Caeremoniale Conimbrigensis
[Parte I]“O Capello”: Imposição de Insígnias aos Novos Doutores
Por AMNunes
Profundamente hostilizado na Europa Continental pelos movimentos abolicionistas filhos da “Illustration”, o cerimonial universitário não parou de sofrer erosões, para finalmente desaparecer com o Movimento Estudantil do Maio de 1968. Já nos países da Commonwealth o abolicionismo produziu efeitos incipientes, ali vicejando afirmações poli-institucionais muito vincadas do cerimonial régio, parlamentar, municipal e de universidades britânicas, canadianas, escocesas ou australianas.
Em finais do século XVIII, as pomposas e caras festividades doutorais espanholas atravessaram um processo de simplificação que culminou no abandono da tourada como parte integrante do ciclo final da cerimónia barroca, enquanto em França o «Decreto de 19 de Setembro de 1793», promulgado pela Convenção, dissolveu as antigas universidades. Reestruturadas no período napoleónico (1808), as instituições universitárias francesas reformadas já não praticavam os cerimoniais de investidura de antanho. As “toges” talares entretanto adoptadas tinham abandonado a antiga e complexa confecção à base de dois corpos talares sobrepostos. O barrete doutoral preto, de formato quadrangular e borla compacta, fora substituído pela “toque” laica, cilindriforme, extraída da indumentária de gala de alguns conselheiros dos velhos parlamentos regionais. Oscilando entre o grande uniforme militar (academias científicas, escolas politécnicas) e a “toge”, a França inaugura um processo de uniformização estadocêntrico da veste profissional, o qual se faz sentir em Espanha (reformas de 1850) e no Portugal republicano (Estatuto Universitário, Decreto 4.554, de 6 de Julho de 1918, sendo Ministro da Instrução Alfredo Magalhães).
Nas universidades históricas italianas nada de substantivo resta do antigo cerimonial que possa servir de base a estudos comparativos com o caso conimbricense. A toga talar e o barrete (“toga e tocco”) são comuns ao universo judiciário, dele se destacando apenas os doutores pelo porte da murça de arminhos ou estola distintiva. Em tempos de laicização, a toga talar judiciária parecia mais aceitável do que as vestes de lastro eclesiástico, pelo que além do caso citado das universidades italianas, o modelo para-judiciário fez moda na oitocentista Escola Médico-Cirúrgica de São Salvador da Bahia
[1], na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa (1856), na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, na Academia Polytechnica do Porto (após 1915-1916 o modelo colheu adesões parciais nas novas Universidades de Lisboa e Porto) e desde 1850 em todas as universidades estatais espanholas.
Espanha é um dos poucos países da Europa Continental onde os cerimoniais da coroa, parlamento, municípios, Poder Judicial e universidades, mantém a sua individualidade e esplendor. Portugal, na esteira do paradigma francês, perdeu a diversidade cerimonial intra- institucional e regional, cuja tranche mais significativa se confina desde 1910 ao protocolo do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Excluindo a Universidade de Coimbra e algumas confrarias/irmandades (santas casa da misericórdia, festas açorianas do Divino Espírito Santo), o Poder Judicial, os municípios e o parlamento português deixaram perecer os protocolos específicos, optando pelo protocolo executivo-administrativo.
Nos países seguidores do paradigma laico-administrativo, o cerimonial é discretamente remetido para as fronteiras da Casa do Presidente da República e Ministério dos Negócios Estrangeiros. Nas sociedades referidas, a produção de estudos sobre esta matéria é inexistente, porquanto considerada ridícula e desnecessária
[2], não havendo distinções protocolares dignas de registo entre a posse de um reitor, governador civil, ministro, director de um banco, presidente do conselho de administração de uma empresa, presidente de um clube de futebol, presidente de câmara municipal ou presidente de um tribunal.
Relativamente a cerimónias de galardoamento de investigadores ou personalidades distintas, os eventos seguem genericamente os mesmos procedimentos organizacionais, não se assinalando diferenças de vulto entre a entrega de uma medalha de mérito por uma determinada câmara municipal, os doutoramentos honoris causa ou os recentes rituais de outorga anual de prémios por parte de certas empresas, clubes de futebol ou cadeias televisivas onde o formato hollywoodiano dos Óscares se assevera paradigma contagiante.
Na Universidade de Coimbra, as marcas do abolicionismo fizeram-se sentir com grande acutilância no período da Revolução Republicana (ca. 1910-1916) e nos anos que antecederam e sucederam a Revolução de 1974 (ca. 1969-1980).
Ao abolicionismo persecutório e radical da derradeira modernidade do século XX sucederam surpreendentes e ainda mal conhecidas vagas de revivalismo, de ne-tradicionalismo e de reformismo. A Igreja Católica Romana, muitas vezes apontada como exemplo de imobilismo, reformou em 1969 as suas vestes, insígnias e cerimonial, em função das orientações do Concílio Vaticano II. Uma das simplificações mais evidentes incide sobre o faustoso e caro ritual de criação e investidura dos cardeais, sendo notório o abandono da capa magna, murça de arminhos e galero escarlate.
O cerimonial de ordenação dos bispos também foi alvo de reformas, especialmente na matéria respeitante às antigas frases rituais latinas. Desde 1969, o cerimonial da Casa Pontifícia não cessou de exibir simplificações, particularmente ao nível dos rituais fúnebres, investidura papal (abandono da coroação e da tiara), trajes dos antigos oficiais camaristas (por exemplo, supressão dos mazzieri, equivalentes dos bedéis) e deslocações em público (musealização da sedia gestatória, flabelos de plumas e sólios).
