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terça-feira, 26 de agosto de 2008

A herança dos trajes dos gadzarts

Popularização do traje gadzart
Os costumes e traje dos alunos das escolas francesas de artes e ofícios foram reaproveitados desde a segunda metade do século XX por estudantes do ensino superior politécnico. É o caso da École Nationale Supérieure d'Arts e Métiers, documentada nesta fotografia.
O modelo é ainda partilhado por alunos das "Quat'z'arts" que ministram cursos médios de arquitectura, pintura, escultura e gravura.


Zagalon
O "zagalon" é o uniforme de prestígio, ou farda de honra de escolas técnicas francesas. Em uso desde pelo menos 1806, o "zagalon" seguiu as reformas vestimentárias militares. Abolido o porte diário obrigatório no final da Primeira Guerra Mundial, o traje mantinha do passado o sobretudo, mas desde 1935 espelhava forte influência do modelo masculino consagrado pela marinha francesa: padrão azul marinho, botões dourados, galões nas mangas do casaco e boné.
Em 1964, a École de Cluny passou a regime misto, tendo o antigo aluno Jacques Estérel concebido o modelo feminino composto por saia-casaco e boné. Como se pode ver, o "uniforme de prestige" feminino segue de perto o tailleur das enfermeiras da Segunda Guerra Mundial, o chamado fato da hospedeira de aviação nos países ocidentais e o fato preto que fora consagrado pelas alunas dos liceus de Lisboa e Porto desde 1914, com posterior consagração no Orfeão da Universidade do Porto (1946) e Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (1951).
Imagem: colecção de uniformes da École de Cluny


Primitivo uniforme Gadzart
Reconstituição do uniforme militar das escolas francesas de artes e ofícios conforme o modelo napoleónico usado em 1806 e anos ulteriores.
Este manequim esteve em exposição na École de Châlons durante o bicentenário celebrado em 2006.
As semelhanças com o uniforme da École Polytechnique são evidentes, sem prejuízo das posteriores divergências: entre a segunda metade do século XIX e a Segunda Guerra Mundial, o uniforme das escolas francesas de artes e ofícios seguirá um figurino militar bastante simplificado, de par e passo com os modelos consagrados pelas corporações de bombeiros, polícias de segurança cívicas, carteiros e pilotos de aviação civil.
Na era pós-abolicionista, tal solução, não deixa de suscitar perplexidade, tanto mais que o favor tributado pelas elites francesas aos uniformes militares (Instituto de França, Escola Politécnica, escolas de artes e ofícios) foi secundado por movimentos de grande hostilidade face aos trajes talares e tradições das universidades.
Relativamente a Portugal, o porte de uniforme militar em contexto académico foi autorizado a alunos da Universidade de Coimbra com vinculação ao Exército, em alternativa à convencional e então muito hostilizada "capa e batina". Já as escolas politécnicas portuguesas de ensino superior e as escolas comerciais e industriais não deram mostras de seguir a moda francesa até 1974.

A Biaude
Os alunos das escolas técnicas francesas usam diariamente uma bata de trabalho oficinal, conhecida por "blouse" ou "biaude". No 1º e 2º anos, a "biaude" é em tecido cinzento, comporta nas costas uma tira amarela onde se gravam a alcunha e o número de matrícula, ficando a restante decoração ao critério e engenho do proprietário e amigos. No último ano, a bata passa a ser branca e continua a receber desenhos e dedicatórias.
Em Cluny e Châlons existem praxes social e culturalmente toleradas e bem aceites, embora ninguém assuma o termo "bizutages" para não entrar em rota do colisão com o proibicionismo imposto pelo ministério da tutela.
Em entrando em Cluny, os caloiros são apadrinhados por alunos mais velhos, os "anciens", que iniciam os seus pupilos na complexa gíria estudantil, no rico anedotário e nas canções goliardas, com base na construção de uma rede de laços familiares, com traços comuns às relações mestre-aluno praticadas nos antigos mosteiros e no sistema de apadrinhamento caloiro-veterano da Universidade de Coimbra.
Batas pintadas e grafitadas são também usadas por universitários belgas e por alunos de universidades politécnicas francesas que se inspiraram nos costumes "gadzarts".
(Imagem do acervo do Musée de l'École de Cluny)



A Clef d'Ex

A École Nationale Pratique d'Ouvriers et de Contremaires de Cluny foi oficialmente estabelecida na Abadia de Cluny no ano de 1891.

