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quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Palais de Tokyo
França, pavilhão da Expo Universal de 1937 em Paris. Eis um bom exemplo da aplicação do classicismo monumental num país democrático europeu de finais da década de 1930.
O projecto foi assinado por uma equipa constituída por quatro autores, Jean-Claude Dondel (1904-1989), André Aubert, Paul Émile Viard e Marcel Dastugue (1881-ca.1960), e oficialmente inaugurado no dia 24 de Maio de 1937. A colaboração artística prestada por Antoine Bourdelle faz com que, por vezes, aquele escultor surja referenciado como co-autor da obra.
Conjuntamente com a Guerra Civil de Espanha, a "Exposition Internationale des Arts et Techniques" de 1937 constituiu uma espécie de segundo campo de ensaios para o arranque do conflito mundial, ali se tendo enfrentado ameaçadoramente pavilhões robustos e colossais (ex: o frente a frente da URSS/Alemanha nazi).


Palais de Justice de Rabat
Marrocos, cidade de Rabat, complexo do Palácio de Justiça. Em vez do estilo "mourisco" ou "neo-mourisco" (como aliás acontece no Palais de Justice de Casablaca), o edifício de Rabat acusa a recepção do classicismo monumental cultivado na Europa das ditaduras de direita e no leste autocrático.


Piacentini
O arquitecto italiano Marcello Piacentini (1881-1960) com o grande uniforme "napoleónico" de «accademico d'Italia»: casaca bordada a ouro, calça avivada, espada, bicórnio emplumado e capote militar com gola de bico e forro de setim.
Piacentini exerceu forte sedução junto de projectistas e políticos ao longo da década de 1930. Mais do que qualquer outro seu contemporâneo, Piacentini encarnou e traduziu plasticamente a ideologia do regime fascista italiano. Por volta de 1930 a Itália de Mussolini começara a dar que falar nos jornais e revistas ilustradas ocidentais graças ao lançamento de empreitadas de grande envergadura como as auto-estradas e as suas "áreas de serviço".
O Ministro das Obras Publicas de Oliveira Salazar, Duarte Pacheco deixou-se seduzir pelas realizações italianas e incutiu esse gosto aos seus directos colaboradores e discípulos. O conhecimento da obra dos italianos realizava-se através de agentes diplomáticos, investigadores universitários, leitura de revistas de propaganda, aquisição de livros e manuais, jornais e visitas de estudo.
Nas décadas de 1930-1940 a Itália de Mussolini transforma-se num poiso de visita obrigatória e como tal era citada em relatórios, memorandos, anteprojectos arquitectónicos e notas curriculares solicitadas pelos serviços de Estado.

Palazzo della Civiltà Italiana
Outro exemplo da arquitectura de regime pode visualizar-se neste projecto de G. Guerrini, E. Padula e M. Romano, Roma, 1937-1940. Palácio colossal em forma de torre inexpugnável, oscilando entre o Coliseu de Roma e a Torre de Pisa, pretendia exaltar os valores místicos da "romanidade" pregada pela propaganda mussoliniana. As legendas epigráficas continuam a ocupar lugar de destaque nestas invenções de megacenários urbanos, a tal ponto que os cenaristas e decoradores arregimentados pelo regime italiano parecem competir com a nata dos decoradores e cenógrafos de activos em Hollywood.
Num caso, o monumentalismo emprestado ao décor dos filmes históricos era efémero, perdurando apenas na película. No outro, os cenários eram concretizados com base em matérias primas robustas, preparadas para resistirem à erosão, como sucedera com as civilizações egípcia e romana.


