sábado, 1 de novembro de 2008

O regresso da Formatura em Paris



Remise des Diplômes

Como andam as universidades francesas em termos de cerimónias académicas, em particular formaturas de licenciados e mestres?

O machado de guerra do abolicionismo vestimentário acha-se definitivamente enterrado. Em termos de trajes e cerimonial universitários vive-se uma era de pós-abolicionismo académico. A leitura urdida pelas elites sabedoras francesas entre 1789-1968 sobre a suposta inferioridade cultural das cerimónias, trajes e rituais, perdeu acólitos. Num país, longamente considerado farol do Ocidente, a língua francesa ressente-se de crescente falta de prestígio nas plataformas internacionais e diplomáticas. As pomposas e sucessivas proclamações de morte da arte figurativa e de tantos mais legados culturais ou religiosos, fez da cultura francesa um caso raro de quase paranóica corrida ao novo, ao moderno e ao vanguardista. A partir de 1968, a visão linear do tempo e da história começou a patinar. As elites francesas começaram a acusar cansaço na procura do novo e os líderes do Mai 68, uma vez conquistado o poder, davam sinais de acomodação. A alta costura, após a invenção dos ténis, das calças de ganga e da mini-saia, entrou na fase do reclicado. A arquitectura e o design pós-modernos foram pelo mesmo caminho. Em breve, o desmoronamento da URSS levaria as potências desmembradas a uma procura de trajes profissionais para os mundos universitário e judiciário. Era chegada a era do "vintage" nos estilos de vida e na exibição privada de objectos, estádio último dos vários revivalismos e ecletismos que foram aflorando episodicamente a cultura ocidental desde o Romantismo de oitocentos.

A pouco e pouco, as elites francesas começaram a perceber que a França, à força de interditar e de abolir, já não tinha muito mais por onde abolir. Ultrapassado o ciclo duro das funções do estado de polícia, que especificidades restavam a uma Montpellier ou a uma Sorbonne, num país onde o centralismo napoleónico e a visão homogenizadora ditaram a generalização do mesmo modelo de "toge" em todas as universidades e escolas normais superiores?

O abolicionismo de matriz francesa, era apenas uma filosofia da história, de credo restrito, como aliás o tempo veio a demonstrar, ou resultava naturalmente numa evolução universal querida pelos intelectuais? Que a visão francófona era demasiado contingente, bem o demonstram as práticas não abolicionistas mantidas nas universidades britânicas, australianas, canadianas e norte-americanas.

Que o desejo de um grau zero das cerimónias e troféus não correspondia a um fim querido pela maioria dos países, bem o demonstraram no século XX os associados e entronizados nos clubes de futebol, jogos olímpicos, oscarizados de Hollywood, premiados por cadeias de televisão, associações de empresários e confrarias báquico-gastronómicas. Uma breve análise empírica dos entronizados e premiados por instituições não universitárias atribuidoras de diplomas e galardões vem revelar um universo masculino e feminino detentor de escolaridade média/ou elevada, que atravessa profissões como professor universitário, jornalista, director de empresas, ministros e secretários de estado, dirigentes de clubes de futebol, bispos, dirigentes municipais, governadores civis, médicos e juristas.

A neo-cerimonialização da concessão de diplomas e a publicitação de projectos de mérito começou a ganhar adeptos no Ocidente em escolas superiores ligadas ao marketing e à gestão (business schools), que lançando mão de estratégias aguerridas para promoção dos seus cursos, alargamento do universo de matriculados e conquista do mercado do trabalho, apostaram na apropriação de derivados da "graduation ceremony" das universidades norte-americanas.

Nas décadas de 1980-1990, o "commencement" ou "graduation ceremony" alastrou um pouco por todo o Ocidente e Ásia Oriental, em universidades e politécnicos, com a realização de mega-festas em relvados e estádios onde os alunos recém-formados aparecem com a toga e o barrete à "americana". Na primeira década do século XX, a importação da "graduation ceremony" passou a ser praticada em universidades da Suiça (ex: Lausanne), da Alemanha (Bona), da Itália e da França. No Brasil e em diversos países da América Latina, cerimónia idêntica oscila entre a simbólica norte-americana, influências espanholas e o que se julga ser a tradição da Universidade de Coimbra. Em Itália vai-se ao ponto de naturalizar a cerimónia do atirar o barrete, numa imitação discutível de uma cerimónia praticada pelos "marines" norte-americanos que no final da formatura lançam ao ar os bonés.

As universidades portuguesas continuam a guardar mutismo nesta matéria, não se sabe por quanto tempo mais. Nas universidades privadas, a formatura nunca chegou a instalar-se, nem sequer nos anos dourados da expansão, quando o pagamento das propinas poderia ter servido de argumento para reivindicar a realização deste tipo de cerimónias. Por outro lado, importa não perder de vista que certas franjas do professorado, aparentemente indiferentes ou hostis à realização de cerimónias nas universidades onde trabalham, não deixam de envergar os gorros e cachecóis dos seus clubes de futebol, nem rejeitam os rituais de investidura de inspiração neo-feudal que lhes são oferecidos por confrarias vinícolas e gastronómicas.