Os alunos adoptaram desde os primeiros anos o uniforme militar gadzart das escolas de artes e ofícios, consagrado em França, então composto por casaca munida de botões dourados, calça comprida, boné francês, laçarote e sobretudo.

Por volta de 1895, o primeiro curso iniciou a realização de uma festa de formatura (Promotion). Símbolo da qualificação técnica dos alunos, foi concebida uma chave de grandes dimensões que os alunos fizeram exibir nas ruas de Cluny durante três dias de festejos, quarenta dias antes do encerramento do ano escolar.

Trata-se, de certo modo, da reciclagem de tradições medievais que identificavam os ofícios através de símbolos como sapatos, serras, tesouras, ferraduras e pás. O arranque das festividades em Cluny coincide, no plano escolar internacional, com iniciativas emergentes em Portugal na Escola Médico-Cirúrgica do Porto (Festa da Pasta), Academia Politécnica do Porto, Escola Politécnica de Lisboa (Enterro da Farpa), Liceu de Braga (Enterro da Gata), Liceu de Ponta Delgada (Enterro da Bicha), Liceu de Beja (Festa do Galo/Enterro do Galo) e Universidade de Coimbra (Queima das Fitas).

Parecendo novas, na realidade estas festividades escolares de julgamento, enterramento e incineração do ano escolar, remontavam ao teatro popular europeu medieval e nos finais do século XIX ainda se podiam apreciar em Portugal, Espanha, Bélgica, França e Itália, através de ritualizações cíclicas como a Queima do Judas, o Enterro do Bacalhau, a Serração da Velha e a Queima do Galheiro.

Em 1997 os antigos alunos da École de Cluny fundaram um museu, onde reuniram maquinaria, maquetas, uniformes e 26 chaves, sendo a mais antiga de 1898.

As chaves são tradicionalmente guardadas por uma espécie de mordomo ou juiz eleito pelos alunos, podendo ser conservadas na casa do guardião, solução tradicionalmente usada nas comunidades rurais portuguesas por irmandades encarregues da promoção de festividades religiosas anuais, e solução anti-roubo praticada desde há séculos para sólios de pálios, coroas preciosas e alfaias litúrgicas. Caso o guardião da chave faleça, a École contacta a viúva do aluno para que esta proceda à respectiva devolução.

Algumas chaves chegam a atingir mais de dois metros de altura. Apresentam num dos lados as letras AM (Arts et Métiers) e no outro EX (Exance), que significa a partida do aluno após a formatura. Em anos mais recentes, as chaves também passaram a ser exibidas na "rentrée".

Fonte: Musée de l'École de Cluny. Association Historique Clunysoise des Arts et Métiers, http://ahclam.gadz.org/Accueil/Voir.


Uniformes gadzarts
Evolução dos uniformes dos alunos das escolas das artes e ofícios, instituições de ensino técnico estabelecidas em França no ano de 1780 (Écoles d'Arts et Métiers). Voltadas para a aplicação prática de conhecimentos em edifícios, maquinarias, engenhos, mobiliário e peças decorativas, este tipo de escolas foi também implantado em Portugal na Monarquia Constitucional, 1ª República e Estado Novo (escolas comerciais e industriais).
Entre 1806-1945, os gadazart usaram regularmente um uniforme militar, cujo figurino napoleónico acompanhou as tendências em voga no exército francês.
Gravura divulgada pela comissão do bicentenário da École de Châlons em 2006, apud http://www.chalons.ensam.fr/bicent/historique/gadazarts_renom.htm.