Algumas universidades francesas deram mostras de retorno à “toge et toque”, às aberturas solenes e doutoramentos honoris causa, com a intelectualidade francesa dividida entre o “velho” abolicionismo vociferante, o desdém pelos cerimoniais britânico e latino (Oxford, Cambridge, Saint Andrews, Salamanca, Coimbra), uma certa vergonha da “toge” e um mal explicado apego à proclamada superioridade do uniforme militar napoleónico de “académicien”
[3]. E as incongruências francesas não se ficam por aqui, pois sendo o país da Europa Continental que mais esticou a corda do abolicionismo universitário (as “praxes académicas” foram alvo de proibição legal), é também o país do velho continente que mantém zelosamente no universo dos trajes e insígnias judiciárias a sumptuária de corte anterior ao espírito de 1789.
Em Itália, a “toga e tocco” são vestes comuns à galáxia judiciária, apenas se vendo em momentos honoris causa. O porte de veste profissional encontra-se muito generalizado, mesmo nas universidades italianas de recente fundação. A insígnia de aparato neste país é a murça de peles, e por vezes a estola (Bolonha, Perugia). O cerimonial medieval desapareceu. Cópia significativa de universidades recorre a teatros e anfiteatros para a realização dos honoris causa. Em algumas instituições permanece o costume de honrar os laureados com uma coroa délfica, prática que no século XX se estendeu aos pilotos vencedores dos ralis automóveis.
Em Espanha, o cerimonial universitário viveu anos de grande afirmação, movida reforçada por estudos de protocolo de excelente qualidade. Chefes de protocolo e investigadores fundaram em 1996 a «Asociación para el Estudio y la Investigación del Protocolo Universitário». Entre 1996-2007 foram realizados seis encontros inter-universidades, secundados por publicação de actas, edição de monografias da especialidade (Salamanca, Complutense) e acções de esclarecimento a instituições associadas.
Os antigos países de leste, autonomizados da ex-União Soviética, lançaram-se numa autêntica corrida à invenção de trajes e insígnias, misturando aleatoriamente elementos colhidos nas tradições universitárias francesa, italiana, britânica e norte-americana.
Na primeira década do século XXI, instituições de ensino superior da Suíça, Alemanha, Itália, e de alguns países da América Latina e do Leste Asiático, passaram a reproduzir trajes e cerimónias académicas segundo o paradigma mediatizado pelos EUA (“graduation ceremony”)
[4].
Em Portugal, a maior parte das novas universidades surgidas a partir da década de 1970 deu azo à imaginação inventiva, oficializando trajes doutorais ou reformando outros herdados de um passado mais recuado. No caso de instituições como a Universidade [Clássica] de Lisboa e Universidade Nova de Lisboa, a cerimónia de abertura solene do ano escolar congrega um momento de Imposição de Insígnias aos Novos Doutores que se graduaram no ano lectivo anterior, com porte de traje profissional talar (modelo toga) e entrega de insígnias que visam as mãos e os ombros dos neófitos (diploma impresso, colar, fita), mas não a cabeça
[5]. Contudo, em nenhuma das novas universidades portuguesas públicas ou privadas se definiram insígnias ou cerimoniais destinados a mestres e licenciados.
Embora os inimigos do simbólico tenham continuado a olhar com desconfiança e desdém o fenómeno neo-vestimentário
[6], a verdade é que a procura de trajes distintivos, insígnias, diplomas e ritos de investidura grassou no Ocidente desde finais da década de 1970. Dos escuteiros às jovens universidades, das maçonarias aos neo-grupos de cavalaria, das ordens profissionais (enfermeiros, médicos, advogados) e confrarias gastronómicas e báquicas às tunas académicas, viveu-se nas décadas de 1980-1990-2010 uma autêntica corrida neo-ritualizante.
Pode mesmo afirmar-se que as vestes talares masculinas de corte, inspiradas na moda em voga nos séculos XV e XVI, nunca deixaram de estar na moda em sectores como a banda desenhada e o cinema de ficção científica. “Star Wars. Episod I. The Phantom Menace”, realizado por George Lucas em 1999, reactualiza diversos trajes talares, utilizados para reforçar no imaginário infantil a ideia de poder e de autoridade (senadores, chanceleres). A batina romana, hostilizada nos séculos XIX e XX, regressou triunfalmente à sétima arte pela mão do actor Keanu Reeves, no filme “Matrix Reloaded” (Irmãos Wachowski, 2003). A influência do guarda-roupa deste filme na moda Ocidental – a viver demorado processo de involução e reciclagem -, foi de tal ordem que nos invernos de 2004 a 2008 proliferaram nos agasalhos masculinos sobretudos pretos com colarinho e carcela do tipo batina romana.
Nos antigos países de leste, o movimento foi mais intenso e abrangente, tendo incidido na reinvenção de togas sincréticas para serviço do universo judiciário. O cerimonial, os trajes e insígnias, antigos, reformados ou recém-inventados, passaram a ser utilizados pelas instituições como instrumentos culturais publicitários aptos a convencerem estudantes e respectivas famílias a optarem pela matrícula numa determinada universidade, bem como a reforçar socialmente a divulgação de uma determinada imagem de prestígio.
O paradigma iluminista uniformizador e normalizador, que no caso de Espanha e de França conseguira levar mais longe o ideal de um só modelo de traje profissional/uma só paleta de cores científicas, vive um autêntico refluxo. No caso de Portugal, a maior parte das universidades públicas e privadas instituídas após 1974 consagrou traje profissional e insígnias distintivas do modelo conimbricense
[7], optando assim por processos dissemelhantes de construção identitária. O mesmo aconteceu em múltiplas academias estudantis universitárias e politécnicas, onde a Capa e Batina reportada a Coimbra deixou de constituir o paradigma dominante entre os jovens estudantes portugueses
[8].
