quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Cerimónia de formatura em Udine

Procurando individualizar o primeiro ciclo de estudos decorrente do processo de Bolonha, em Outubro de 2006 a Università degli Studi di Udine aventurou-se na realização da primeira “graduation ceremony” pós-moderna segundo o paradigma das universidades e academias militares dos EUA.
Houve toga preta à americana, canudo e barrete (“tocco”) atirado ao ar (il lancio del tocco) por 60 formandos conforme usança na maior parte das universidades dos EUA. Este costume, que também é conhecido em algumas universidades britânicas, parece ser uma réplica do “hat toss”, ritual de lançamento do boné praticado desde 1912 pelos finalistas da US Naval Academy.
Se a queda do Muro de Berlim abriu um amplo ciclo de corrida/invenção aos trajes talares por parte dos docentes dos estabelecimentos de ensino superior dos antigos países de leste, os anos de viragem para o século XXI assistiram à consagração das neo-cerimónias de formatura em universidades da Europa Continental longamente associadas as práticas abolicionistas. Enquanto parte significativa da nata intelectual dos corpos docentes de algumas universidades clássicas continuava fiel ao catecismo six-huitard, cultuando a uma leitura monista do tempo linear, da cultura e das vivências, um leque de eventos de curto prazo encarregar-se-ia de torpedear uma tal filosofia da história no que ela comportava de autoritarismo e rigidez.
Às universidades dos antigos países de leste vieram juntar-se, um pouco por toda a Europa, os movimentos cívicos das confrarias gastronómicas e vinícolas, fortemente apostados na revitalização do património imaterial. A movida das confrarias portuguesas, espanholas, francesas, belgas e italianas, não pode ser apressadamente rotulada de surto de reaccionarismo. O espectro dos entronizados centra-se na livre atracção de elites políticas, económicas e académicas, reflectindo projectos de revitalização, divulgação e salvaguarda do património material e imaterial definidos e apoiados à escala internacional pela UNESCO.
Efectuando uma revisitação do século XX, rapidamente se concluiu que a abolição das cerimónias de colação dos graus nas universidades históricas da Europa continental redundou numa certificação meramente administrativa de secretaria, cuja imagem não cessou de deteriorar-se nos anos da massificação do ensino superior. No caso de Coimbra, muitas das vozes que defendiam o abolicionismo ou propunham a substituição dos costumes académicos pelos militares, faziam de conta que as escolas militares não continuavam a realizar rituais de investidura e de formatura. Sinal eloquente de algumas incongruências, o discurso abolicionista reivindicado nos anos de juventude, longe dos círculos familiares e vicinais, era rapidamente esquecido no regresso do “dr.” à terra de origem. Aí, podia acontecer de tudo um pouco, desde o casamento católico ao baptismo dos filhos, passando pela atribuição do nome do avô ao primeiro descendente, à inscrição da criança no clube de futebol do coração ou à sua matrícula em colégio cujo regulamento impusesse farda infantil obrigatória. Revolucionário teórico em Coimbra e conservador na terra, eis um paradigma ideológico comum a muitas das franjas grupais estudantis.
É próprio da juventude contestar os trajes profissionais, insignias e cerimónias, ou achar que estas não fazem qualquer sentido, como é próprio da adultez perceber o seu exacto significado e papel na afirmação das instituições e na regulação das relações sociais. O assunto poderia aliás ser dilucidado in partibus com a conversa entre Antero de Quental e Eça de Queirós, passados anos sobre a juventude e a luta pela abolição da capa e batina. Vestido com desmazelo e roupa coçada, como sempre fizera, Antero tentou fazer ver a Eça que este se convertera num diplomata palaciano que até tinha de usar o grande uniforme napoleónico com bicórnio emplumado e espadim, atitude que Antero considerava um retrocesso civilizacional. Eça, com o sentido de humor que lhe era próprio, olhou para as mangas do casaco de Antero, e vendo-as puídas e sem garbo, replicou-lhe amigavelmente que o grau de civilização que Antero dizia ter atingido se via pelo estado das mangas do casaco que trazia vestido!
A verdade é que as elites académicas, financeiras, desportivas e artísticas do século XX não queriam o abolicionismo tal como ele foi visto e praticado em algumas universidades. Perante a inércia, invisibilidade ou desacreditação de algumas instituições de ensino superior, outras instâncias certificativas emergiram um pouco por todo o Ocidente. Não obstante as críticas e rumores que habitualmente rodeiam a atribuição dos galardões, e dos actos raros de renúncia aos prémios, poucos são os países onde não há prémios para rainhas de beleza, desportistas, jornalistas, cientistas, economistas e gestores, produção cinematográfica, televisiva, musical e literária.
No que respeita ao cinema, citemos os Óscares de Hollywood (desde 1929), o Leone d’Oro e o Leone d’Argento do Festival de Cinema de Veneza (desde 1932), os ursos de ouro e prata do Internationale Filmfestspile Berlin (desde 1952), a Palme d’Or do Festival de Cannes (atribuída desde 1955), ou o Golfinho de Ouro (Festróia, desde 1985).
Quanto a prémios literários e científicos, são sobejamente conhecidos o Prémio Nobel, nas categorias Física, Química, Medicina, Literatura e Paz (desde 1901), e o Pulitzer Prize (EUA, desde 1917).
A indústria musical realiza anualmente nos EUA desde 1958 o Grammy Award (melhor artista, melhor canção, melhor disco…). Anterior a este é o Emmy Awards, instituído nos EUA em 1949 para programação televisiva, que terá servido de inspiração ao português Globos de Ouro, criado em 1996 pela SIC/Revista Caras (música, desporto, moda, teatro, cinema, televisão, personalidades).
No mundo do desporto, não há modalidade que dispense troféus, sejam eles olímpicos ou futebolísticos. No caso do futebol, ao troféu clássico consubstanciado na taça, vieram juntar-se o prémio Bota de Ouro, da UEFA, iniciado em 1967-1968, e o Bola de Ouro, proposto pela revista francesa “France Futball” em 1956. No último exemplo, o prémio resulta de votação realizada por 52 jornalistas desportivos que procuram eleger o Futebolista Europeu do Ano, situação contígua à das eleições para as chamadas “personalidade do ano”.
O mundo financeiro e empresarial não ficou à margem deste fenómeno de premiação, existindo diversos galardões atribuídos a empresários, gestores, banqueiros e economistas. O mais conhecido será o Prémio Sveriges Riksbank, de economia, surgido na Suécia em 1968.
No que respeita às situações apresentadas (sem preocupações de exaustividade), nem eleitores, nem premiados consideram estas cerimónias reaccionárias ou ridículas, visão comum aos entronizados nas diversas confrarias gastronómicas e vinícolas.
Contudo, não seriam nem as confrarias nem as instituições de atribuição de troféus a colocar as universidades europeias em estado de alerta relativamente aos trajes, insígnias e cerimónias que foram sendo declaradas abolidas desde o iluminismo. Enquanto Paris discutia se voltava ou não voltava a usar a “toge”, e Coimbra e os lentes se degladiavam na questão das insígnias, jovens e aguerridas escolas de gestão da Europa Central punham em prática estratégias de promoção da imagem e de colocação dos seus formandos no mercado de trabalho através da adopção descomplexada da “graduation ceremony” dos EUA.
Em universidades francesas, italianas, alemães, suíças, espanholas, e em Coimbra, julgou-se erradamente que se tratava de uma brincadeira de mau gosto. Mas as “business schools” e as “management schools” provaram que não estavam a brincar. O traje e as cerimónias de formatura de cursos, abolidas pelas universidades clássicas reapareciam na Europa Continental pela mão de novas estratégias de marketing. O problema não se colocava nem tinha sentido na Grã-Bretanha, onde as formaturas haviam sido mantidas, mas na Europa Continental as equipas reitorais a braços com o processo de Bolonha viram-se obrigadas a repensar as estratégias de afirmação e promoção das respectivas imagens. Definitivamente, a mera conclusão administrativa do curso deixara de fazer sentido numa era de massificação, de diminuição da procura de matrículas, de desprestígio dos diplomas e de dificuldades de acesso ao mercado de trabalho.

