sábado, 17 de janeiro de 2009


Carolina Michaelis
Integrada no quadro da Faculdade de Letras da UC por Decreto de 21 de Junho de 1911, Carolina Michaelis de Vasconcelos apresentou-se em Coimbra no dia 19 de Janeiro de 1912, tendo sido festivamente recebida e aplaudida por estudantes e docentes. O seu nome havia conquistado fama e prestígio, sendo a primeira docente acolhida no claustro conimbricense. O Colégio de São Pedro, anexo à Reitoria, onde primeiramente funcionou a Faculdade de Letras, acolheu a sua lição inaugural.
A reforma universitária de 1911 gerou descontentamentos entre os docentes detentores do grau de doutor e os professores nomeados por decreto governamental que não possuíam tal grau. Particularmente em Coimbra, e a traduzir ecos jocosos do fenonómeno de criação governamental de "doutores", entrou em circulação na gíria académica a expressão "doutores de aviário".
Procurando matizar o escândalo e o mal-estar que atingia com maior intensidade as novas Faculdades de Letras de Coimbra e Lisboa, o Ministério da Instrução Pública sugeria, pela letra do artigo 16º da Lei nº 116, de 16 de Junho de 1916, que todas as Faculdades das Universidades de Coimbra, Lisboa e Porto, pudessem conferir o grau de doutor aos seus professores ordinários com três anos de serviço efectivamente prestado, caso não possuíssem o dito grau. Esta situação era extensiva a individualidades que cada Faculdade considerasse dignas de obter tal distinção.
O diploma que vimos de citar legitimava em Portugal aquilo a que ulteriormente se convencionou chamar "doutoramento honoris causa", nada precisando quanto a insígnias e cerimonial.
Em Coimbra, aproveitou-se o hábito talar masculino de finais do liberalismo, que expurgado de qualquer ornato exterior ficou reduzido a um conjunto extremamente despojado e singelo. Por inércia ou incapacidade dos interveninentes no processo de reforma, não se debateu a questão em sentido mais global, isto é, à luz da feminilização emergente do corpo docente, nem se aproveitou nada das interessantes soluções unissexo que vinham a ser consagradas nas universidades dos EUA, França, Itália e Grã-Bretanha, bem como por advogadas.
Na Comissão do Traje e Insígnias, nomeada pelo Senado em 13 de Novembro de 1915, foram elementos decisivos o Cónego Doutor António de Vasconcelos (oriundo da extinta Fac. de Teologia), o jovem lente de Direito António Carneiro Pacheco, e o lente de Ciências Álvaro Basto (oriundo da extinta Fac. de Philosophia Natural).
Não se conhecem actas, relatórios ou outro tipo de documentos produzidos pela comissão. Sabe-se que os três elementos depreciaram a hipótese de adopção do grande uniforme militar napoleónico que havido sido a farda de gala das Escolas Médico-Cirúrgicas e que continuava em uso na Academia das Ciências de Lisboa. Por se entender que a borla e capelo conimbricenses eram únicas no seu género, propôs-se a sua mantutenção. Quanto à escolha do traje docente, a solução foi manifestamente infeliz. Não respondia às solicitações femininas, não se coadunava com a pompa e ostentatação inerante ao cerimonial e insígnias, e não respondia aos insistentes pedidos dos alunos que apelavam ao retorno da cerimónia de formatura ("cerimónia do bacharelato", segundo a imprensa de 1916).
Em tempos de 1ª República e de espírito subjacente à Grande Guerra, o hábito talar retomado não a partir do antigo traje de gala mas do pequeno uniforme de porte quotidiano adoptado em 1863 parecia agradar aos simpatizantes da causa militar na medida em que se assemelhava vagamente a um dólman, piscava o olho aos burgueses laicistas com o seu ar de casaca puritana, e não deixava totalmente de lado os católicos (na verdade, era uma versão pobre do clergyman habit ou da frock coat usada pelos capelães militares norte-americanos desde a Guerra Civil). Era uma espécie de meio termo entre o legado patrimonial e a vontade de boa vizinhança com as casacas de abas de grilo dos noivos, dos diplomatas, dos divos da ópera, dos instrumentistas de grande orquestra, dos dançarinos do Moulin Rouge/Broadway e dos prestidigitadores. Sem o saber, a UC sintonizava com as universidades da Suécia e da Finlândia, faltando apenas dar o passo em direcção à cartola. Foi o que fizeram os estudantes nos alvores da década de 1930, ainda que em contexto parodial de cortejo alegórico de Queima das Fitas.
