sábado, 15 de novembro de 2008


Boné germânico (1)
Boné verde de uma agremiação académica da Universidade de Heidelberga num bilhete postal ilustado de 1906. Os estudantes de Coimbra conheciam muito bem o boné prussiano, pois esta peça de vestuário fizera parte da sua farda enquanto membros do Batalhão Académico que nos Açores e em Portugal continental combateu ao lado do exército de D. Pedro IV (1828-1833). Após a desmobilização, os estudantes não popularizaram em Coimbra o boné prussiano, tendo permanecido arreigados ao gorro ibérico dos alunos pobres. Pelo mesmo caminho andaram os liceus, escolas agrícolas, escolas politécnicas e escolas comerciais e industriais portuguesas fundadas no curso do século XIX.
Ao longo do século XIX, à medida que as vozes dos lentes e dos estudantes de Coimbra foram subindo de tom na reclamação da abolição da capa e batina, momentos houve em que o uniforme militar pareceu ganhar partidários, enquanto via alternativa. A memória positiva da participação dos escolares nos batalhões académicos e o favor tributado ao grande uniforme napoleónico em todo o Ocidente pareciam ditar um futuro risonho às fardas militares na Universidade de Coimbra.
O decreto regulamentar de 25 de Novembro de 1839 que instituiu polícia académica em substituição do antigo foro privativo, não se limitava a confirmar o porte do traje talar para os estudantes e lentes, a legitimidade policiadora do corpo de archeiros, o poder disciplinar do Conselho de Decanos, o cárcere académico e as penas de expulsão temporária e definitiva.
Na realidade, este dipoma ia mais longe, declarando expressamente que os alunos militares pudessem frequentar as aulas, actos e cerimónias com farda militar. Ou seja, as fardas militares não eram consideradas traje académico, mas podiam ser usadas pelos alunos com estatuto militar em pé de igualdade com a capa e batina, sendo mesmo permitido aos quintanistas o porte de pasta de luxo com fitas de seda.
Esta abertura ao imaginário militar procurava de alguma forma aproximar a Universidade de Coimbra dos uniformes militares em moda nas associações de estudantes germano-austríacas e em instituições francesas como as escolas politécnicas, escolas de artes e ofícios e academias científicas e literárias. Era também uma manobra de distração ofertada aos acerados críticos do cerimonial, vestes e insígnias conimbricenses, sistematicamente acusadas de obscurantismo e jesuitismo. E, acrescentamos nós, era uma forma relativamente eficaz de o legislador calar os descontentes que, bem informados, sabiam que o governo central de Madrid abolira em 1834 a antiga loba e mantéu dos alunos espanhóis.
As críticas, formuladas a quente e em tom empolado devem ser devidamente matizadas, pois nem a generalidade dos estudantes universitários europeus e norte-americanos da época caminhavam para o abolicionismo de vestes e insígnias, nem o cerimonial e fardas de gala militares eram menos complexas do que o cerimonial universitário, católico ou monárquico.
No momento do abolicionismo, nem a Academia de Coimbra aderiu de forma generalizada à supressão do traje, nem as soluções individuais e colectivas foram ao encontro das fardas militares. A capa encontrava-se mitificada pelo dicurso poético e literário romântico, e pelo folclore conimbricense, sendo praticamente impossível contorná-la. Além do mais, sem traje, repontavam os tradicionalistas, não se podiam exercer os rituais praxísticos. O próprio Eça de Queirós, na rememoração da liderança contestatária e heróica de Antero de Quental, não deixara de o associar à capa no adro da Sé Nova.
E, a pesar mais do que o romantismo e os afectos estava a cultura tradicional académica, elitista e xenófoba em relação ao corpo de polícia cívica (fundada em 1867) e aos contigentes militares que haviam cercado a Universidade durante a Greve Académica de 1907. Vociferando contra o controlo disciplinar praticado pelos archeiros e o pelo Conselho de Decanos, os estudantes perceberam logo em Outubro de 1910 que a abolição do regulamento disciplinar interno e da cadeia académica significava a sua entrega à polícia cívica, ou ao exército (caso fossem estudantes militares). E não gostaram do desfecho.
A tradição académica conimbricense não era benévola para com os corpos policiais, colocando o caloiro abaixo de cão mas acima de polícia. Rivalidades corporativas e uma relação baseada na hostilidade crescente conduziriam, em 1913, um grupúsculo de estudantes a roubar um boné a um polícia no Teatro Avenida. O conflito, conhecido por "Olha o Boné" (facécia ainda lembrada na década de 1980), levou a que entre 1913 e os finais da década de 1940 o dia do roubo, 27 de Maio, fosse decretado "feriado" e celebrado com a grande parada alegórica do cortejo da Queima das Fitas.
O boné de pala viria a ser usado em Portugal por grupos profissionais sem qualquer ligação ao mundo escolar: oficiais da marinha, forças policiais civis, aguadeiros galegos, padeiros citadinos, tipógrafos, empregados de oficinas metalúrgicas, moços de fretes, maquinistas e fogueiros de combóios, carregadores de gares ferroviárias, carteiros, porteiros e chauffeurs. A nobreza passou-lhe ao lado, bem como a alta burguesia de coco e cartola, e o mesmo aconteceu com o povo português em cujas indumentárias regionais permaneceram até tarde os chapéus de feltro e de palha, os gorros e as carapuças.
Quanto à barretina redonda, de tipo islâmico, popularizada na Europa por academias de cadetes e pelos veteranos universitários alemães, austríacos e suiços ligados a clubes de esgrima, entre as décadas de 1890-1920 foi possível avistá-la em alunos e alunas do Liceu de Évora, liceus do Porto, liceus de Lisboa e Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. E em Coimbra? O antigo gorro era bem pouco usado no século XIX. Para a 1ª metade da década de 1880, Trindade Coelho informa nas suas memórias que o antigo gorro tubular preto convivia amistosamente com um boné preto (de pala dianteira rígida?). Em 1889, António Nobre, de cabeça descoberta, fez-se fotografar ao lado de Alberto de Oliveira e António Homem de Melo, os dois últimos com barretinas de tipo "fez" ou cadete. Numa crónica de 15/10/1898, "O Conimbricese" informava em tom crítico que o antigo gorro era usado em pé igualdade com gorros curtos e bóinas de tecido azul. Quase nas vésperas do abolicionismo, o edital reitoral de 21/09/1907, procurava suster o uso de coberturas de cabeça que não respeitassem a configuração e cor do velho gorro.

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