Embora a Universidade de Coimbra fosse multissecularmente detentora de tradições e rituais específicos, a Reitoria nunca havia recorrido à publicitação deste tipo de produtos para reforçar a sua imagem nos planos nacional e internacional, fazendo jus ao entendimento clássico de que se tratavam de “coisas” ou “curiosidades” dos estudantes
[9]. Porém, o decréscimo da procura de matrículas, a concorrência entre instituições de ensino superior e as dificuldades de financiamento, fizeram com que pela primeira vez, no reitorado de Fernando Seabra Santos (2002 e ss.) tenham começado a proliferar nos jornais portugueses mensagens que, além de enfatizarem a qualidade científica da instituição, referiam sem ambiguidades a singularidade de tradições/instituições como a Festa da Queima das Fitas, a Capa e Batina dos estudantes, o ritual da Serenata, a Canção de Coimbra e a possibilidade de ocupação extra-curricular com actividades corais, instrumentísticas e outras ligadas ao associativismo estudantil. Apodadas de reaccionárias na idade clássica dos modernismos eurocêntricos (1789-1968), as tradições e cerimónias foram reintegradas no modus operandi da instituição como signos identitários dotados de positividade singularizadora, de acordo com as estratégias de marketing utilizadas em empresas, arquivos, bibliotecas ou museus (livro do mês, códice raro, pergaminho precioso, cerimónia invulgar, etc..).
O revivalismo neo-cerimonializante vivido no Ocidente e nas jovens universidades portuguesas e politécnicos (novos trajes para docentes, novos trajes para estudantes)
[10], não foi acompanhado com idêntico entusiasmo pelas academias científicas e universidades clássicas portuguesas. O traje de académico desapareceu de circulação, contentando-se a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Portuguesa de História com os trajes docentes trazidos pelos seus sócios às solenidades. Ao nível do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o antigo traje de gala de diplomata foi substituído pela casaca vitoriana, por seu turno herdeira da casaca setecentista ou “habit de cour”, vestimenta que na Suécia e na Finlândia se confunde com o traje doutoral e com o traje de grande orquestra.
Na Universidade de Coimbra ficaram bem evidentes os sinais de incapacidade de reforma do Hábito Talar, Insígnias e Cerimonial (inércia de certo modo comparável à situação vivida em Portugal no tocante aos trajes judiciários), num ciclo fini-secular ainda muito marcado pela radicalidade atávica dos discursos “reaccionário” versus “progressista”. Esta visão do sócio-cultural a “duas cores”, excessivamente singela e distorcida, parece colher cada vez menos adeptos, num contexto marcado por revivalismos místicos e operações de patrimonialização de bens materiais e imateriais, onde o paradigma francês do ser-se moderno não tem deixado de evidenciar recuos e fragilidades quando confrontado com os crescentes contactos das elites portuguesas com a cultura anglo-saxónica. A pouco e pouco foi-se tornando claro que campanhas em torno da salvaguarda de bens culturais e simbólicos em risco não são menos dignas do que outras travadas em prol do ambiente ou de espécies animais e vegetais ameaçadas pelos excessos civilizacionais.
Um certo esplendor vivido nos anos da prelatura Rui [Nogueira Lobo] de Alarcão (1982-1998), não ocultou um conjunto substancial de inércias e de interpelações reiteradamente repetidas:
-os impasses da discussão sobre o traje oficial do Reitor e respectivas Insígnias. As propostas no sentido de que o Reitor passasse a envergar Borla e Capelo em verde, cor oficial da Casa Reitoral por herança da antiga Faculdade de Cânones, não frutificaram;
-as sugestões no sentido de que o Conselho Directivo de cada Faculdade adquirisse e guardasse um conjunto completo de Insígnias Doutorais para efeitos de uso protocolar e de empréstimo temporário a determinados docentes, não encontraram acolhimento;
-a questão da falta de espaço nos doutorais da Sala dos Actos Grandes só foi resolvida pelo Senado no Reitorado de Fernando [Manuel da Silva] Rebelo (1998-2002), mediante a fixação de uma quota de assentos para cada Faculdade;
-os projectos apostados na criação de uma oficina anexa à Casa Reitoral apta a confeccionar trajes e insígnias de modelo conimbricense e a preços mais comportáveis, quedou-se por um conjunto de acções exploratórias levadas a cabo em 1992
[11];
-nunca se fez integrar no Museu Académico exemplares de trajes nem de insígnias conimbricenses;
-as insistentes reclamações de modernização do cerimonial de investidura doutoral não foram acompanhadas por um trabalho intensivo de pesquisa ou de reflexão
[12];
-a parte mais substancial do cerimonial conimbricense, em particular a Imposição de Insígnias aos Novos Doutores, o Cerimonial Fúnebre, a Abertura Solene, a Investidura do Reitor e a Recepção de Chefe de Estado continuaram a escorar-se na tradição oral, com perda muito substancial de informação após a Revolução de 1974;
-o Hábito Talar, modelo masculino e modelo feminino, não foi alvo de reforma nem de revalorização por via de um regulamento escrito apoiado em iconografia, tendo sofrido crescente degradação na era do pronto-a-vestir;
-o cerimonial universitário viveu um crescendo de distanciamento em relação aos estudantes e aos funcionários, não tendo sabido incorporar na sua estrutura novos cargos e funções entretanto surgidos;
-ao contrário de certos movimentos observados nos EUA, Grã-Bretanha, Itália, Suíça e Brasil, o cerimonial universitário conimbricense manteve-se omisso no tocante à aposta na revitalização das cerimónias de formatura de licenciados e de mestres
[13], inércia extensiva aos rituais de imposição de insígnias que são específicos destes graus. Por alturas da feitura dos estatutos de 1989 e das comemorações do 7º Centenário da UC, a Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, apoiada no antigo cerimonial conimbricense e no Encaenia oxfordiano, intentou propor um protocolo visando a (re)implementação experimental do acto de formatura de licenciado
[14]. A proposta não singrou e os estudantes dos anos terminais de licenciatura continuaram a outorgar-se a si próprios uma espécie de falsa formatura apoiada em falsas insígnias como uma cartola (chapéu doutoral na Suécia e na Finlândia), uma bengala e um anel de curso
[15], ou mesmo em rituais não institucionais como a “Missa da Benção das Pastas”.