O Reitor Norton de Matos empenhou-se seriamente na revitalização do cerimonial, traje e insígnias, sem que nesse ano de 1916 tenha conseguido retomar a Abertura Solene. Em Julho de 1916, os quintanistas de Medicina, com a conivência dos lentes da sua Faculdade, solicitaram ao Reitor a retoma da formatura, interrompida desde o Despacho ministerial de 2 de Novembro de 1910. O pedido de Medicina adquire pleno significado se tivermos em linha de conta que desde meados do século XIX os graduandos associavam ao acto solene de formatura serenatas fluviais, parada pública com pastas de luxo, filarmónica e foguetório, e apresentação de cumprimentos aos lentes, a que mais tarde se juntariam a récita e balada de despedida. Em vez de decidir ou de consultar o Senado, o Reitor, numa atitude de subserviência, consultou o Ministro da Instrução por ofício de 12 de Junho de 1916. Na opinião do Reitor Norton de Matos, que fora nomeado pelo governo, a proposta parecia contrariar o despacho ministerial de 1910, e a ser retomada carecia de reforma. A inércia institucional prevaleceu.
A Lei nº 616, de 16/06/1916, que permitia proclamar "doutores ipso facto", não foi aplicada antes de 1917. Pelo menos assim aconteceu em Coimbra. O proposto no artigo 16º daquele diploma foi expressamente regulamentado pelo Decreto nº 2:944, de 18 de Janeiro de 1917, no que respeitava às Faculdades de Letras. Neste regulamento precisava-se que a proposta deveria ser apresentada por um mínimo de três docentes do quadro a lentes ordinários não doutores com três anos de serviço e a figuras eminentes. A proposta deveria ser submetida e apreciada pelo Conselho da Faculdade, estudada por uma comissão de cinco elementos e dada a conhecer ao Director. Caso a votação atingisse pelo menos três quartos de bolas brancas, seria o candidato proclamado "Doutor em Letras" pelo Director da Faculdade, dando-se conhecimento da decisão ao Reitor. Em cerimónia posterior, o laureado poderia receber o respectivo diploma, sob a presidência do Reitor.
Escusado será dizer que este decreto desrespeitava o cerimonial e as enraizadas tradições conimbricenses, subalternizando o Decano da Faculdade em função do Director, atribuindo ao Director de Faculdade funções que eram reserva expressa do Reitor e tentando substituir a criação reitoral pela inexpressiva figura da proclamação que em Portugal era específica do reconhecimento e aclamação dos novos monarcas. As proclamações beneficiavam quem não defendera actos de conclusões magnas, criando situações de injustiça para com os lentes que já eram detentores do grau de doutor. Em Coimbra procurou atenuar-se esta injustiça alimentada pelo ministério da tutela através da visibilidade conferida às insígnias doutorais através da mistura de cores.
O certo é que, com base nos artigos 2º a 5º do Decreto 2:944, o Conselho Directivo da Faculdade de Letras proclamou José Gonçalves Guimarães (da Fac. de Ciências, a reger uma cadeira em Letras), "Doutor em Letras" no dia 3 de Fevereiro de 1917. Seguiram-se, a 1 de Julho de 1917, as proclamações de António de Vasconcelos, Porfírio da Silva, Mendes dos Remédios, Alves dos Santos, Eugénio de Castro e Carolina Michaelis. A eles se juntou António José Gonçalves Guimarães, tendo cada um recebido insígnias doutorais na Sala do Senado.
