulce Neto, “Borla e capelo são sinónimos de sabedoria? As lutas praxistas dos lentes da Universidade”, Jornal de Coimbra, 7 de Junho de 1989, pp. 12-13. A contestação à cerimónia de imposição de insígnias e aos elevados preços envolvidos, o confronto entre doutoramento administrativo e colação do grau e a questão dos assentos nos doutorais da Sala dos Capelos eram questões alimentadas pelo “grupo de Letras”, que contava com os docentes Luís Reis Torgal, Amadeu Carvalho Homem, Carlos Reis e José Barata.
[37] Luís Reis Torgal, “Quid petis? Os doutoramentos na Universidade de Coimbra”, Revista de História das Ideias, nº 15, 1993, pp. 177-316.
[38] Algumas das observações formuladas por Luís Reis Torgal eram bastante pertinentes. Por alturas de 1990-1993 a borla e capelo, confeccionada apenas numa casa de artigos funerários do Porto (Carvalho & Irmão, à Rua dos Caldeireiros) rondava os 500.000$00. Este valor era contestado, mas tratava-se de uma artigo de luxo cujos preços eram semelhantes aos praticados na casaca dos toureiros, no traje de luces dos bandarilheiros, nas colchas de Castelo Branco e nos tapetes de Arraiolos certificados. Já os quase 90.000$00 pagos pelo hábito talar nas alfaiatarias locais eram exorbitantes e injustificados. Na mesma altura e nas mesmas alfaiatarias, trajes profissionais esteticamente superiores à veste docente como a toga de advogado e a beca de magistrado eram bem mais acessíveis. Uma boa toga custava 25.000$00 e a beca de corpo duplo não mais que 50.000$00. Abusando de uma veste simples, cuja dignidade é a atribuível ao pequeno uniforme, que tem como peças nucleares uma capa singela e uma casaca, os alfaiates acabavam por incluir acessórios como a saia ou as calças compridas, meias, camisa e gravata (a gravata não integra o hábito docente), atingindo o conjunto um preço exorbitante. O abuso estendia-se ao preço dos tecidos empregues, que nunca incluíam cetim ou seda.
[39] A partir de 1997, a toga, barretina e insígnias foram confeccionadas no Ateliê Têxtil da UBI pela costureira Lucinda Matias. Notícia de Ana Camboa, “Trajados a rigor” (2009), http://www.urbi.ubi.pt/_urbi/pagina.php?codigo=6132.
[40] Responsabilidade que não deve confundir-se com os processos de culturalismo e estetização estudados por Aníbal Frias, «Patrimonialização» da Alta e da Praxe académica de Coimbra, disponível no endereço http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR462de01a41f32_1.PDF (acedido em 14.04.2009).
[41] A Casa Reitoral, no reitorado de Rui de Alarcão, tinha exemplares deste álbum fotográfico em reserva para oferta a visitantes. A ausência de sensibilidade da UC perante o direito à memória dos deportados da Alta não foi critério de aplicação geral. Em relação à memória da Revolução de 25 de Abril de 1974, o Reitor Rui de Alarcão assinou em 1984 um despacho que deu origem ao Centro de Documentação 25 de Abril, organismo exemplar que em 1990 lançou o notável projecto História Oral [do 25 de Abril]. Cf. Maria Natércia Coimbra, “O arquivo de história oral no Centro de Documentação 25 de Abril na Universidade de Coimbra. Entrevistas: conceito, natureza e direitos de uso e divulgação envolvidos”, Coimbra, Revista de História das Ideias Nº 17, 1995, pp. 513-526; idem, http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=HomePage.
[42] Assunto desvelado por Nuno Rosmaninho Rolo, O princípio de uma “revolução urbanística no Estado Novo. Os primeiros programas da cidade universitária de Coimbra (1934-1940), Coimbra, Minerva, 1996; idem, O poder da arte. O Estado Novo e a Cidade Universitária de Coimbra, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2006 (súmula da tese de doutoramento).
[43] Mais informação na rubrica da UNESCO “Qu’est-ce que le patrimoine culturel immatériel?”, http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?pg=2002 (consultado em 12.12.2008). Idem, “Bref histoire de la Convention pour la saufgarde du patrimoine immatériel” (2003); ibidem, “Domaines du patrimoine immatériel selon la Convention de 2003”. As novas dimensões do conceito de património não cessam de grangear unanimismos e oportunismos. Retratando a visão francesa, veja-se o discurso produzido por Vincent Veschambre, da Université d’Angers, Le processus de patrimonialisation: revalorisations, appropriation et marquage de l’espace, http://www.cafe-geo.net/article.php3id_article=1180. Sobre as fragilidades da naturalização deste discurso em Portugal, leia-se Manuel João Ramos, Breve nota sobre a introdução da expressão «património intangível» em Portugal, http://iscte.pt/~mjsr/docs/Manuel%20Ramos%-%Nota% (acedido em 8.04.2009).

1 Comentários:

Blogger Manuel disse...

As saudações e felicitações de Manuel Sá Marques
Blogue: manuel-bernardinomachado.blogspot.com
Email: manuelsamarques@sapo.pt

22 de agosto de 2009 às 13:28  

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