Apesar das inércias enunciadas, a Universidade de Coimbra continuou a ser vista como um paradigma pelas universidades e politécnicos portugueses, cujos órgãos de gestão insistentemente lhe solicitaram informação e minutas de cerimonial. Maior embevecimento se notou por parte das universidades brasileiras, instituições que além de pedirem a Coimbra suporte documental, se afirmam como herdeiras reais ou fictas do legado cerimonializante conimbricense. Aliás, foi nas Faculdades de Direito do Brasil oitocentista que a Borla e Capelo de modelo conimbricense primeiramente se divulgou e consagrou como insígnia distintiva dos doutores, sendo na actualidade inúmeros os derivados deste paradigma
[16].
Ao contrário de Salamanca e de outras universidades históricas espanholas que democratizaram a comunicação do seu património protocolar em formato electrónico e através de publicações periódicas (com aflorações compreensíveis no México), Coimbra viveu dilacerada entre o receio da “imitação” e a vontade mitigada de não “deixar morrer” o seu cerimonial. O resultado mais directo destes receios tem-se traduzido num persistente e por vezes incómodo mutismo relativamente aos pedidos de informação/colaboração protocolar suscitados por instituições de ensino superior portuguesas e brasileiras.
O cerimonial conimbricense de investidura doutoral é do tipo “Inceptio”, tendo articulado ao longo dos séculos o primeiro momento da defesa de uma lição (Lectio) com a investidura festiva, competindo ao Cancelário ou ao Reitor a “Creatio” (criação simbólica) e a “Traditio” (entrega das insígnias). Com a Revolução Republicana de 5 de Outubro de 1910 e as reformas então implementadas na Instrução Pública, prevaleceu a opção pelo modelo republicano francês, ou seja a “Disputatio” assente na arguição laica de uma tese ou dissertação científica escrita perante júri acreditado. Apurados os resultados, competiria ao presidente dos júris a proclamação meramente administrativa do Novo Doutor, não sendo requerido que o graduando e jurados envergassem trajes profissionais no transcurso do acto. Posteriormente, cada instituição de ensino superior poderia ou não promover uma cerimónia de Imposição de Insígnias. Na prática, e seguindo os exemplos observados ao longo de novecentos em França e nos EUA, incontáveis docentes optaram (optam) por comprar trajes e insígnias no pronto-a-vestir, envergando-os à margem de qualquer cerimónia de investidura.
Em Coimbra, houve enorme dificuldade em entender a extirpação do simbólico, numa instituição onde o Reitor “criava” ritualística e hierogamicamente os doutores, fazendo-os sair do útero da Alma Mater. O ritual antigo, semelhante em Coimbra, Salamanca, Valladolid, Bolonha e Perugia, era idêntico ao da criação pontíficia dos novos cardeais romanos, competindo aos reitores, cancelários ou papas a gestação ou procriação simbólica, vazada na frase ritual “creo te”, que significa literalmente “eu crio-te” ou “eu elevo-te à dignidade de doutor”. Uma tal homologia nada tem de surpreendente, verificadas, por um lado, as contiguidades entre o cerimonial monárquico, universitário e católico, e por outro, o facto de os cancelários outorgarem os graus de doutor em Teologia e Direito Canónico em representação dos papas.
A propaganda republicana revelou-se extremamente adversa ao cerimonial conimbricense, identificando as insígnias, trajes e rituais como o absolutismo régio de Antigo Regime e com o conservantismo católico. Acusada de “deformar” a juventude, a Universidade de Coimbra era caricaturada como uma anquilosada dama de corte ataviada com adereços barrocos. O processo de hostilização científica, pedagógica, e política, era engrossado pela forma negativa como as elites liam a estética setecentista barroca e “rocaille”, na qual entroncavam as insígnias doutorais. Como se pode constatar, a propaganda republica hiperbolizou no cerimonial universitário os contributos aportados pelo Cristianismo medieval e Contra-Reforma (Missa do Espírito Santo, juramento de fé, investidura, hábito talar) e pela estética barroca (ornamentação das insígnias), tendo omitido toda e qualquer referência ao “Triumphus” romano. Mas, se prestarmos atenção à estrutura do cortejo triunfal, cerca de 50% do cerimonial de investidura doutoral estriba-se na continuidade do “Triumphus” do antigo Império Romano.
O processo governamental republicano, apostado a um tempo na laicização e no abolicionismo, arriscava conquistar poucos adeptos, tanto mais que, como se percebeu em Coimbra nos quatro anos imediatos, a privação do simbólico representava para a instituição conimbricense a morte da sua identidade. A breve trecho, os destrutivos e violentos anos da Grande Guerra, fizeram perceber aos europeus a dimensão de finitude das civilizações e deixaram a nu a niilização resultante dos abolicionismos mais duros. Esvaídos os anos radicais do abolicionismo, começou a tornar-se claro que a reforma da instrução pública também implicara, no caso concreto de Coimbra, um ajuste de contas. Outras instituições detentoras de trajes profissionais e de protocolo, como a Academia das Ciências de Lisboa, ou as escolas politécnicas reformadas e integradas em 1911 nas Universidades do Porto e de Lisboa não sentiram pesar-lhe sobre o pescoço a ameaça da extinção nem foram apodadas de reaccionárias. O receio de represálias governamentais era tal que até 1918 não se realizou em Coimbra a multissecular cerimónia de abertura solene do ano escolar. A partir de 1914 serão os jornais locais, não sem algum bairrismo, que começarão a denunciar a dualidade de critérios dos titulares da pasta da Instrução Pública, reportando nas suas páginas as aberturas de ano académico nas Universidades de Lisboa e Porto, bem como na Academia das Ciências de Lisboa, a adopção da Capa e Batina por assembleias de estudantes de Lisboa e Porto desde 1914, e o uso de insígnias doutorais coimbrãs pelos docentes da nova Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
A partir de 1916 retomou-se o ritual de Investidura dos Novos Doutores, primeiro comedidamente na Sala do Senado (1916-1922), mas confundindo-o duradouramente com a ancestral “creatio”. Reaplicando o disposto nos antigos estatutos, continuou a ser obrigatório para os graduandos do quadro daquela instituição a defesa de dissertação em traje profissional, a presença do Secretário-Geral e do Bedel (a quem competia virar o relógio de areia e proferir o “hora est”) na Sala dos Actos Magnos.
