sábado, 17 de janeiro de 2009

Honoris dos heróis aliados
Universidade de Coimbra, escadório da Via Latina, 15 de Abril de 1921: primeiro doutoramento honoris causa concedido pela UC a vultos eminentes exteriores ao seu corpo docente. À saída da cerimónia avistam-se o Generalíssimo de Itália Armando Diáz, o General britânico Horace Dorrien, e o Marechal de França Joseph Joffre. Embora pareçam ser as insígnias de cor azul celeste da Faculdade de Ciências (cor inventada a partir de 1911, cuja fundamentação se desconhece), na realidade as borlas e capelos são em azul claro e branco, cores da Secção de Matemática da Faculdade de Ciências que remontavam à reforma pombalina de 1772.
O registo fotográfico deste evento que levou a Coimbra altos dignitários, políticos e jornalistas, não é minimanente satisfatório. Conhecia-se uma fotografia de má qualidade impressa nas páginas da Ilustração Portuguesa, II Série, nº 793, de 30 de Abril de 1921, p. 278, que mostrava Joffre nas escadarias da Via Latina, desbarretado, com o capelo sobre a farda militar, e diversos lentes e archeiros em grande uniforme mas com a cabeça descoberta.
O Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa divulgou a imagem acima representada, em tudo superior à da Ilustração Portuguesa, mas insuficientemente legendada. Com efeito, o entusiasmo gerado em torno dos heróis militares aliados no rescaldo da Grande Guerra não deixou indiferentes os meios universitários europeus. Em 1918, a Universidade Católica de Louvaina concedeu o doutoramento honoris causa a Clemenceau e a Foch, e em 1919 ao Presidente dos EUA Woodrow Wilson. O mesmo Wilson foi recebido na Universidade de Paris e proclamado doutor honoris causa pela Faculdade de Direito em 2 de Julho de 1918. Conforme relatam o Le Journal, de 2/07/1918, e o New York Times, de 3/07/1918, durante a cerimónia de homenagem a Wilson foi lida uma mensagem assinada por 600 docentes de Direito de países como a França, a Inglaterra, Portugal, Bélgica, Sérvia, Roménia, Japão e Rússia. Com esta cerimónia a Universidade de Paris concedia o seu primeiro honoris causa, enquanto que a Católica de Louvaina se limitava a repetir uma tradição praticada desde 1874.
Em Portugal, a Universidade do Porto não foi imune ao movimento de sacralização dos heróis das potências aliadas. A Faculdade de Ciências atribuiu o honoris causa a Joffre no dia 6 de Abril de 1921, seguindo-se idêntica cerimónia para Diáz e Dorrien no dia 11 de Abril. Seria interessante aceder a descrições e eventuais fotografias destas cerimónias, que terão sido forçosamente relatadas pela imprensa periódica portuense, para se confirmar se os candidatos se apresentaram com fardas militares e se receberam borla e capelo em azul claro. É possível que estas insígnias tenham sido encomendadas e adquiridas em oficina de passamanaria coimbrã, mas também será de admitir que a confecção tenha ocorrido na casa de artigos funerários que hoje em dia ainda manufactura esta obra prima do património simbólico-imaterial conimbricense, uma vez que o Decreto nº 4:554, de 6 de Julho de 1918, impusera a nacionalização das insígnias doutorais de matriz conimbricense.
A vinda dos militares aliados a Portugal gerou uma onda de frenesim em Coimbra. Na sua edição de 5 de Abril de 1921, a Gazeta de Coimbra reportava que o Reitor Interino Oliveira Guimarães oficiara ao Ministro da Guerra que pretendia acolher Joffre na Casa Reitoral e prestar-lhe as máximas homenagens. O Senado preparava-se para reunir e deliberar o programa de recepção. Na edição de 7 de Abril de 1921, o jornal referido precisava que o Instituto de Coimbra ofertaria a Joffre o seu grande colar. Em sessão realizada no dia 6, o Senado da UC deliberou atribuir o doutoramento honoris causa a Joffre pela Secção de Matemática da Faculdade de Ciências. O comissário da cerimónia seria o Director da Faculdade, Souto Rodrigues. A 6, o Reitor Interino deslocou-se a Lisboa para negociar os pormenores do programa com o Ministro da Guerra.
Ainda não se falava nos nomes de Diáz e de Dorrien, precisando-se apenas que Joffre viria do Porto para Coimbra no dia 15. Ficou acordado que Joffre seria recebido pela UC na Estação Nova e levado em cortejo até à Câmara Municipal, e dali para o Paço das Escolas. A comissão propunha ainda um almoço no Buçaco e um sarau de gala no Teatro Avenida.
No dia 9 de Abril, terceiro aniversário da Batalha de La Lys, decorreu no Mosteiro da Batalha uma sessão de homenagem ao soldado desconhecido, a que estiveram presentes o Reitor Interino, os Directores das Faculdades e o Secretário-Geral da UC em hábito talar e insígnias. Marcavam presença no Mosteiro da Batalha Dorrien e Diáz e respectivas legações diplomáticas, tendo ficado decidido que estes se juntariam a Joffre na laurea honoris causa.