Em Coimbra, nada de relevante se fez ou discutiu, numa universidade onde tem prevalecido falsos rituais e símbolos de formatura como a missa da benção das pastas, a cartola e bengala, o rasganço das vestes e o anel de curso. O retorno da cerimónia de formatura foi requerido em 1915 e em 1989. Quando se discutiram os primeiros estatutos pós-1974, a Doutora Maria Helena da Rocha Pereira instou vivamente o senado a retomar a antiga formatura, com as devidas adaptações. Argumentos consistentes não faltavam, tanto mais que a proponente conhecia o antigo cerimonial suspenso desde 1910 e estava familiarizada com o "encaenia" de Oxford. Na altura, a Secretaria-Geral da UC contra-argumentou que não havia possibilidade de realizar-se a formatura por não ficarem prontas a tempo as cartas de curso, cuja morosidade de confecção é bem conhecida (o pergaminho, o latim, o selo de cera). Mas este argumento não colhe fundamento, uma vez que na UC nenhuma cerimónia de outorga de graus se baseia na entrega em mão e exibição de diplomas, ao contrário do que é uso mediático nas universidades norte-americanas. O cerimonial conimbricense e salmantinense de colação de graus assenta em desfiles públicos, palavras sacramentais, recitação de orações ou de lições e imposição de insígnias. Mesmo no caso de algumas universidades britânicas onde se procede à suposta entrega do diploma, o que cada graduando exibe para a fotografia é uma réplica de carta de curso não assinada nem selada, reservando-se para data posterior a entrega do verdadeiro diploma. E hoje em dia não faz grande sentido que, propinas pagas, dinheiro da carta de curso depositado, cerimonial e insígnias exarados nos antigos textos estatutários, a UC continue a não realizar a cerimónia de formatura, tanto mais que se prepara a candidatura da Alma Mater Conimbrigensis a património da Unesco.

Em Espanha, a Universidade de Salamanca recuperou a antiga cerimónia de formatura de alunos em 13 de Maio de 2000, desde então anualmente repetida, com base numa adaptação do cerimonial académico de 1720. Constam do acto um juramento colectivo, discursos do Decano e Vice-Decano e de um aluno em representação de todo o curso, chamada nominal, pedido de concessão do grau em latim, imposição do barrete doutoral da faculdade respectiva na cabeça do graduando, entrega de uma reprodução da antiga carta de curso de bacharel e subida à cátedra do aluno representante do curso. Numa fotografia de 2003, a que tivemos acesso, os alunos de Salamanca estão em traje civil, não se assinalando vestígios da antiga loba e mantéu (oficialmente abolidas em 1834).

Em França, a École de Management de Grenoble foi uma das primeiras a lançar-se na realização da "Remise des Diplômes". O rápido mediatismo atingido por Grenoble fez enciumar Paris. Aquilo que para os sisudos liberais de antes da Grande Guerra fora um símbolo de obscurantismo, transformava-se cerca de cem anos mais tarde numa mercadoria utilizável como estratégia de afirmação no mercado concorrencial. Em Novembro de 2007, Paris II realizou a primeira "remise" em anfiteatro. O evento integrou um desfile de 84 estudantes, bedel com maça alçada e corpo docente em "toge rouge", discursos solenes e entrega de diplomas e troféus de vidro, numa espécie de mistura de "graduation ceremony" com a "paume d'or" cinematográfica de Cannes. O reitor não escondeu que a "remise" assentou numa estratégia de afirmação da imagem externa da Paris II. Paris VI (Pierre-et-Marie Curie) realizou a sua primeira cerimónia em 2007 e Paris V (Descartes) anunciou a sua para 2008.

Marie-Estelle Pech, jornalista do "Le Figaro" ("Remise de diplômes façon Harvard à Assas", 30.11.2007), mostrou-se benevolente na descrição do evento e comparou-o com a "graduation ceremony" de Harvard. O que mais pareceu chamar a atenção das famílias dos graduandos e jornalistas não foi a cerimónia em si, mas o facto destes estarem vestidos com a "cap and gown" norte-americanas.

Uma espreitadela ao site da Sorbonne revela que o mesmo tipo de cerimónia, com trajes norte-americanos, foi praticado em 2006 no encerramento do Cours de la Civilization Française (cf. "Céremonie de Remise des Diplômes", http://www.ccf-sorbonne.fr/Ceremony-of-handing-over.of.html), numa instituição que não parece nada preocupada em não praticar o seu cerimonial específico remontante à Idade Média. Dado a reter, os 22 comentários on-line ao artigo de Estelle Pech são ostensivamente compreensivos quanto ao gesto encenado em 2007 por Paris II.

Foto: formatura 2007 em Paris II

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