Na prática, Coimbra realizou ao longo do século XX um duplo doutoramento, o administrativo ou profano (proclamado pelo júri e exigido pelo Estado) e o sagrado (pedido ao Reitor, e por ele outorgado através da imposição de mãos e da fórmula «creo te doctorem”).
Esta sobreposição reflecte as idiossincrasias da Universidade de Coimbra e do povo português e tem o mesmo significado da ambivalência grassante desde 1911 entre casamento civil e casamento católico.
Para a esmagadora maioria dos portugueses, mesmo quando não são católicos praticantes, o “verdadeiro” casamento é apenas o católico, realizado em cenário proporcionado por um templo, com o cortejo nupcial e os noivos de fato de gala e vestido branco.
E, não há conservador de registo civil nem alegoria da República que consigam convencer os portugueses do contrário. Da mesma forma que a maioria dos portugueses realiza um duplo casamento (o civil, perante o conservador, e o religioso perante o padre ou pastor), a Universidade de Coimbra promove o doutoramento administrativo (considerado “falso” ou incompleto, porquanto não incorpora a dimensão sagrada e simbólica do ritual ancestral) e o académico propriamente dito, o qual em nada difere do protocolo honoris causa.
O cerimonial conimbricense de investidura ocupa grossa fatia da produção cultural portuguesa, estando referido em obras impressas e trabalhos artísticos: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Dicionário de História de Portugal, enciclopédias sobre a história do traje em Portugal
[17], manuais de protocolo
[18], medalhística (Cabral Antunes)
[19], painéis cerâmicos (Vasco Berardo)
[20], fotografias
[21], postais ilustrados
[22], revistas ilustradas
[23], banda desenhada
[24], pintura
[25], caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro
[26], Francisco Valença
[27], Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro
[28] e Abel Manta
[29], selos de correio
[30] e notas emitidas pelo Banco de Portugal
[31]. As insígnias são de figuração abundante em estátuas de corpo inteiro
[32], bustos
[33], peças sacras
[34], galeria dos reitores da Universidade de Coimbra, galeria dos reitores da Universidade de São Paulo, retratos da Reitoria da Universidade do Porto, galeria dos Bastonários da Ordem dos Advogados, galeria dos Bastonários da Ordem dos Médicos, colecção de retratos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, retratos a óleo dispersos pela Santa Casa da Misericórdia de Coimbra, Diocese de Macau, Torre do Tombo, acervos museológicos (Museu Bernardino Machado, Vila Nova de Famalicão)
[35], foto-histórias
[36], roteiros político-diplomáticos
[37], fotobiografias reportadas a docentes de ensino superior, cientistas, estadistas e Chefes de Estado
[38], bem como apontamentos fílmicos
[39].
Profundamente estigmatizados pela propaganda antimonárquica e anti-Estado Novo, as Insígnias Doutorais e o cerimonial conimbricense tiveram o seu século de obscuridade, posicionável entre o positivismo radical fini-oitocentista e o Maio de 1968, com demoras portugueses para além da Revolução de 1974. Nas décadas mais recentes algo tem vindo a mudar neste discurso. A uma visão estrita e monumentalista do património cultural, estribada em castelos, conventos e museus, sucedeu um entendimento multicultural. O processo de globalização convocou a construção de uma nova consciência patrimonializante, preservadora e responsabilizadora
[40]. Em vez de suscitarem sentimentos de vergonha ou de obscurantismo, estes rituais e símbolos afirmam-se portadores de ascestralidade, originalidade, e propiciadores de fruibilidade cultural. Aquilo que durante muito tempo foi alvo de estigmatização, passou a ser concebido como original – a Borla e Capelo são um conjunto artesanal inconfundível no Ocidente, podendo comparar-se a produções culturais europeias únicas como o “galero” dos cardeais romanos ou o “traje de luces” dos toureiros ibéricos; a Universidade de Coimbra é a única instituição histórica europeia continental a manter parte substancial do antigo cerimonial com raízes medievais.
O presente texto não reproduz ipsis verbis a minuta protocolar clássica consagrada entre 1916-1974. Em bom rigor, procede-se à sua adaptação e actualização, tendo em conta o protocolo salmantinense de Investidura de Nuevos Doctores, realizado desde 1984 em conjunto pela Universidade de Salamanca e Universidade Pontifícia de Salamanca no dia do Patrono São Tomás de Aquino (28 de Janeiro). Simultaneamente atende-se a reparos formulados intra-muros nas décadas de 1980-1990, nomeadamente aos dados reflectidos e publicados em 1993 pelo historiador Luís Reis Torgal
[41].
Na tradição conimbricense, salmantinense e bolonhesa o ritual medieval de imposição de insígnias doutorais foi considerado no transcurso das centúrias festividade de grande gala (actos magnos), por oposição à prática de ritos de menor expressividade e mais recatado significado como a investidura de bacharéis (actos parvus), congregando toda a Alma Mater e mostrando-se à cidade.
A investidura doutoral, ritual ostentatório, caro e luxuoso, encontra paralelo nas grandes cerimónias europeias de entronização de monarcas, papas, reitores, cardeais, bispos e aristocratas, bem como investidura de cavaleiros.
Os cenários e o aparato das vestes e insígnias deveriam corresponder às exigências do acto solene. Nem sempre as universidades ocidentais dispuseram de espaços condignos para a teatralização deste tipo de cerimónias que, além de reunirem todas as Escolas Maiores que compunham um determinado Studium Generale, implicavam a recepção de altos dignitários militares, judiciais, eclesiásticos e municipais, diplomatas, chefes de Estado e figuras da aristocracia.