Projecto da Cidade Universitária da Universidade do Brasil
Maquete de Marcello Piacentini/Vittorio Morpurgo (1937) encomendada pelo Ministro da Educação do Estado Novo de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema.
Capanema anunciou em 22 de Julho de 1935 a intenção de edificar a Cidade Universitária do Brasil. Em Maio e Junho de 1935 foram estabelecidos contactos entre o governo brasileiro e Piacentini através da Embaixada do Brasil em Roma. A 13 de Agosto de 1935 Marcello Piacentini deslocou-se ao Brasil e estudou o local destinado à implantação do projecto. Retornado a Roma em 24 de Agosto desse ano, comprometia-se o técnico italiano a elaborar os anteprojectos e maquetes solicitados pelo governo brasileiro. Entretanto, o Conselho Regional de Engenharia e Arquitectura do Rio de Janeiro exarava o seu descontentamento pela opção ministerial.
O Ministro fez nomear uma comissão brasileira destinada a apoiar Piacentini, mas a equipa exigiu endereçar convite a Le Corbusier. Por seu turno, uma facção pró-hitleriana insistia na necessidade de estabelecer contactos com os técnicos a serviço do Reich Jansen e Mach. Le Corbusier chegou ao Rio a 13 de Julho de 1936 e nesse mesmo ano elaborou um projecto de Campus Univsersitário assente na ideia de um parque/jardim com pavilhões e infra-estruturas dispersas assentes em estacaria de betão.
Capanema não estava nada interessado na proposta esboçada por Le Corbusier. Em 1937 declarou extinta a comissão brasileira de apoio a Piacentini e voltou a contactar o arquitecto de Mussolini. Em Setembro desse ano, Piacentini enviou ao Brasil como seu representante o arquitecto Vittorio Morpurgo com vista a aprofundar os estudos. Concluídos os esbocetos e a maquete, esteve esta exposta na Embaixada do Brasil em Roma, após o que foi remetida ao Brasil.
O projecto mereceu grande destaque por parte da imprensa fascista da época. Piacentini/Morpurgo seguiam de perto o projecto da Cidade Universitária de Roma, oscilando entre o biologismo e o urbanismo monumental do antigo Império Romano. A masterpiece da maquete era a Reitoria, espécie de cérebro e torre de comando centralizada, disposta no topo da alameda. Da Reitoria nasciam alas simétricas destinadas a albergar a Faculdade de Ciências, Letras e Filosofia, Direito e Ciências Sociais, além de um Hospital, Estádio desportivo, Museu e outras infra-estruturas. O acesso ao recinto far-se-ia através de um pórtico monumental destinado a enfatizar o pavilhão reitoral. Evidenciando traços comuns a Roma e a Coimbra, o projecto São Paulo remete para um universo omnisciente, fechado sobre si próprio, menos tributário do forum romano imperial e proventura mais próximo da organização interna dos templos faraónicos do antigo Egipto.
Apesar dos esforços de Capanema e dos honorários pagos à dupla italiana, a empreitada da Cidade Universitária do Brasil nunca saiu do papel.
[mais informação em Simon Schwartzman, Helena Maria Bomeny e Vanda Costa, "Tempos de Capanema", http://www.schwartzman.org.br/simon/capanema/capit3.htm]


Cidade Universitária de Coimbra
Pensada por Duarte Pacheco e José Cottinelli Telmo, e continuada por Cristino da Silva, a inacabada Cidade Universitária de Coimbra configura um mau exemplo de imposição da vontade do Estado sobre um local profundamente marcado pela história e pela antropologia. Outro exemplo português digno de comparação é a antiga aldeia de Vilarinho das Furnas.
À semelhança das operações de arrasamento levadas a cabo por Mussolini em Roma, e por Ceausesco em Bucareste, o Estado Novo impôs a demolição da antiga Alta de Coimbra para ali concentrar uma impossível cidade universitária.
O projecto, eivado de ambições monumentalistas e comportando inequívoca linguagem totalitária, não quis compreender nem o sítio, nem as pessoas que ali habitavam. Nesta maquete pode inteligir-se o que se pretendia construir na Praça de D. Dinis, numa imitação de Piacentini e da Cidade Universitária de Roma.
O que impressiona na releitura das intervenções dos homens de saber que eram os lentes da casa - os quais foram dando opinião sobre o projecto -, é a incapacidade revelada em demonstrar que o paradigma da Acrópole como "Lusa Atenas" não era compaginável com a Roma imperial. Mas Duarte Pacheco era lá homem de escutar quem se lhe atravessava no caminho?
[imagem divulgada por Nuno Rosmainho Rolo na sua tese de doutoramento sobre a Cidade Universitária de Coimbra]


Universidade de Roma
Extensa galeria porticada, com os lintéis repletos de mensagens epigráficas, e a contrastar com recurso à tijoleira, o imóvel do Instituto de Engenharia. Partindo do plano da Cidade Universitária concebido por Piacentini, este pavilhão foi confiado ao arquitecto Analdo Foschini, tendo a construção decorrido entre 1932-1935.
Ao contrário dos regimes de Mussolini e de Franco que em curto e médio tempo realizaram obras públicas de grande envergadura, o regime português deixou arrastar no tempo as obras das cidades univsersitárias de Coimbra e de Lisboa, empurrando-as assim para os caminhos do anacronismo estético e da inconclusão dos projectos.
No projecto de Coimbra, pórticos monumentais idênticos a este fechariam a Praça de D. Dinis, ligando superiormente os pavilhões dos Hospitais (não construído, local do Colégio de São Jerónimo), Faculdade de Medicina, Faculdade de Ciências (imóvel de Física e Química) e o Departamento de Matemática.