Esta leva de honoris causa na Faculdade de Letras foi apoiada por um Regulamento escrito em 1916 pela Comissão do Traje e Insígnias e deu azo a imposições de borlas e capelos na Sala do Senado. O evento, feito à porta fechada e sem o antigo aparato da Sala dos Actos Grandes, não foi apercebido pelos alunos nem deixou memória na imprensa periódica. António de Vasconcelos desempenhou papel incontornável nesta cerimónia. A ela compareceram os lentes laicos com a nova versão do hábito talar reformado, excepto Carolina Michaelis que usava capa talar e vestido preto comprido, e os lentes eclesiásticos que iam em hábito talar romano. Qanto às insígnias, foi a primeira vez que a Faculdade de Letras se apresentou com a borla e capelo em azul escuro (cor que entre 1772 e 1911 fora usada pela Faculdade de Philosophia Natural). Pormenor importante, os lentes que já eram doutorados em Teologia tinham mandado confeccionar em oficinal local insígnias com as cores misturadas (branco e azul escuro).
Seguindo o exemplo da Faculdade de Letras, nos anos seguintes Direito, Ciências, Medicina e Farmácia, também foram proclamando "doutores" os lentes ordinários. O Decreto nº 337-C, de 15 de Setembro de 1917, autorizava o Conselho Directivo das Faculdades de Direito a proclamarem doutores os seus professores ordinários e extraordinários com três anos de serviço, bem como indivualidades de reconhecido mérito.
Assim aconteceu em Direito, no dia 19/02/1918, com António Carneiro Pacheco e Paulo Merea, no dia 10/05/1918 com Oliveira Salazar, e no dia 20/10/1918 com Domingos Fezas Vital e João Magalhães Colaço, que haviam apresentado trabalhos científicos em casaca burguesa preta para professores assistentes. Durante o seu longo consulado político, Oliveira Salazar, pouco confortável com o estatuto de "doutor ipso facto", fez questão de reiterar que nunca usara as insígnias doutorais, situação diversas vezes glosada acriticamente pela propaganda do Estado Novo. Este jogo de falsa humildade é facilmente desmontável. Com insígnias se deixou Oliveira Salazar fotografar, chegando mesmo a ofertar cópia de um retrato em hábito talar e capelo à Confraria e Refúgio da Rainha Santa Isabel. Na sua hagiografia do ditador, Franco Nogueira embora procure empolar a singularidade do jovem candidato a lente e a aura de "predestinação" que supostamente o envolvia (Salazar. A mocidade e os princípos, I: 1977), não oculta: primus, Salazar prestou provas orais e escritas perante júri em 1916 apenas para assistente; secundus, nunca apresentou tese nem foi examinado em actos magnos; tertius, foi proclamado "doutor" em 1918 pela sua Faculdade; quartus, possuía hábito talar e insígnias (que usou sem cerimónia de imposição) e em 1925 encomendou e comprou um capelo novo em oficina de passamanaria local.
Recorde-se que a Faculdade de Letras atribuíu a Oliveira Salazar o título de doutor honoris causa em 22 de Abril de 1959, situação que implicava obrigatoriamente a outorga de insígnias com mistura de vermelho e azul, mas a Faculdade de Letras, a Reitoria e o próprio Oliveira Salazar fecharam os olhos aos ditames protocolares. Contrariando o cerimonial conimbricense, Oliveira Salazar ostentaria no velório as insígnias doutorais de Direito e não com mistura de vermelho e azul.
Relativamente à Faculdade de Ciências, não estão ainda apuradas as circunstâncias que estiveram na origem da opção pelo azul celeste, cor que também prevaleceria em Lisboa e Porto. Parece ter sido o ministério da tutela a impor a cor, por via de regulamentação do modelo dos diplomas. Porém, a solução não é convincente, pois na Faculdade de Ciências de Coimbra ficariam em uso 3 cores, o azul celeste para as várias ciências exactas/e ou naturais e o azul e branco para a Secção de Matemática. Acontece que, de acordo com os usos e costumes da instituição, na Faculdade de Ciências, estabelecida em 1911 a partir da fusão das Faculdades de Matemática e Philosophia Natural (1772) deveria ter prevalecido o azul claro e o branco, com o símbolo de cada ciência bordado no capelo.