Portugal, Itália, Espanha e a Grã-Bretanha recorriam às igrejas de certa categoria e dimensão (catedrais), instalando no transepto um palco provisório, feito à base de madeiras desmontáveis, toalhas, alcatifas, cadeiras de espaldar, escabelos, genuflexórios, sanefas e baldaquinos, reservando as bancadas da nave central para os convidados, familiares e alabardeiros. Tais cenários adequavam-se aos actos académicos de média dimensão (licenciatura/exame privado), bem como aos actos grandes (doutoramentos e mestrados solenes), completando a ligação entre o profano e o sagrado.
Enquanto o Studium Generale esteve em Lisboa, era na Sé Catedral que tinham lugar as mais importantes cerimónias de licenciatura, mestrado e doutoramento. No espaço interno das Escolas Gerais realizavam-se as recepções solenes ao Protector, a colação dos graus de bacharel, a abertura solene das aulas e a eleição e investidura dos reitores. Em Coimbra, os actos grandes de mestrado e doutoramento em Teologia e Cânones tiveram lugar na Sé (Velha), mas entre 1540 e 1834 ocorreram regularmente na Igreja do Mosteiro de Santa Cruz.
No Paço das Escolas Gerais efectuavam-se a abertura solene das aulas (“apertura de curso”), recepções a Chefes de Estado, aceitação dos Protectores, actos grandes de Direito, Medicina e Artes Liberais (Sala dos Capelos), actos de licenciatura (Capela de São Miguel), formatura de bacharéis (salas de aulas dos Gerais), eleição e investidura reitoral, velório de lentes e reitores.
Na actualidade ainda há universidades históricas que recorrem ao aluguer de teatros de certa envergadura (Itália). Outras dispõem de teatro próprio (Oxford)
[42]. Outras ainda apostam em anfiteatros (França) e salões.
Os antigos rituais conimbricenses de doutoramento, muito próximos do protocolo de Bolonha e de Salamanca, já não observam o protocolo clássico desde a Revolução Republicana de 1910. Estes rituais tinham sofrido uma primeira severa restrição em 1834, com a nacionalização dos bens da Igreja Católica e incorporação dos bens da Universidade de Coimbra na Fazenda Nacional, tendo o primeiro daqueles actos implicado a expulsão da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Expulsa a ordem monástica, não havia como manter a figura do Magno Cancelário separada da pessoa do Magnífico Reitor. Mesmo que se tivesse pensado em confiar o cargo de Cancelário ao Bispo Diocesano de Coimbra, esta seria sempre uma medida com os dias contados, pois a Universidade vivia crescente escalada de laicização e a prática política deixava adivinhar a separação do Estado da Igreja Católica. Com a supressão da colação dos graus de doutor em Teologia e Cânones em nome e por autoridade delegada dos pontífices romanos, os reitores conimbricenses passaram a colar os graus unicamente mediante “auctoritate regia”, conforme constava no teor de todas as cartas doutorais até 1910.
Suprimidas as grandes cerimónias doutorais de Teologia e de Cânones no Mosteiro de Santa Cruz, em 1834, os doutoramentos breve se restringiram ao recinto do Paço das Escolas Gerais, deixando de ver-se na cidade as famosas cavalgadas doutorais que animavam o terreiro do mosteiro crúzio, a Rua Visconde da Luz (Calçada), Arco de Almedina, Rua das Fangas, Largo da Sé Velha e espaços adjacentes à Alma Mater.
Nas vésperas da Primeira República ainda era costume os moradores da Alta de Coimbra enfeitarem as janelas das ruas próximas da Universidade com vistosas colchas de aparato. Mas o tradicional passeio doutoral já não se via fora de portas. Há muito que a Charamela deixara de ir buscar o candidato a casa, trazendo-o festivamente ao local da examinação/investidura, e idêntico esquecimento acontecia em relação ao toque instrumental que deveria mimosear a Casa Reitoral.
Os préstitos académicos saíam a maior parte das vezes do Observatório Astronómico, edificação setecentista existente ao fundo do terreiro do Pátio das Escolas, atravessavam o recinto pelo lado da Capela de São Miguel, ascendiam o escadório aposto junto ao embasamento da torre sineira, percorriam a Via Latina e penetravam na Sala dos Actos Grandes pela porta fundeira, ouvindo-se por todo o tempo peças instrumentais interpretadas pela Charamela e o incessante dobrar festivo do Sino dos Capelos
[43].
Tudo se passava articulada e sequencialmente, misturando-se fé e ciência: a longa leitura dos pontos da tese perante os arguentes, a votação por meio de bolas brancas e pretas, as “cólicas” que antecediam a aprovação ou a reprovação, a solene Missa do Espírito Santo na Capela de São Miguel com o corpo catedrático das Faculdades, Casa Reitoral, oficiais e archeiros, todos em grande uniforme, os juramentos de fidelidade com a mão sobre a Bíblia ao Dogma da Imaculada Conceição e ao Concílio de Trento.
Missa do Espírito Santo terminada
[44], a Universidade seguia em préstito de gala para a Sala dos Actos Grandes, reactualizando a parada triunfal dos generais romanos. Nos actos de licenciatura, o percurso era inverso, descendo a Universidade da Sala do Exame Privado para a Capela de São Miguel.
A olhos menos habituados e desconhecedores, o grave préstito talvez pudesse confundir-se com uma procissão religiosa. Não nos deixemos ludibriar. A religiosidade continuava lá, mas já não era a mesma da Missa do Espírito Santo. Cultuava-se agora à Sapiência, ou melhor, a Minerva, transpondo para a Alta de Coimbra (dita “Acrópole” e “Lusa Atenas”) os passos fundamentais das grandes festividades gregas dedicadas a Apollus Laurus, bem como o ritual do “Triunfo Romano” dos grandes generais, em notável sincretização entre o legado greco-romano e a cultura cristã medieval.