Minerva Guerreira
Praceta de honra fronteira à Reitoria da Universidade de Roma (trabalho de Martini, 1935).


Reitoria da Universidade de Roma
Propileus monumental da Reitoria da Universidade de Roma-La Sapienza, da autoria de Piacentini. Sendo tributário do classicismo, é sobretudo um cenário faraónico. Piacentini possuía informação sobre a arquitectura egípcia, não tendo deixado de recorrer a tais raízes no monumento funerário que projectou para albergar os restos mortais do cientista Marconi.
Na praceta fronteira ergue-se uma não menos dominadora e agressiva estátua erecta de "Minerva Guerreira", munida de capacete e escudo, com a lança em riste. A agressividade cultivada pelo regime fascista italiano está bem patente nesta escultura de Arturo Martini (1935), trabalho que José Leopoldo de Almeida conheceria, pois junto aos cunhais dos imóveis de Medicina e Físico-Químicas da Cidade Universitária de Coimbra encontramos ecos do "modo" Martini, bem patentes na moldagem de aguerridas "minervas" que não se enquadram na linhagem das "sapiências" e "minervas" que ao longo dos tempos foram sendo produzidas para a Universidade de Coimbra.

Reitoria da Cidade universitária de Roma
Reitoria e pavilhões adjacentes da Universidade de Roma, marcados pelo colossalismo severo da fachada de honra, na qual Piacentini enfatizou as funções de comando com recurso a esquemas geometrizados de fenestração, escadório de aparato e propileus monumental. Os pavilhões adjacentes, de altimetria mais comedida e fenestração repetitiva, confirmam a subordinação dos saberes à ideologia dominante.
Tal como em Coimbra, a ornamentação de fachadas é muito sóbria, impondo-se como "lição" sócio-cultural apoiada pela indispensável mensagem epigráfica. Apercebível e visitável desde 1935, a Reitoria de La Sapienza exerceria irreprimível fascínio nos técnicos de obras públicas dos regimes autoritários de entre guerras.
A moda do classicismo monumental de fácies austero penetrou as fronteiras dos regimes autocráticos de esquerda e seduziu arquitectos activos em países democráticos. A Exposition Universelle de Paris-1937 constituiu o grande momento de convergência exibicionista do gosto classicista monumental. Nessa exposição, inaugurada em 24 de Maio de 1937, como distinguir o Palais de Tokyo (Dondel/Aubert/Viard/Dastugue) dos projectos ali ostentados pela Alemanha, Itália ou União Soviética?
Mais tardiamente, a moda do classicismo monumental totalitário continuaria a lavrar caboucos nas autarcias de esquerda, servindo de exemplo as intervenções de Ceausesco na cidade de Bucareste.


Cidade Universitária de Roma
Vista da cabeça (reitoria), «braços» (pracetas laterais e pavilhões recuados), coração (praça central com a estátua de Minerva guerreira), e início do «tronco». Esta fotografia permite assinalar no projecto a apropriação do esquema imperial romano ortogonal (interprepação de Nuno Rosmaninho), mas também possibilita uma terceira leitura: a metáfora biológica convive com bem evidente apropriação da planta de cruz latina, multissecularmente empregue pela Igreja Católica Romana, com a sua capela-mor (reitoria), transepto e nave central.


Cidade Universitária de Roma
Vista aérea da alameda central, pavilhões laterais, praça de honra e reitoria. Concebido por Marcello Piacentini, o projecto desenvolveu-se entre 1932-1935, erigindo-se em paradigma visitável e reproduzível em contextos ditatoriais internacionais da década de 1930 como Madrid, Coimbra, Lisboa, São Paulo, quando os regimes autoritários procuravam solucionar a carência de obras públicas por via da imposição propagandística de um discurso artístico classizante e monumentalista.