Quanto a Farmácia, cuja escola menor foi transformada em Faculdade pelo Decreto nº 7:238, de 18 de Janeiro de 1921, não consta que antes desta data os lentes usassem insígnias, situação que nos reportaria para o amarelo de Medicina, escola maior em cuja dependência funcionava a escola menor de Farmácia. É possível que entre 1911 e 1921 os alunos de Farmácia tivessem adoptado espontaneamente grelos e fitas roxas, situação que não está estudada.
Logo a seguir à publicação do decreto citado, por 22 de Março de 1921, terão sido proclamados doutores em Farmácia Manuel José Fernandes Costa, Vicente Seiça, José Rodrigues Dinis e Víctor Aires Mora. Estes lentes, em articulação com os aconselhamentos prestados pela Faculdade de Letras e pelo Reitor Interino Joaquim de Oliveira Guimarães, optaram pelo roxo que era a cor oficialmente consagrada em Espanha desde 1850. Cerca de um ano mais tarde, pelo Decreto nº 8:165, de 31 de Maio de 1922, o Ministro da Instrução Augusto Pereira Nobre (membro da UP) dispunha sobre os modelos de diplomas de farmácia, referindo expressamente o roxo.
O Presidente Sidónio Pais visitou oficialmente Coimbra e a Universidade em 17 de Janeiro de 1918. O discurso proferido na Sala dos Capelos encorajou a Reitoria, os estudantes e os lentes a reactivarem o cerimonial. Fevereiro de 1918 foi um tempo de acalmação, tendo sido reintegrado em Direito o lente saneado pelo 5 de Outubro de 1910 José Lobo d'Ávila Lima. A 9 de Abril de 1918 tomou posse na Sala dos Actos Grandes o Reitor Mendes dos Remédios. Pela primeira vez desde 1910, a maior parte do claustro docente apresentou-se em hábito talar e insígnias doutorais.
A 29 de Maio desse mesmo ano de 1918, em luzidia cerimónia de homenagem ao Doutor Júlio Henriques, a que estiveram presentes na Sala dos Capelos investigadores de Coimbra, Lisboa e Porto, e onde cantou o Orfeon, muitos lentes estavam em hábito talar, neles se contando Carolina Michaelis, cuja figura mereceu referências positivas.
No que respeita a esta cerimónia, nunca foi esclarecido se Júlio Henriques compareceu com o hábito talar reformado, se com a sua antiga casaca oitocentista de carcela ornamental, se trazia as insígnias azuis escuras da sua Faculdade de origem (Philosophia Natural, no que se confundiria com os doutores da nóvel Fac. de Letras), se tinha encomendado as novas insígnias em azul claro de Ciências, ou se mandara confeccionar insígnias com mistura de azul escuro e azul claro. Mais para o final do ano, a 18 de Novembro de 1918, seria proclamado doutor em Letras Anselmo Ferraz de Carvalho, que sendo do quadro da Faculdade de Ciências assegurava cadeiras na de Letras.
Confrontado com o lento acordar simbólico da Universidade de Coimbra, o Ministério da Instrução aproveitou a preparação do Estatuto Universitário constante do Decreto nº 4:554, de 6 de Julho de 1918, para no seu artigo 101º declarar nacionalizadas as insígnias doutorais de modelo conimbricense nas três universidades portuguesas então existentes.
Manifestação de centralismo e de uniformização, esta medida tentava replicar a situação vivida nas universidades francesas desde o período napoléonico e nas universidades espanholas a partir de 1850. Era também o reconhecimento público das apropriações em curso na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa desde 1915, numa época em que as insígnias conimbricenses eram de há muito usadas nas escolas jurídicas brasileiras.
Este mesmo decreto não dispunha quanto a traje ou trajes docentes, deixando aos senados de cada instituição a escolha de eventual modelo. As soluções seguidas por cada uma das três universidades, de acordo com estudo monográfico assinado por Armando Luís de Carvalho Homem em 2007, são no mínimo versáteis.