Da cultura grega remanesciam a imagem entronizada de Pallas Atheneia, com os códices da cultura, o mocho dos estudos (Athena Noctua), o elmo convertido em barrete laureado e a graciosa figurinha de Niké (Vitória alada) em posição de laurear os homens de ciência e cultura.
Da Hélade sobravam laivos dos Jogos Píticos, realizados de quatro em quatro anos no Santuário de Delfos, em louvor de Apollus Laurus, os quais incluíam provas desportivas e competições poético-musicais. Os vencedores eram coroados de louros na cidade de Tempe. Outra incrustação no passeio doutoral e Imposição de Insígnias era o “Romanus Triumphator”, cerimónia militar e religiosa polarizada pelo Triunfo Romano, grande solenidade destinada a consagrar publicamente os comandantes militares afirmados nos campos de batalha extra-muros.
As analogias entre o Triunfo Romano
[45] e o Doutoramento em Bolonha, Coimbra e Salamanca, são por demais evidentes:
-a solicitação do Triunfo ao Senado Romano/à Universidade;
-aprovação do candidato académico perante um júri/aclamação do general pelas suas tropas;
-apresentação de provas académicas e mérito curricular/vitória militar perante exército estrangeiro, matando pelo menos 5.000 adversários;
-espectacular desfile com início no Campo de Marte, passagem pela Porta Triumphalis, Velabrum, Forum Boarium, Circo Máximo, Via Sacra e Monte Capitolino/parada académica entre o Paço das Escolas e a Sé Catedral de Lisboa, ou entre o Mosteiro de Santa Cruz (porta triunfal com anjos trompetistas) e o Paço das Escolas (Porta Férrea e propileus da Via Latina);
-travessia da Via Sacra (Roma)/travessia da Via Latina (Coimbra);
-subida à escadaria do Templo de Júpiter Optimus Maximus (Roma)/ascensão ao paraninfo do Mosteiro de Santa Cruz/Sala dos Actos Grandes;
-a presença de trombeteiros/tocadores de charamelas;
-exibição de insígnias/idem, pelos pajens;
-o general vitorioso fazia-se acompanhar dos seus lictores com os feixes erguidos/o doctorando era ladeado pelo seu Apresentante, levando na frente os bedéis com as maças de cerimónia;
-os despojos de guerra e tesouros conquistados eram exibidos perante Roma/os feitos dos Novos Doutores eram exaltados pelos Oradores;
-o general vitorioso ofertava a Júpiter os louros da vitória/o académico era investido com a laurea pelos “serviços” prestados à causa da Sabedoria;
-o general custeava uma festa ostentatória/o académico suportava a festa;
-terminada a cerimónia pública, o laureado regressava festivamente a casa e convidava os cônsules para um banquete/a cerimónia doutoral rematava com passeio e banquete (prandium).
Analogias, e bem evidentes, se podem assinalar entre o cerimonial doutoral de Coimbra/Salamanca e a Ordenação Episcopal vazada por escrito no pontifical romano. Diferenças? Algumas…
-o Bispo Eleito era “apresentado” por dois bispos ordenantes/o mestre candidato ao grau de Doutor era “apadrinhado” por um Apresentante;
-o rito de Ordenação dos novos bispos dispensava a homilia. O antigo ritual de doutoramento exigia, para Portugal e Espanha uma prévia Missa do Espírito Santo;
-pelo menos desde o século XIII que os bispos ordinandos estavam sujeitos a um interrogatório, reforçado por juramentos de fé ou de fidelidade. Na actualidade são formuladas quatro perguntas, estruturadas de acordo com as orientações do Concílio Vaticano II. Em Coimbra os juramentos de fé e de fidelidade foram abolidos em 1910. Em Salamanca, logo após os ABRAZOS e antes do VÍTOR, ainda se profere juramento perante o Crucifixo e a Bíblia, nos momentos finais do rito de imposição de insígnias. A cerimónia de Investidura de Nuevos Doctores, realizada conjuntamente com a Universidad Pontifícia de Salamanca desde 1984, no dia do Patrono São Tomás de Aquino (28 de Janeiro), começa na “Capilla Universitária” com uma missa solene, seguindo-se o cortejo académico, a cerimónia de investidura e a entrega de prémios a investigadores e mecenas
[46];
-o Bispo ordenante principal e os restantes bispos presentes impunham as mãos sobre a cabeça do neófito ajoelhado, verberando “Accipe Spiritum Sanctum”; o Cancellarius ou o Rector, conforme a natureza dos graus, impunha as mãos sobre a cabeça do graduando ajoelhado (de “rodillas”);
-o ordinando recebia o Livro dos Evangelhos, que primeiramente lhe era colocado aberto sobre a cabeça; em Coimbra e Salamanca os Doutores recebiam o “livro da sabedoria”;
-ao novo bispo se entregavam os símbolos da “traditio”, a Mitra, o Anel Episcopal e o Báculo, insígnias que eram benzidas e entregues com falas rituais latinas
[47]; em Coimbra e Salamanca os novos doutores recebiam o Barrete Doutoral, o Anel Doutoral e o Livro da Sabedoria;
-se o Bispo fosse ordenado na sua catedral, o ordenante convidava-o a tomar posse da catédra. Se fosse ordenado noutro templo, o ordenante convidava-o a sentar-se no primeiro lugar entre todos os concelebrantes; em Coimbra e em Salamanca o Novo Doutor era conduzido pelo Bedel e Mestre de Cerimónias à sua cátedra;
-o cortejo triunfal dos bispos era concretizado em momento distinto da ordenação, coincidindo com a entrada solene na diocese; em Coimbra e Salamanca, o passeio doutoral antecedia por momentos a cerimónia de investidura;
-conclusão da cerimónia com o “osculo”, mediante o qual o bispo ordenante e todos os prelados presentes acolhem o investido no colégio episcopal; ósculo ou cerimónia dos abraços em Coimbra e Salamanca.