O conceito de património imaterial, pioneiramente praticado por franjas de estudantes da Universidade de Coimbra na segunda metade da década de 1970, é a grande vedeta dos anos iniciais do século XXI. De acordo com os parâmetros UNESCO e a legislação do património cultural que tem vindo a ser adoptada pelos países ocidentais, o património é bem mais do que os convencionais castelos e conventos, devendo evidenciar marcas distintivas e originais. Aquilo que para os modernistas cosmopolitas nada mais era do que provinciano, produto menor ou destituído de valor, ganha pleno interesse na pós-modernidade, convocando políticas de salvaguarda e de responsabilização.
No pós-modernismo, a visão estatal napoleónica, assente no primado da uniformização geral, já não seduz nem convence. Ao contrário dos séculos XIX e XX, que haviam sido de aproximação identitária aos costumes e cerimonial da Universidade de Coimbra, o crepúsculo do século XX testemunhou a proliferação de paradigmas distintivos.
E aqui, aplicando os critérios UNESCO de salvaguarda e revitalização do património integrado em núcleos históricos, a haver algum estabelecimento de ensino português a galardoar, essa instituição será seguramente a Universidade do Minho, onde a reitoria e membros do corpo docente acompanharam a associação de estudantes na afirmação de projectos culturais repassados de criatividade e originalidade em termos de vestes, rituais e festividades.
A Universidade de Udine não está sozinha nesta corrida. O movimento emite sinais de adesão na Suíça, na Alemanha, em Salamanca, no grupo das várias universidades que se acobertam no sólio Paris, e na Bélgica (Gand, retoma da formatura em 2008).
Para início de conversa, faria sentido uma distinção entre a "graduation ceremony" à americana, adoptada pelas "business schools" sem legado patrimonial a respeitar, e a retoma da formatura nas universidades clássicas detentoras de património histórico em estado de hibernação. A observação das experiências realizadas na 1ª década do século XXI na Suiça, Alemanha, França, Itália e Bélgica, diz-nos que se procedeu a um transplante acrítico da "graduation ceremony" americana, aqui e ali com mistura de momentos da cerimónia da entrega dos Óscars, sem atender às especificidades das cerimónias de formatura consagradas nas antigas constituições estatutárias. Salamanca foi a única universidade a tentar revitalizar a formatura a partir da actualização das disposições estatutárias, mas o facto de ter omitido o cortejo na via pública e a não disponibilização de vestes e insígnias, tem comprometido o sucesso da iniciativa.

Fonte: http://qui.uniud.it/

1 Comentários:

Blogger Saturnino Estrada disse...

Muito interessante. Parabéns pelas imagens, textos, temas, enfim: parabéns pelo blog.
Já está entre meus favoritos. Continue postando sobre costumes de vestuário, e terás um seguidor fiel.

Abraços!

27 de agosto de 2014 às 18:14  

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