Cidade Universitária de Roma
Planta da Cità Universitaria di Roma-La Sapienza, opus magnus do regime fascista e do seu arquitecto "oficial" Marcello Piacentini. Não tendo consagrado os planos panóticos ou bigbrotherianos amplamente edificados ao longo do século XIX no Ocidente (prisões, hospitais psiquiátricos: planta em estrela, planta em duplo círculo), os regimes autocráticos professavam idêntica ambição de vigilância social.
A ideia da cidade universitária fascista assentou num modelo organicista ou biológico que concebia a planta e os edifícios como um harmonioso corpo. Para construir esse corpo saudável, o estado permitia-se amputar as estruturas pré-existentes, usando e abusando da figura da expropriação administrativa conforme as apetências dos arquitectos e engenheiros de então.
O corpo assentava num conjunto de órgãos dispostos em redor de um vasto terreno: pés (escadaria ou rampa de aparato, propileus), pernas (alas laterais destinadas a institutos ou faculdades), cintura (novo pórtico de aparato, estreitamento das alas, aposição de dois torreões), tronco e braços (alameda, praceta, alas laterais destinadas a faculdades, bibliotecas, hospitais ou museus), e cabeça (reitoria e serviços administrativos).
A imagem arquitectónico-biológica é sobejamente visível na Cidade Universitária de Roma, Cidade Universitária de Coimbra (Cottinelli Telmo conhecia bem a lição romana de Piacentini), Cidade Universitária de Lisboa e no gorado projecto da Cidade Universitária de São Paulo (Piacentini/Morpurgo).
Em Coimbra não se desenhou a Reitoria, fruto da (re)integração do edifício antigo da Casa Reitoral no novo projecto. Mas as valências pré-existentes foram alvo de ampla cirurgia plástica, a tal ponto que na altura alguns quiseram ver no antigo Colégio de São Pedro um "edifício novo".
Menos apercebível no projecto de Coimbra, a função ideológica da Reitoria como espaço nobre de topo do corpo, vocacionada para o controlo e comando centralizado é mais visível nos projectos de Roma e de Lisboa (Arqt. Pardal Monteiro, concretizando ideias de Duarte Pacheco).

Tribunal de Bolzano
"Palazzo di Giustizia di Bolzano", da autoria de Marcello Piacentini, uma obra de regime concretizada em 1932. Piacentini havia projectado anteriormente o "Palazzo di Giustizia di Messina" (1919-1927), imóvel público tradutor dos caminhos do neoclássico severo oitocentista, já a lembrar os arcos do triunfo, os pórticos e as realizações do neo-dórico germânico.

Libera (1)
Fachada principal e torreão central do Palazzo dei Recevimenti e Congressi, Roma, arquitecto Adalberto Libera, projecto 1937-1954. Bom exemplar da instrumentalização do classicismo monumental num regime autocrático de entre guerras, com o projectista a apostar no pátio de aparato, colunata monumental cilindriforme, pala frontal saliente (cuja função é meramente ornamental e ostentatória), localização centralizada (posição de comando e de vigilância permanente), e grande torreão central coroado de cúpula e esquemas de iluminação natural habilmente dispostos entre a cornija e o rebordo da placa. Esta solução também foi usada em edifícios públicos portugueses (exemplo do Arqt. Carlos Ramos), garantido eficaz efeito de fechamento em relação às solicitações do mundo exterior.


Libera (2)
Trecho da Via Marmorata com vista do Palazzo dei Recevimenti e Congressi, Roma, arquitecto Adalberto Libera. A construção, iniciada em 1937, arrastar-se-ia até 1954.
[http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=178484]

domingo, 18 de novembro de 2007

Imagens que podem confundir
Ao primeiro olhar fica-se com a impressão de estarmos a visualizar a fachada principal do Palácio da Justiça do Porto. Será que? Se não é, parece: as cantarias extensivas, o exibitório verticalismo de pilares e pilastras, a pomposa exposição de hieráticas figuras ou alegorias que geram no ser humano uma desconfortável sensação de pequenez...
Mas não, não se trata do PJP, mas sim de um edifício de regime, a Faculdade de Direito da Universitatea de Bucareste, Roménia, com Cícero, Justiniano, Salomão... eis um exemplo acabado do "classicismo monumental totalitário" (proposta do Prof. Doutor Nuno Rosmaninho), moda internacional de afirmação do poder por via das arquitecturas, com ocorrências em regimes autocráticos de direita, de esquerda e até em territórios ocupados por algumas democracias do século XX.
[sobre a produção da arquitectura monumental totalitária do regime de Ceausesco em Bucareste, e o modo como arrasou a cidade antiga para sobre ela edificar a obra emblemática do regime, leia-se Sorin Vasilescu, «Il delirio totalitario: la cità cancellata. La sovietizzazione urbanistica di Bucarest», artigo de 2004 disponível em http://www.ragionpolitica.it/testo.2087.delirio_totalitario_citt_cancellata.html]