Quanto ao ritual de investidura dos cardeais romanos segundo o protocolo anterior a 1969, evidenciemos:
-investidura de joelhos ante a cátedra papal na Catedral de São Pedro;
-solene imposição papal do galero escarlate de cordões e borlas, estando o investido adornado com a Capa Magna e o capuz da murça deitado pela cabeça (Imposizione del Galero)
[48];
-o abraço de acolhimento (Osculum Pacis, Abraccio di Pace);
-imposição do anel cardinalício, em ouro, sendo a gema de safira (Consegna dell’anello);
-a tomada de assento nos cadeirais da Capela Sistina, com cada uma das cátedras sobrepujadas por baldaquino.
Até ao presente não se conhece programa escrito da Cerimónia de Imposição de Insígnias aos Novos Doutores da Universidade de Coimbra. No rescaldo da Revolução Republicana de 5 de Outubro de 1910, em fase de retoma do cerimonial universitário, em 1915-1916, usou-se o mesmo formulário para as situações de Doutoramento Honoris Causa e de Imposição de Insígnias aos lentes do claustro conimbricense que já haviam defendido com aprovação a sua tese científica. A minuta, exarada em 1916, posteriormente dada à estampa na «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», Tomo IX, s/d, p. 285, menciona apenas “Doutoramento”. No período do Estado Novo falava-se em “Doutoramento Solene”, recorrendo os Serviços Académicos ao mesmo formulário para situações honoris causa e de imposição de insígnias a docentes previamente doutorados. É neste sentido que a minuta de 1916 aparece sucessivamente empregue em trabalhos artísticos
[49] ou publicações diversas
[50].
Esta confusão protocolar seria severamente criticada após 1974, e com alguma pertinência, pois se nas cerimónias honoris causa se realiza “um doutoramento solene” com adaptações sobre o miolo do ritual multissecular, já no tocante à Investidura de Novos Doutores a cerimónia não pode considerar-se de doutoramento tout court, uma vez que os candidatos à laurea já prestaram provas académicas de doutoramento perante júri administrativa e cientificamente credenciando. O que estes detentores do Grau de Doutor por uma determinada Faculdade da Universidade de Coimbra fazem é requerer à Casa Reitoral e ao Mestre de Cerimónias a realização do ritual clássico de investidura ou outorga das Insígnias Doutorais. Mas, por se entender que eram o Cancelário ou o Reitor a “criar” os novos doutores, prevaleceu em Coimbra a fórmula latina da petição «Peto Gradum Doctoratus in Praeclara Facultatis (…)», bem como na de Salamanca, Studium Generale onde os candidatos continuam a solicitar colectivamente ao Reitor «Peto (…) gradum doctoris». Não deixa de reconhecer-se certa razoabilidade nesta cosmovisão, uma vez que o júri administrativo declara que um graduando é científica e administrativamente doutor, mas não o eleva à dignidade de doutor nem o acolhe como par na comunidade dos doutores. No caso de Coimbra, a situação era de tal modo complexa, que até 1974 os estudantes só acolhiam plenamente um Novo Doutor depois de o terem submetido à Tourada ao Lente, cerimónia burlesca sucedânea do velho “vexame” que rematava com o docente a ser coroado com uma pasta de estudante quintanista fitado.
Na Idade Média, Antigo Regime, Monarquia Constitucional e Primeira República, eram raros os actos colectivos de Imposição de Insígnias. Ainda assim há notícia de algumas excepções: diversas imposições distribuídas por grupos de lentes de certas Faculdades na Reforma Pombalina de 1772; investiduras de grupo em 1916 e anos seguintes na Sala do Senado, as últimas sem observância do protocolo tradicional, o qual só é plenamente retomado desde 1922.
A carestia da cerimónia e das Insígnias fez com que a partir da década de 1930 os novos doutorados pelas várias Faculdades se organizassem em grupos de 3 a 7, partilhando as despesas
[51]. De facto, os chamados “doutores de carreira”, ou doutores membros do claustro da UC, são obrigados a arcar com a propina de ovos doces, a aquisição da Borla e Capelo, os honorários devidos aos charameleiros, archeiros, bedéis, oficiais, jardineiro, sineiro e banquete que remata a festividade.
À semelhança do que acontece nas Universidades de Salamanca e Complutense de Madrid, esta cerimónia do Capelo ou de Imposição de Insígnias aos Novos Doutores poderá também ser requerida por doutorados pela Universidade de Coimbra que não integram o seu corpo docente. O protocolo a observar será o mesmo, embora não faça sentido praticar-se, na parte final, a Ostentação na Cátedra, o «Osculum Pacis» colectivo nem a entronização nos doutorais.
Em Salamanca e na Complutense, o ritual de Imposição de Insígnias é realizado anualmente, num determinado dia do calendário académico, estando presentes os Novos Doutores de todas as Faculdades, neles se incluindo docentes do quadro e graduandos exteriores à instituição. No caso espanhol, o número crescente de actos académicos, tem feito aproximar a antiga grande cerimónia doutoral do ritual de bacharelato, da “graduation ceremony” realizada nos liceus norte-americanos e da “formatura” praticada nalgumas universidades brasileiras. Outra diferença de vulto entre Coimbra e Salamanca radica no facto de a Alma Mater Conimbrigensis praticar um cerimonial laicizado, enquanto em Salamanca, apesar de não ser obrigatória a Missa do Espírito Santo, ainda se canta o «Veni Creator» e profere o juramento religioso dos laureandos perante o Crucifixo e a Bíblia.
À Reitoria compete fazer chegar aos membros do Claustro Doutoral convites, mencionando o dia e hora em que decorrerá a cerimónia e especificando ao fundo, em letras reduzidas, “Hábito Talar de gala (=com luvas brancas)
[52] e Insígnias Doutorais”.