O grande momento de reaparição da UC ocorreria em 30 de Novembro de 1918, quando o Presidente Sidónio Pais visitou a cidade e presidiu ao acto solene de Abertura da Universidade. Os lentes, em hábito talar e borla e capelo, esperavam-no na Estação Nova, de acordo com o antigo cerimonial, e acompanharam-no até ao Bairro Latino, com o mestre-de-cerimónias, os bedeis, os archeiros e a charamela (reorganizada por Elias de Aguiar em Julho de 1918). Sidónio, em vez de presidir, como dispunha o protocolo, levantou-se da cadeira presidencial e foi sentar-se no seu doutoral de Matemática. Havia trazido consigo a borla e capelo, que colocou sobre o uniforme militar, sendo delirantemente ovacionado.
Parecendo ridículo, o gesto presidencial constituía um acto de contrição público pela forma como o Estado tinha humilhado a UC e aniquilado seu património simbólico nos últimos oito anos. Na grande parada pública realizada entre a Estação Nova e a Alta, a UC não se limitou a reparecer e a consagrar as cores adoptadas pelas novas Faculdades e a posição de primazia concedida à Faculdade de Letras. O Chefe de Estado e os altos dignitários desfilaram no lugar que lhes era próprio, isto é, atrás do Reitor.
A conjuntura política sofrera modificações e a Grande Guerra abalara as convicções. Em 1918 Sidónio já não era definitivamente o mesmo antigo lente que proferira a inflamada e provocatória Oração de Sapiência de 16/10/1908, nem o Vice-Reitor que em finais de 1910 mandara suspender o toque da Cabra. O gesto presidencial encenado por Sidónio talvez encerre a chave para a compreensão dos primeiros honoris causa concedidos pelas universidades portuguesas a partir de 1921 a heróis militares que se apresentaram em uniforme militar.
O assassinato de Sidónio, a 14 de Dezembro, dá azo a que a UC se mostre extramuros. Em 19 de Dezembro de 1918 é celebrada uma missa de sufrágio na Capela da UC, cujas portas se abrem pela primeira vez ao culto após oito anos de silêncio.
Dezenas de estudantes e diversos lentes em hábito talar e insígnias decidiram ir aos funerais, em Lisboa. Os doutores presentes no préstito fúnebre compareceram em hábito talar e borla e capelo, dando continuidade a uma ascentral tradição que se avistara pela última vez no cortejo fúnebre do Rei D. Carlos. Fotografias do cortejo, publicadas na revista Ilustração Portuguesa, II Série, nº 671, de 30 de Dezembro de 1918, suscitaram perpexidades no após 1974 quanto à proveniência dos retratados (alguns eram da Fac. de Direito de Lisboa), que se ficam a dever à erosão da memória das especificidades do antigo cerimonial fúnebre conimbricense.
Antes de 28 de Maio de 1922 (investidura de Amorim Girão), a UC não parece realizar qualquer cerimónia de imposição de insígnias aos seus novos doutores nem aos chamados doutores ipso facto na Sala dos Actos Grandes. Antes desta data haveria que estudar melhor a proclamação de José Maria Rodrigues pela Faculdade de Letras a 1 de Abril de 1922. Embora Rodrigues não conste da lista dos doutoramentos honoris causa, a verdade é que apesar ser antigo doutor e lente da Faculdade de Teologia integrava nesta data o quadro docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Como tal, tratou-se de um honoris concedido a um dignitário exógeno, logo a seguir à laurea dos heróis aliados.
Não dispomos de informação sobre esta cerimónia. A observar-se o protocolo, Rodrigues poderia envergar o hábito talar romano e, dado que já era doutorado por Coimbra em Teologia, as suas insígnias admitiam mistura de branco e azul escuro.
O espaço escolhido entre a Grande Guerra e o advento da década de 1920 é a Sala do Senado. Manuel Gonçalves Cerejeira ali recebe as insígnias em 30 de Janeiro de 1918, com o elogio comovido do Cónego Doutor António de Vasconcelos. De eclesiástico para eclesiástico era impensável não ritualizar o momento ou fazer tábua rasa da espiritualidade e simbologia inerentes à investidura e insígnias. António de Vasconcelos não o diz em voz alta, mas ambos traziam bem interiorizado que a essência do acto radicava não em mera proclamação administrativa mas na criatio reitoral, numa conjuntura em que a Igreja Católica mantinha o cerimonial em toda a sua pujança e o papa continuva a criar os cardeais.
