sexta-feira, 31 de outubro de 2008


Alunas de liceus portuenses
Alunas de liceus portuenses (não identificados) em peditório para os feridos da Grande Guerra, conforme imagens divulgadas pela revista Illustração Catholica, Ano IV, Nº 198, de 14 de Abril de 1917.
Até à consagração da legislação abolicionista promulgada após o 5 de Outubro de 1910, em Portugal não há notícia do uso de qualquer uniforme por parte das alunas que frequentaram os liceus, a Universidade de Coimbra ou as Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto. A opção crescentemente generalizada pela capa e batina de Coimbra, após a Conferência de Berlim, não parecia reunir ingredientes satisfatórios para uma extensão unissexo ao universo feminino. A excessiva aproximação ao traje masculino burguês oitocentista retirara à capa e batina estudantil a sua feição talar, pormenor denunciado por José Ramalho Ortigão em 1888, o que na prática implicava duradoura impossibilidade de feminilização. Não sendo propriamente fácil, o processo de feminilização não era radicalmente impossível, se tivermos em consideração a adaptação de fardas militares a certos corpos femininos no decurso da Primeira Guerra Mundial.
A inércia coimbrã nesta matéria não encontrou melhor solução nas recém-instituídas universidades de Lisboa e Porto. Os anos que se sucederam à instauração da República não foram favoráveis aos trajes e cerimonial académicos, e quando as universidades de Lisboa e Porto se decidiram pela continuidade da toga das antigas Escolas Médico-Cirúrgicas, a questão não ficou inteiramente resolvida: os adeptos da toga tiveram de conviver com os defensores do abolicionismo e as facções que de forma mais ou menos persistente foram preferindo o hábito talar dos lentes de Coimbra; à semelhança de Coimbra, a discussão sobre a adopção de um traje institucional cingiu-se ao ponto de vista dos corpos docentes, não tendo havido por parte daqueles qualquer conscencialização quanto à necessidade de integrar os estudantes como elementos activos da instituição formadora. O facto de as universidades portuguesas fundadas em 1911 não terem optado pela realização de cerimónias de formatura para bacharéis e licenciados, legitimou atitudes de inércia quanto aos trajes discentes. Entregues a si próprios, em atitude de não diálogo com os senados das instituições em que se encontravam matriculados, os alunos/alunas optaram quase invariavelmente pela capa e batina de Coimbra, numa época em que a visão do estado e da sociedade pareciam apontar para princípios de perfectibilidade como o centralismo e a homogeneidade.
A obrigatoriedade de uso diário de uniforme estudantil na Universidade de Coimbra foi abolida por Decreto de 23.10.1910, situação de certa forma extensiva aos liceus onde o porte diário masculino fora autorizado por diplomas do Ministério do Reino. O diploma referido não declarava abolido o traje, apenas o tornava facultativo, tanto mais que no curto prazo a esmadora maioria dos alunos da UC, da TAUC e do Orfeon Académico manifestaram vontade de continuar a envergar a capa e batina. Entre 1911-1912, na Universidade do Porto, Tuna e Orfeão foram pelo mesmo caminho. A maior parte dos liceus manteve a capa e batina que já era usada desde a segunda metade do século XIX, ou a ela aderiu. Seguindo na esteira dos movimentos em vias de expansão nas high schools britânicas, norte-americanas e japonesas, as alunas dos liceus de Lisboa e do Porto surpreenderam ao optarem pela invenção de um uniforme facultativo de tipo "high school".
Em Lisboa, alunos dos liceus tocaram a reunir por alturas de Setembro/Outubro de 1915, com o fito de discutir e aprovar que trajes envergar por alunos e alunas. Estas sessões terão sido participadas por alunos da Universidade de Lisboa que decidiram adoptar a capa e batina. Alunos mais radicais reclamaram mesmo obrigatoriedade de porte, mas na prática, o uso da capa e batina ficou confinado aos edifícios do Campo de Santana e a grupúsculos masculinos da Faculdade de Direito.
Na Universidade do Porto, em reunião inter-faculdades, realizada em finais de Fevereiro de 1916, decidiu-se implementar o uso generalizado da capa e batina a partir do dia 15 de Março de 1916. Faltam-nos dados sobre as matérias deliberadas nestas reuniões e perfil dos participantes, não sendo possível apurar se a decisão abrangeu alunos e alunas da UP, ou se marcaram presença alunos/alunos dos liceus. A "Gazeta de Coimbra", nas suas edições de 27.10.1915 e 4.03.1916 dá conta que em Lisboa já se viam "meninas" trajadas, certamente liceais. Aliás, a promulgação do Decreto nº 10.290, de 12.11.1924, que procedeu à nacionalização da capa e batina nos liceus e ensino superior, teve como antecedente imediato um conflito entre uma liceal e um reitor de um dos liceus de Lisboa por conta do uso ou não uso de traje.
O traje feminino, espontaneamente consagrado em Lisboa no segundo semestre de 1915 é um tailleur preto, à base de saia pela meia perna, casaco cintado, cortado pelo meio da coxa, e blusa branca. A gravata demoraria a impor-se. Este fato, de linhas trapezoidais, era o mesmo envergado pelos corpos de enfermeiras da marinha, nos EUA (em azul marinho, com capote e chapéu de abas), e em certos hospitais europeus pela mesma época (em cinzento), conforme determina o Decreto nº 4:136, de 24.04.1918, que o manda aplicar às enfermeiras militares portuguesas.
Ao referido conjunto se adicionou uma capa preta, e conforme atestam as fotografias supra uma barretina redonda. Este último elemento, resulta de uma transformação do barrete islâmico do magrebe, o "chéchia" ou "kufix", que também era usado desde 1859 em escolas militares britânicas de formação de cadetes ("pillbox hat"). Antes de ter feito a sua entrada triunfal nos liceus de Lisboa, Porto e Évora ("tacho"), em versão unissexo, o "pillbox" já era largamente usado em Portugal por militares e impedidos de oficial.
(as fotos relativas ao Porto foram cedidas pelo Doutor J. C. D.)

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