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sábado, 19 de julho de 2008

Memória visual do traje da Politécnica de Paris


Uniforme da politécnica
Visita do Primeiro Ministro da China, Wen Jiabao, à Escola Politécnica de Paris em 6.12.2005. O estadista exibe um bicórnio, testemunho público do prestígio da escola.
O desprestígio da toge talar das universidades, alvo de profunda estigmatização em 1968, não beliscou o traje militar da politécnica nem o "habit vert" do Institut de France. A intelectualidade francesa mais pró-abolicionista tem convivido pacificamente com a manutenção dos grandes uniformes militares, as paradas nos Champs Élysées durante a Tomada da Bastilha e as cerimónias de entrega de espadas a novos académicos. Num paradigma cultural onde as ciências naturais e as "engenharias" andam de braço dado com a mitologia do progresso indefinido, não deixa de ser sintomático que estas vestes e rituais tenham chegado à pósmodernidade praticamente incólumes. Sobre as cinzas do abolicionismo, a França já não tem propriamente nada de importante a oferecer. Ao nível da Ásia, da América Latina, de alguma Europa pós-abolicionista, a viragem eclética para o paradigma anglo-saxónico está longe de concluída. Daí que entre a solução militar perfilhada pela politécnica e pelo Institut, e a retoma envergonhada e mal assumida do que resta do universo da "toge", algumas instituições francesas apostem em "rentrées" e "honoris causa" puramente abstractos onde tudo se resume à exibição de um diploma.


Uniforme da politécnica
Aluna da politécnica com o bicórnio, cerimónia da Tomada da Bastilha, Paris, 2007. Fotografia de Jastrow.



Uniforme da politécnica

Uniforme da politécnica
Em 1972 ingressaram as primeiras alunas na politécnica de Paris. Aproveitando a espada e a casaca que passara de azul para preta em 1946, em 1974 começou a usar-se a primeira versão feminina do traje politécnico: botas pretas de cano alto, em couro, saia avivada, casaca assertoada, cinturão e tricórnio. Este tipo de chapéu, cujo modelo também viria a ser adoptado pelos estudantes da Universidade do Minho na viragem da década de 1980 para os anos noventa, foi abandonado ao fim de 22 anos. Com efeito, em 1996, as alunas da politécnica decidiram envergar o bicórnio napoleónico.

Uniforme da politécnica
Retrato do estudante George Bouvier, 1908, com bicórnio, casaca assertoada, calças com vivos vermelhos, luvas brancas, espada, cinturão e capote.

Uniforme da politécnica
O estudante Godefroy Mény, fotografado em 1909. A imagem documenta o capote militar azul, munido de carcela e capuz, em uso desde 1860.


Uniforme da politécnica
Registo fotográfico com retrato do estudante Jules Mény, realizado em 1909.
(clichés extraídos do endereço http://www.annales.org/archives/x/julesmeny.html)

Uniforme da Politécnica
Em 28.05.1894 o "Petit Jornal" conferiu honras de primeira página ao primeiro centenário da Politécnica. As comemorações estiveram na origem de um baile de gala no Trocadero, momento galente que se repetiu nos anos seguintes e pode ter influenciado os estudantes da Universidade de Coimbra que a partir da década de 1930 também passaram a dinamizar este tipo de eventos sociais.

Uniforme da Politécnica
No 2º Império generalizou-se a casaca munida de duas carreiras de botões metálicos, ou de tipo assertoado, que conheceu amplas adesões durante a Guerra Civil norteamericana e junto dos chefes de cozinha. Em alternativa ao bicórnio, politécnicos havia que aderiam ao képi. O capote azul, com carapuço pendente, popularizou-se a partir de 1860.


Uniforme da Politécnica
Grande uniforme em uso até finais do 2º Império.

Uniforme da Politécnica
Pequeno uniforme ou versão civil simplificada, referente ao período pós-napoleónico (1816 e ss.). As aproximações ao traje dos colegiais britânicos (Eaton Suit) não parecem simples coincidência.


Uniforme da Politécnica
Figuração reconstitutiva em postal ilustrado para os anos de 1804-1815.


Uniforme da Politécnica
Solução napoleónica institucionalizada a partir de 1804. O capote continua ausente. Foram também os anos do pequeno uniforme, mais simples, destinado a uso diário, e do grande uniforme ou traje de gala. Este modelo manter-se-ia sem grandes alterações até aos alvores da década de 1820, tendo surgido a partir de 1823 a calça comprida.


Uniforme da Politécnica de Paris
Modelo masculino usado entre 1796-1804. O bicórnio viria a ser consagrado pelos tunos universitários espanhóis.