Não sem alguma nostalgia, Vasconcelos contextualizava o acto e desvelava alguns dos seus significados, esquecidos ou desprezados, lutando pela revitalização daquilo a que mais tarde se chamaria património imaterial. Sabe-se hoje que Cerejeira elaborou e entregou a tese mas não a chegou a arguir, justamente porque o júri declarou não estar provido de sábios bastantes, mas este pormenor não foi aflorado por Vasconcelos. João Providência e Costa e Ferrand Pimentel, de Letras, foram também eles insigniados na Sala do Senado no dia 16 de Dezembro de 1919, com elogio tecido pelo mesmo António de Vasconcelos.
Do que se exarou, importa concluir:
-os doutoramentos honoris causa iniciam-se na UC não em 1921 mas em 1917;
-os primeiros doutoramentos honoris causa centraram-se exclusivamente em membros do corpo docente da Faculdade de Letras;
-só em 1921 é que a UC estendeu os doutoramentos honoris causa a vultos eminentes externos;
-entre 1917 e 1921 os doutoramentos honoris causa e as imposições de insígnias foram realizadas na Sala do Senado da Casa Reitoral e não na Sala dos Capelos;
-o cerimonial tradicional completo foi retomado pela primeira vez no contexto da Abertura Solene de 1918, mas só viria a ser aplicado aos doutoramentos feitos na Sala dos Capelos numa primeira versão experimental (generais aliados, 15/04/1921) e de forma consolidada no ano seguinte (imposição de insígnias Amorim Girão, 28/05/1922);
-em 1916 a Comissão do Traje e Insígnias exarou um regulamento de apoio à cerimónia de doutoramento que mantinha no essencial os momentos fulcrais do cerimonial anterior a 1910, mas expurgava-o dos juramentos e liturgia católica (ex: Missa do Espírito Santo);
-a realização de doutoramentos honoris causa não foi uma iniciativa da UC, dada a situação de submissão da Alma Mater ao governo e a desconfortável posição de vigilância a que estava recorrentemente sujeita por parte dos reitores de nomeação governamental e governadores civis de Coimbra. Foi o Ministro da Instrução Pública que por diploma de 1916 abriu portas a este tipo de premiação nas três universidades públicas existentes, sem que a expressão honoris causa seja expressamente referida;
-em termos da realização das cerimónias honoris causa, a UC revela alguma distância em relação a outras instituições congéneres. A Universidade Católica de Lovaina começara em 1874 e a de Bolonha em 1888;
-relativamente aos honoris concedidos a vultos externos eminentes, a UC está relativamente sintonizada com as universidades continentais: Paris (1918), Complutense de Madrid (1920), Porto (1921), Coimbra (1921), Salamanca (1922), Lisboa (1922);
-o "regulamento de 1916", não estabelecia diferença entre doutoramento honoris causa e cerimónia de imposição de insígnias aos novos doutores, tendo a UC utilizado o mesmo texto até ao presente para ambas as situações. Este documento que se encontra resumido na entrada DOUTORAMENTO da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Volume IX, s/d, p. 285, ainda é utilizado na actualidade com a designação incorrecta de "doutoramento solene";
-o Cónego Doutor António Garcia Ribeiro de Vasconcelos foi um protagonista central na conjuntura de restauração do cerimonial conimbricense. De forma discreta, sapiente e perseverante, lutou pela dignificação do património imaterial da sua Alma Mater, tendo deixado trabalhos paradigmáticos como as alocuções de imposição de insígnias a Gonçalves Cerejeira, Ferrand Pimentel de Almeida e João Providência Sousa Costa, ou o artigo "O uso das insígnias doutorais" (Correio de Coimbra, nº 117, 26/07/1924). Num ciclo de aviltamento da UC e de ameaça de encerramento da instituição, a nacionalização dos bens da Igreja e o conhecimento privilegiado que detinha dos arquivos permitiram-lhe aceder em primeira mão e no timming certo ao pergaminho dionisiano da fundação que desveladamente estudou, traduziu e revelou em 1912.

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