A Gazeta de Coimbra, de 9 de Abril de 1921, dava conta que o Reitor Interino estabelecera um acordo com o Director da Faculdade de Ciências quanto ao cerimonial a seguir. No essencial recuperava-se o cerimonial clássico, actualizado pelo "regulamento" de 1916, mas abandonando os ritos católicos. No leque das novidades, o Director da Faculdade outorgante passava a substituir o Decano e o graduando receberia o grau de pé. Situação não autorizada pela tradição, mas certamente inspirada pela conjuntura político-militar e pelo gesto ensaiado pelo Presidente Sidónio Pais na sua visita de 1918, a UC aceitava realizar a cerimónia com o(s) candidato(s) em uniforme militar.
A UC comprometia-se ainda a assumir as despesas com as insígnias (anéis, borlas e capelos). Do elogio seria incumbido o mais novo doutor da Faculdade de Ciências, Diogo Pacheco de Amorim. Prosseguindo o acompanhamento dos momentos que antecederam o evento, a Gazeta de Coimbra, de 12 de Abril de 1921, confirmava a presença dos três militares aliados para o dia 15. Em 16 de Abril de 1921, a Gazeta de Coimbra relatava jubilosamente os acontecimentos ocorridos no dia anterior, uma sexta-feira, recorrendo ao título "Uma data gloriosa. A visita dos representantes das Nações Aliadas a Coimbra". Notícia mais pormenorizada teria lugar dias mais tarde, na edição de 28 de Abril de 1921 ("A chegada dos ministros. Na Câmara e na Universidade").
Os militares aliados, a comitiva governamental e o corpo diplomático, estando o Presidente da República António José de Almeida representado pelo Ministro da Marinha (apresentante dos laureados), foram recebidos na Estação Nova pela UC em hábito talar e insígnias pelo modo tradicional. Dos Paços do Concelho, o préstito seguiu para o Paço das Escolas. À Porta Férrea, Reitor Interino e Charamela destacaram-se e saudaram os convidados. A charamela interpretou os hinos nacionais de Portugal, Itália, França e Inglaterra. A entrada foi marcada por repiques festivos no sino. Seguiu-se um banquete de gala num dos salões da Casa Reitoral, com as convencionais libações e, após este, pelas 15 horas, a cerimónia honoris causa.
Formou-se préstito no Pátio das Escolas, vendo-se os archeiros, a charamela, os lentes, os bedeis, os contínuos, o mestre-de-cerimónias e o guarda-mor, cada qual com seus trajes e insígnias. Sinais de flutação protocolar, o Reitor Interino proferiu o discurso de saudação no início da função, quando o cerimonial dispunha expressamente que perante chefes de estado e altos dignitários a oração de recebimento fosse dita pelo Decano na cátedra, e a banda da GNR que estava na Sala dos Actos tocou "A Portuguesa". Pacheco de Amorim louvou os três candidatos. Logo a seguir, o Director da Faculdade de Ciências elogiou em francês os heróis aliados e em representação do Reitor impôs-lhes as respectivas insígnias. Após a execução dos hinos, o silêncio seria cortado por uma revoada de aplausos e repiques de sinos.
O regime que se prestara a capturar o património simbólico da Alma Mater Conimbricense, vigiando-a e ameaçando-o com rédea curta, era o mesmo que se lançava no aproveitamento desse património, enquadrando-o nos marcos ideológico-propagandísticos do fervor patriótico, do culto dos heróis militares, e da embriaguês vivida pelas potências aliadas.
Tirando partido da vacatura do cargo reitoral por morte do Prelado Filomeno Cabral e da demora governamental na nomeação de mais um reitor da confiança do Ministério da Instrução Pública, o Reitor Interino Joaquim de Oliveira Guimarães aproveitou de forma exemplar o fervor nacionalista, o culto emergente ao soldado desconhecido e o triunfo aliado. No momento em que convergiam para Coimbra os heróis aliados, suas comitivas diplomáticas e imprensa internacional, a UC não se limitava a ser governada por decreto e telegrama ministerial. Lambia as feridas das prepotências praticadas pelo reitor Joaquim Coelho de Carvalho (1919) e das arbitrariedades cometidas pelo Ministro da Instrução Leonardo Coimbra sobre a Faculdade de Letras (1919).
Sensível ao património e à etnografia, a ideologia republicana não soube compreender nem cativar a UC. Entre 1910-1919 alimentou periodicamente focos de tensão, nalguns casos agravados por arbitrariedades dos titulares da pasta da instrução pública. A nomeação de reitores da confiança governamental constituiu um instrumento continuado de controle e repressão, numa época em que as mais banais minudências de gestão das Faculdades e Casa Reitoral eram comunicadas à administração central por ofício, telegrama e telefone.
O honoris causa dos heróis aliados, tendo polarizado um acto de homenagem em contexto de pós-guerra, foi cima de tudo um inteligente momento de gestão propagandística canalizado em proveito da reafirmação nacional e internacional da imagem da UC.
-"Doctorates Honoris Causa", http://www.uclouvain.be/en-dhc.html;
-"Honoris Causa. Coimbra", http://www.uc.pt/depacad/pedagogica/honoris_causa/ (listagem por Faculdades, incompleta, facultando informação apenas a partir de 1932);
-"Doutores Honoris Causa pela Universidade de Lisboa", http://www.ul.pt/portal/page?_pageid=173,178379&_dad=portal&_schema=PORTAL;
-http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/ (cota EFC00181, de autor desconhecido).

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