Uniformes da politécnica de Paris
Em inícios de 2008 a École Polytechnique de Paris, fundada em 1794, inaugurou uma exposição diacrónico-iconográfica muito bem documentada sobre a origem e evolução dos trajes profissionais dos alunos (os "pipos").
Duradouramente marcado pelo paradigma militar, o uniforme da politécnica mudou de cores e de insígnias, oscilou entre o calção e calça comprida, a espada e o capote, o masculino e o feminino. Com a admissão das primeiras mulheres, em 1972, o antigo uniforme potenciou a abertura à feminilização (saia avivada, tricórnio).
Por força da vivacidade do modelo cultural e ideológico iluminista, os uniformes da politécnica e os dos académicos do Instituto de França conquistaram um lugar de imparável favor junto dos escolares, docentes e intelectuais ocidentais até bem depois da 2ª Guerra Mundial. Concomitantemente, a estigmatização do paradigma vestimentário e cultural talar foi sucessivamente associado ao catolicismo ultramontano e ao reaccionarismo.
Reactualizados no período napoleónico, os uniformes de gala da politécnica e do Institut de France exerceram imparável fascínio nos países da Europa continental e da América Latina em processo de independentização. Em Portugal, entre 1833-1910, os ministros e secretários de estado, os governadores civis e seus secretários, os administradores de concelho e seus secretários, os académicos da Academia das Ciências, os membros do corpo diplomático, os lentes da Academia Politécnica do Porto e os da Escola Politécnica de Lisboa, envergaram orgulhosamente o grande uniforme napoleónico. A própria Universidade de Coimbra, progressivamente encurralada pelas acusações aparentemente irrebatíveis de reaccionarismo, clericalismo e monarquismo, tentou na década de 1860 adoptar o grande uniforme napoleónico.
A colagem dos intelectuais às modas francesas não se confinou aos adeptos dos ideais republicanos. Entre as décadas de 1920-1940, os regimes autoritários italiano e português ainda invocaram este modelo como imagem de marca da afirmação da identidade da Academia de Itália ou da Academia Portuguesa de História.
Porém, algo estava a mudar lentamente no universo do até então incontestado modelo francófilo. Assim, na década de 1940, quando o Ministério da Educação aprovou o traje profissional da Universidade Técnica de Lisboa, a opção recaiu em veste talar afrancesada e não em uniforme militar. O mesmo aconteceria na Espanha de Franco, quando em 1967 se determinou que o uniforme e as insígnias das universidades politécnicas seria a toga preta, a murça e o barrete armado.
Em Portugal, o uniforme militar gozou de intocável favor durante o século XIX, a tal ponto que na Univerisdade de Coimbra e nas politécnicas de Lisboa e Porto se estatuíu que os alunos militares poderiam frequentar as aulas e actos de exame com os respectivos trajes castrenses. Mesmo assim, o traje militar da politécnica de Paris nunca chegou a ser adoptado pelos estudantes portugueses das politécnicas de Lisboa e Porto (1836-1911), nem pelos dos institutos superiores politécnicos portugueses do século XX. Comparativamente, na oitocentista Escola Médico-Cirúrgica de São Salvador da Bahia, alunos e docentes optaram pela toga talar de dois corpos e barrete redondo armado. E a partir de 1911, quando as escolas politécnicas foram integradas nas novas universidades de Lisboa e Porto, e convertidas em faculdades de ciências, a opção institucional recaiu na toga talar preta e não no grande uniforme napoleónico.
No mesmo período, as vestes talares continuaram a manter o seu prestígio nos territórios marcados pela influência cultural anglo-saxónica, os quais eram praticamente desconhecidos das elites portuguesas. Nos EUA, a a partir da década de 1890, a toga generalizou-se nas universidades mais prestigiadas, conquistou desde o primeiro momento utentes femininas e arriscou em crescendo o ritual da "graduation ceremony".
No caso de Portugal, a adesão ao uniforme napoleónico, não implicou apenas o combate às vestes, símbolos e insígnias da Igreja Católica e da Universidade de Coimbra. As antigas librés de gala à portuguesa, muito mais interessantes do que o grande uniforme francês, de que eram exemplo as dalmáticas, os tabardos, as opas e os trajes de capa e espada dos vereadores e oficiais administrativos, também conheceram tempos de estigmatização.


Sediari de Sevilha
A libré dos sediari da Casa Papal foi concedida com privilégio aos transportadores do andor da Archiconfraria de Jesús Nazareno, de Sevilla, pelo Papa Pio VII, ainda hoje se podendo observar anualmente nas procissões religiosas sevilhanas.

Libré dos sediari
Antiga libré adamascada dos sediari, ou oficiais que até 1969 transportavam aos ombros a sedia gestatoria dos pontífices romanos. A libré é composta por calções, colete e opa.

Jesuíta em Oxford
Académico da Companhia de Jesus na Universidade de Oxford, envergando o hábito talar composto por duas vestes sobrepostas. Gravura de Robert Dighton, 1808.